Alcaravela, Sardoal. Foto: mediotejo.net

É provável que a frase que inicia o livro “Alcaravela, Memórias de um Povo” de Augusto Serras seja de facto real: “No coração de cada homem há sempre uma aldeia adormecida”. Regista-se, contudo, a curiosidade da inexistência de aldeia, povoação ou até lugar de Alcaravela, sendo portanto uma realidade que não vem no mapa de Portugal. Nenhuma das aldeias daquela freguesia de Sardoal reivindica para si o nome. Alcaravela é uma área, centra-se apenas no espaço geográfico resultante da Serra que provavelmente deu nome à charneca, apesar do topónimo que se lê nas placas indicativas ao longo do concelho.

Para quem passa ao lado, percorrendo a Estrada Nacional 2, e lê a placa toponímica indicando Alcaravela, não sendo nativo, está longe de desconfiar que tal povoação não existe, e portanto se decidir embrenhar-se floresta adentro, seguindo as placas, às tantas interroga-se se não estará perdido. Ou então, não seguindo, poderá questionar-se sobre o topónimo: O que faz uma Caravela no interior do país? Pois, nem um nem outro.

Seguindo de Abrantes em direção a Vila de Rei, vai atravessar uma mancha florestal e encontrar a Serra. Ao virar à direita em direção a Alcaravela, antes de chegar a Santa Clara, parando à beira da estrada “entre a ramagem dos pinheiros e eucaliptos, verá um vale salpicado de pontos brancos assinalando as casinhas das pequenas aldeias”, catorze na totalidade que constituem a freguesia de Alcaravela, no concelho de Sardoal.

São 33 quilómetros quadrados de um território situado muito próximo do Centro Geodésico de Portugal, quase contíguo à Serra da Melriça.

A sede de freguesia é Santa Clara, e segundo informa Augusto Serras no livro “Alcaravela, Memórias de um Povo” o nome da Santa, nalguns documentos é, tão só, “o titular da igreja; depois é que aparece, ora como nome do feudo que a Ordem de Malta aqui teve, chamado ‘Casal de Santa Clara’, ora como topónimo do lugar onde está a igreja, e ainda como nome da freguesia”. Lugar onde moravam apenas o administrador do feudo e o prior que pertencia à Ordem.

Alcaravela, Sardoal

No livro, explica Augusto Serras que “as aldeias cujos nomes constam dos documentos mais antigos, eram chamadas de Casais. O pároco de Alcaravela escreveu, em 1758, que na freguesia não havia povoações nem aldeias, nem lugares, só havia casais. O que ajuda e entender a forma dispersa de povoamento de Alcaravela.

No decorrer da História, o tecido habitacional de Alcaravela formou-se e distribuiu-se, então, por catorze aldeias e alguns pequenos lugares. São elas: “Casal Pedro Maia, Casal Velho, Casos Novos, Cimo dos Ribeiros, Monte Cimeiro, Panascos, Presa, Pisão Cimeiro, Santa Clara, Saramaga, Tojeira, Vale Formoso, Vale das Onegas e Venda” explicou ao mediotejo.net Aida Lopes, funcionária da Junta de Freguesia, em Santa Clara, que é a sede onde podemos encontrar o Centro de Saúde, o Centro de Dia, o Grupo Desportivo de Alcaravela ou a farmácia.

“São muitas as pessoas que chegam a Santa Clara à procura de Alcaravela, principalmente de transportadoras ou destinadas à Artelinho” acrescenta Aida. Por ela são encaminhadas para os vários lugares da freguesia que ainda conta com pequenos povoados anexos às aldeias como São, Brejo, Carrascais, Chã Grande, Fontaria, Fontelas, Herdeiros, Moutal, Outeiro, Pero Basto, Portela e Tojalinho. Topónimos que na sua maioria têm origem no solo onde se fixaram e principalmente na sua flora primitiva.

Alcaravela, Sardoal. Fotografia publicada no livro de Augusto Serras “Alcaravela, Memórias de um Povo”

Da mesma curiosidade dá conta Isabel Serras, funcionária do único café aberto em Fontelas, o Café Pita, lugar de encontros nomeadamente para jogar às cartas. Com as ruas desertas, os camionistas de transporte de mercadorias e até o carteiro, se for inexperiente, na entrega do correio recorre ao estabelecimento comercial pedindo socorro na identificação das pessoas e dos respetivos locais.

“Procuram as moradas” diz Isabel. Os carteiros “quando aprendem é que os mudam” para serviços noutras localidades. Tal como Mouriscas e Penhascoso “também Alcaravela teve problemas na entrega do correio, devolvido quando o carteiro não dava com o destinatário. Mas agora já toda a gente tem número de porta”, esclarece.

Antigamente “os carteiros conheciam toda a gente”. Isabel faz um esforço para indicar caminhos e moradas pela dispersa freguesia de Alcaravela, manifestando “algumas dificuldades a partir do Cimo dos Ribeiros”.

O vocábulo sugere-nos “proveniência árabe, dado que a maioria das palavras portuguesas começadas por al são de origem mourisca”, mas neste caso “Alcaravela não resultou de al+caravela, como ingenuamente se poderia supor. É que o determinante al é de origem mourisca, usado no tempo dos árabes, até ao século XIII, e não iria juntar-se à palavra portuguesa caravela que é do século XV, quando já os árabes nos tinham deixado, havia duzentos anos. Além disso o topónimo Alcaravela já existia no século XVI” escreve igualmente Augusto Serras.

Alcaravela, Sardoal

O autor, na época de publicação da obra professor do Liceu de Almada, manifesta-se certo que os árabes conheceram a mais alta serra da área de Abrantes, percebeu folheando um velho ‘Vocabulário de Português e Latim’, de Raphael Bluteau, de 1712, quando reparou que o vocábulo alter é também o nome de uma ave primitiva, de arribação, mais conhecida por grou ou gazola, a que os árabes deram o nome de karavan. Ocorreu-lhe de imediato o nome de duas povoações próximas de Alcaravela com o nome de Vale de Grou, admitindo que a ave também tenha habitado aquelas bandas.

Além disso foi informado pelo eng. António Martins, de Envendos, Mação, de que, “noutras eras, os vales das serras de Alcaravela, Melriça, Bando e Santos, foram um habitat de grous, chamados também de gazolas, nomes ainda comuns a algumas famílias de Penhascoso, Queixoperra e até Alcaravela, usado como apelido sob forma de Casola”.

Ora “foi precisamente a estas aves que os árabes deram o nome de karavan ao qual juntaram o artigo al e deu alkaravan” defende. No decorrer dos séculos evoluiu para o diminutivo de Serra de Alcaravela.

Eduardo Cardina Gonçalves, Fontelas, Alcaravela. Sardoal

Sobre a origem do topónimo, tal como Isabel, Eduardo Cardina Gonçalves, de 63 anos, natural de Presa, nada sabe, muito menos de pássaros com as penas das asas muito longas e viradas para baixo. Nem o antigo pedreiro nem os reformados que o mediotejo.net encontrou a jogar às cartas no Café Pita. “Oh! Quem sabia disso já morreu!”, afirma convicto um dos jogadores.

Mas Eduardo está certo que os mouros andaram por aquelas bandas. Recorda os tempos de menino, de resineiros e de trabalhadores do campo “a cavar as moitas nos olivais por esses cabeços” e de como “era assustadora a pedreira da Quinta dos Mouros da Rosa Mana” por onde andou a guardar gado.

“Ainda lá fui parar uma vez. Aquilo metia respeito, um tipo tinha medo, não se via nada lá dentro. Aquilo é muito fundo”, conta Eduardo. Contavam também os mais antigos que os mouros “andavam para fazer uma ponte de uma serra para a outra”, diz falando de “arcos todos em pedra”, da tal pedreira de onde saiam as pedras, de azenhas e lagares. “Naquele tempo toda a gente tinha uma azenha para moer trigo e centeio. Desde que ardeu é que mudou tudo”.

Lembra-se dos tempos em que havia em Alcaravela longas extensões de campos cultivados com trigo e centeio ceifados pelo próprio pai, teria Eduardo uns 12 anos, e de grandes rebanhos de gado. “Toda a gente tinha ovelhas e cabras. O meu pai chegou a ter 15” animais.

Atualmente Eduardo orgulha-se de ser o homem com mais gado na aldeia de Presa. “Oito ovelhas e nove cabras para me entreter” apesar de ter sido difícil manter os animais durante ao mais de 20 anos que trabalhou em Lisboa, regressando a casa aos fins de semana. “Não havia por cá dinheiro tive de o procurar”.

Residentes na Presa, na freguesia de Alcaravela, matam o tempo a jogar às cartas no Café do Pita em Fontelas

Por seu lado, Isabel lamenta o envelhecimento da freguesia. “São só idosos. Não há onde trabalhar, os novos foram-se embora”. Recorda as inúmeras serrações existentes no passado que “davam emprego a tanta gente” garante. Agora “há uma a funcionar”.

Quanto aos idosos, os únicos clientes que vai tendo no Café Pita, “a maioria come no Centro de Dia. Já não chamam cá o padeiro, não vão às compras, já não movem a economia”, observa, por isso as expetativas para o futuro daquele local do concelho de Sardoal diz serem “zero”. Talvez “uma fábrica mexesse com o Sardoal… caso contrário é a saída tal como as pessoas que aqui residem ainda no ativo”, a trabalhar em Abrantes, Vila de Rei, Mação.

Isabel queixa-se das ruas despovoadas. Quando andava na escola via “gente a trabalhar nas hortas. Agora até temos medo de andar por aí”. Dá conta que muitos naturais de Alcaravela mantém residência em Lisboa e regressam à terra cada vez menos. “Vinham todos os fins de semana, mas com as portagens na A23, os custos aumentam e as pessoas diminuem. Se isto não der uma volta, as aldeias acabam”, sustenta.

Santa Clara, freguesia de Alcaravela, Sardoal

Já nem o mês de Agosto é o mesmo, altura por excelência do regresso de emigrantes. “Dantes vinham ajudar os pais nas lavouras, a apanhar lenha para o inverno. Agora vão é para o Algarve”, comenta. E nem os netos passam o verão na casa dos avós, assegura. “Casa que não tenha Internet não é para as crianças de hoje” refere.

É por isso que durante as férias “muitos miúdos passaram as tardes no café. Até saíam daqui curvados de tantas horas agarrados aos tabletes e aos telemóveis” e por causa do wi-fi gratuito. Na contabilidade do que falta, aponta também a rede de telefone móvel que “deixa a desejar”, com um “péssimo sinal”.

Contudo, na interioridade de uma freguesia dispersa e envelhecida salva-se o trabalho dos jovens do Grupo Desportivo de Alcaravela que segundo Isabel fazem “muito bom trabalho”, apesar de não residirem nem trabalharem na freguesia ainda têm tempo e vontade de regressar ao fim de semana.

Ficam as memórias de uma terra mais dinâmica, dos tempos em que Alcaravela teve uma das primeiras Casas do Povo do País. Com sede própria, para a construção da qual o Estado entrou com 46 mil escudos (pouco mais de duzentos euros) e foi inaugurada a 6 de maio de 1934, contando em 1940 com 350 sócios efetivos e 5 protetores.

E se em 1981 a freguesia contabilizava uma população de 1437 habitantes, número resultado do Censos, o de 2011 deu conta de 904 residentes, 730 eleitores, votantes em Santa Clara, número que, 7 anos depois, provavelmente diminuiu, como em muitas outras povoações do Portugal profundo.

 

Paula Mourato

A sua formação é jurídica mas, por sorte, o jornalismo caiu-lhe no colo há mais de 20 anos e nunca mais o largou. É normal ser do contra, talvez também por isso tenha um caminho feito ao contrário: iniciação no nacional, quem sabe terminar no regional. Começou na rádio TSF, depois passou para o Diário de Notícias, uma década mais tarde apostou na economia de Macau como ponte de Portugal para a China. Após uma vida inteira na capital, regressou em 2015 a Abrantes. Gosta de viver no campo, quer para a filha a qualidade de vida da ruralidade e se for possível dedicar-se a contar histórias.

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1 Comentário

  1. Sobre a origem do topónimo «Alcaravela» não concordo, com o devido respeito, em nada com o que se diz acima.
    O topónimo é para mim mágico, porque investigo alguma toponímia do concelho de Mirandela (já publiquei três livros sobre etnolinguística de Mirandela).
    Assim, a palavra inicial é «Caravela» a que se acrescentou o «a» protésico, em árabe «al», daí Alcaravela. Esta palavra reforça o meu estudo sobre o topónimo «Caravela». A sua origem tem a ver com a exposição dos ventos dominantes e, porventura, outrora, chamar-se-ia «Caravela» à parte mais alta ou mais exposta ao vento, tomando toda a extensão tal designação.
    Gostava de um dia ir a Sardoal (é um fitotopónimo e não um zootopónimo como alguns querem fazer crer) e a Alcaravela e falar com as pessoas interessadas. jorge.j.lage@gmail.com

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