Primeiro veste-se o “pijama”. Calças e camisola de pano de algodão. Agora uma luva, e depois outra. Uma bata plástica por cima, envolvendo o corpo uma vez e meia, fechando com atilhos ao nível do ombro direito. É por ali que se tem de puxar quando for altura de despir, convém não esquecer. Pela cabeça entra uma cógula que protege a cabeça, orelhas e pescoço, deixando apenas de fora os olhos, nariz e boca. Agora mais um par de luvas, subindo por cima das mangas da bata plástica. A selar tudo há fita adesiva, um pouco acima do pulso. Botins de borracha até ao joelho, com as calças bem por dentro, presas nas meias. Por cima de tudo, ainda, um avental de plástico. Máscara cirúrgica, presa com fita de nastro atrás da cabeça. Óculos de mergulho. Viseira. E mais um par de luvas.
Mesmo no pico do inverno, é difícil não começar a suar poucos minutos depois de entrar ao serviço numa ala de doentes com covid-19. Bastaria ficar parada a um canto, como uma encomenda especial embrulhada em plástico, para destilar a um ritmo de sauna. Mas ninguém por ali fica parado. No final de um turno de quatro horas, quando finalmente se puxam os atilhos das batas plásticas, os “pijamas” chegam a torcer-se, tal a quantidade de suor que acumularam.
Os assistentes operacionais são quem sofre mais, pois desde o início da pandemia tiveram de assumir um trabalho extra nas enfermarias covid: todas as limpezas. Se levam um doente de maca pelo corredor para ir fazer um exame, em seguida há que desinfectar toda a área por onde passaram. Paredes, portas, maçanetas, rodapés, chão. E depois o elevador. Por dentro e por fora, portas, paredes, botões, espelhos… tudo.

Num turno é normal ter de lavar os corredores três e quatro vezes. Lavar, não: desinfectar. É preciso assegurar que a esfregona alcança cada centímetro quadrado de chão, em mais de uma centena de metros de extensão. Para cá e para lá. Para lá e para cá. Abençoados rins que resistem a tais maratonas.
“Tem de ser”, comenta serenamente Marta, 41 anos, no final de mais um turno na ala covid do Hospital de Abrantes. Os funcionários das limpezas hospitalares não podem entrar nestas áreas restritas, tal como os funcionários que tratam das roupas ou trazem as refeições dos doentes. Agora fica tudo à porta dos elevadores.
Os assistentes operacionais, responsáveis pelos cuidados de higiene e conforto dos doentes, agora também levam roupa suja e trazem roupa lavada, fazem e desfazem camas, distribuem comida, recolhem tabuleiros sujos, lavam todos os quartos, casas de banho e áreas de trabalho. E os elevadores. E os corredores. Passaram a ter de zelar pela desinfeção de todo um serviço – e isso, além de ser um trabalho extra muito pesado, é também uma responsabilidade acrescida num ambiente de alto risco de contágio. Contudo, a retribuição ao final do mês mantém-se: ganham apenas o salário mínimo nacional.

No Centro Hospitalar do Médio Tejo, que une os hospitais de Abrantes, Tomar e Torres Novas, há 640 assistentes operacionais e a administração acaba de abrir novos concursos para “contratação imediata”. Mas os candidatos não fazem fila. É um trabalho duro e pouco valorizado.
“Sinto que o nosso trabalho como assistentes operacionais não é reconhecido como merecíamos, sei que inúmeras pessoas não fazem noção daquilo que passamos todos os dias… a verdade é que estamos lá para tudo”, desabafa Tânia, 28 anos, há dois anos nesta profissão. “Têm sido dias muito difíceis, e o cansaço faz-se sentir, mas gosto muito do que faço”, explica, enquanto caminha pelos corredores do serviço de urgência do Hospital de Abrantes.
Pelas paredes há papéis afixados que só os assistentes operacionais decifram, com cábulas das fórmulas de desinfecção, que variam conforme a limpeza a assegurar: objetos, superfícies ou chão exigem produtos e concentrações diferentes e, com o cansaço, convém não confiar inteiramente na memória.

“Tenho 20 anos de carreira e parece que estou a começar outra vez… é tudo novo, muito diferente”, confessa Marta, despindo com cuidado um dos seus três pares de luvas, no final de um turno de quatro horas. Sai então o avental, enrolado ao contrário, e depois a bata, puxada pelo atilho do ombro e revirada do avesso enquanto se despe. A viseira e os óculos vão para dentro de uma bacia, e depois entramos nós, de botas, dentro de um balde gigante com líquido desinfectante.
“Vamos fingir que pisamos uvas…”, brinca, cantando em sussurro os “parabéns a você”, para cronometrar o tempo que é preciso fingir que se anda naquele mesmo lugar. Dali salta-se para um tapete, a meio do corredor, onde se descalçam os botins. E é de meias e “pijama” colado ao suor do corpo que se entra no vestiário.

A maioria apressa-se a ir à casa de banho, depois de tantas horas sem o poder fazer. Ou melhor: poder, podem. Mas isso implicaria despir todo o equipamento e voltar a vestir um novo o que, mesmo com treino, levará sempre demasiado tempo. Tal como médicos e enfermeiros, os assistentes operacionais aprenderam nos últimos meses o hábito de contenção – a alternativa é usar fraldas.
O turno acaba com um merecido duche. De roupa e alma lavada, regressa-se à “vida normal”. Se é que isso é possível, com um constante aperto no coração.
“Há sempre o receio de estar a levar esta doença para casa”, confessa Marta, que tem quatro filhos menores. O mesmo dirá Tânia, que vive com os pais. “Tenho todos os cuidados mas… este ‘bicho’ é complicado”, comenta, num suspiro. Não dá um beijo ou um abraço à mãe desde março, nunca se sente à mesa com o pai, come a horas desencontradas dos dois e até a loiça e roupa lava em separado.

“Tal como muitos profissionais do hospital, no início da pandemia saí de casa e dividi um apartamento em Abrantes com outra funcionária. Estive meses sem ver o meu namorado. E agora, que a situação é até mais grave, penso se não deveria fazer o mesmo…”
Para já, os dias vão correndo em círculos, como se Marta e Tânia tivessem sido apanhadas num gigante remoinho, puxadas sempre para o mesmo local, central e determinante das suas vidas: o hospital.
Lamentam não receber uma compensação mais justa por tamanho esforço e risco e Marta, com mais anos de carreira e de vida, lembra o papel que os sindicatos poderiam ter na defesa dos direitos destes trabalhadores.
Desde que se extinguiu a categoria de auxiliar de enfermagem, a igualdade ficou sempre nivelada por baixo – salário mínimo nacional – e Marta lamenta que, por exemplo, não exista possibilidade de progressão na carreira ou qualquer tipo de compensação pela experiência acumulada: “Tenho 20 anos de serviço mas ganho exatamente o mesmo que uma colega que tenha entrado há alguns meses.”
Tal como ganha exatamente o mesmo que outro colega destacado num serviço “normal”, sem as exigências extra dos tempos pandémicos.

Contudo, tanto Marta como Tânia não se queixam, e reafirmam inclusive várias vezes que se sentem gratas por poderem contribuir na luta contra este vírus que virou o mundo do avesso. “O sentimento que tenho é que dou o melhor de mim todos os dias, e sei que esta luta constante vai permanecer para sempre na minha vida, será uma fase jamais esquecida”, comenta Tânia.
“Todos os dias temos que estar preparados para o que aí vem, é uma incógnita. Quero acreditar que tudo vai ficar bem, mas não sei quando… Até lá, é viver um dia de cada vez, a sorrir com os olhos.”