Há 37 anos a levantar a autoestima dos seus clientes, Ascensão Gonçalves viu-se obrigada a fechar as portas do seu salão de cabeleireiro, no Sardoal, por força das medidas de controlo da pandemia, a 15 de janeiro. Depois de dois meses de incerteza, as tesouras voltaram ao frenético ritmo do corte e os espelhos a refletir o brilho da transformação dos clientes, que há muito ansiavam por voltar. Apesar de a cada confinamento ter perdido clientes para colegas de profissão que, na clandestinidade, foram “desenrascando”, no regresso à atividade a agenda rapidamente encheu e três semanas após a reabertura ainda existem pessoas em lista de espera para um corte, uma coloração ou simplesmente para uma lavagem.
“A pessoa quer fazer muita coisa ao mesmo tempo, alguma fica para trás”, diz-nos Ascensão Gonçalves enquanto passa a ferro e vai dando um olho no jantar que está ao lume. É domingo à tarde e São, como é conhecida, aproveita o pouco tempo em que está em casa para orientar as lides domésticas, acompanhada pelo barulho de fundo da televisão que ecoa uma melodia serena, contrastando com o corrupio que têm sido as últimas semanas.
“Eu neste momento não sei como é que me aguento. Agora trabalho muito. Aliás, demasiado”, desabafa. Ascensão Gonçalves abriu há 37 anos o espaço ‘São Cabeleireiros’, no concelho do Sardoal. Em quase quatro décadas de trabalho, admite que nunca passou por uma situação como a que vive por estes dias. “Este confinamento foi pior…”, desabafa.
A reabertura era tão desejada pela profissional quanto pelos clientes, que lhe expressam hoje que uma ida ao cabeleireiro era a coisa que mais falta lhes fazia. “Olhavam-se ao espelho e sentiam-se mal”, conta São, confessando que o trabalho nestes dias tem sido “uma luta constante”.
“É demasiado trabalho. As coisas estão cada vez a complicar-se mais. Estamos abertos há 15 dias e ainda tenho pessoas em lista de espera, tudo clientes habituais. (…) Tem sido muito, muito difícil gerir a agenda. Ainda não consegui equilibrar, e desde que reabri nunca mais folguei. Só não fui trabalhar no primeiro domingo porque não sabia que podia ir”, diz-nos a responsável do salão.

Depois de dois meses de incerteza, com o encerramento a 15 de janeiro e sem perspetivas de quando poderia voltar a reabrir, a 15 de março a azáfama voltou de rompante ao salão localizado no edifício amarelo da estreita Rua 5 de Outubro. Entre mulheres, homens, jovens e idosos, à procura de um pouco mais de autoestima, da sensação de bem-estar e até mesmo de saúde, nesta autêntica roda-viva todas as horas são aproveitadas ao máximo para satisfazer o cliente.
“É trabalhar o dia todo até às tantas, todas as horas que são possíveis, que são permitidas por lei”, explana.
ENTRAR, DESINFETAR, SENTAR: UMA ROTINA COM MAIS TRABALHO E MENOS CLIENTES
O dia começa às oito da manhã, com a chegada da primeira marcação. “A cliente entra de máscara, desinfeta as mãos. Conforme entra, sou eu que desinfeto o lugar à frente dela, que mando sentar”, explica São. É assim incontáveis vezes até às oito da noite, quando encerra o atendimento ao público. Ao fim de semana, o horário é mais curto, consequência das limitações de horário de funcionamento impostas pelo Governo no âmbito da pandemia.
Mas depois da saída da última cliente há ainda muito que fazer, nomeadamente a higienização do salão a fundo, além daquela que já acontece durante o dia, de cliente para cliente. “Só o tempo que se perde na higienização…”, desabafa Ascensão Gonçalves. “Agora nós não conseguimos atender as clientes que atendíamos. Isto demora muito mais tempo a recuperar porque passamos mais tempo a executar os trabalhos devido a ter de cumprir as regras de higiene e segurança. Trabalhamos mais horas e atendemos menos clientes”, admite.
Também as regras mais apertadas obrigaram a uma reorganização do espaço. Com quase 70 metros quadrados, o salão tem uma cliente por cada 20 metros quadrados. “Eu antes podia pôr coloração a uma cliente, a seguir punha coloração na outra, a seguir uma lavava, e neste momento não o posso fazer. Eu não ponho nenhuma cliente a menos de dois metros e meio de outra, porque quis mesmo que isso acontecesse, daí as pessoas sentirem-se em segurança no salão”, confessa, acrescentando que são as próprias clientes que dizem “eu venho aqui porque aqui sinto-me segura”.
E também para quem atende a segurança é sentida. “Eu não toco numa cliente sem desinfetar as minhas mãos primeiro. E não passo de um cliente para o outro que não desinfete as minhas mãos. Eu nem sei como é que elas aguentam tanto desinfetante. Às vezes até sem querer, já é tão automático, que já estou a pôr duas vezes”, refere.
A PERDA DE CLIENTES DURANTE O CONFINAMENTO PARA A CLANDESTINIDADE
O salão São Cabeleireiros só funciona por marcação. Perante a enchente de pedidos, a Ascensão Gonçalves e à funcionária que trabalha consigo tem-lhes valido a compreensão dos clientes que entendem quando não já não há vaga para o dia e hora que queriam. Mas nem todos tiveram a paciência de esperar pela sua vez. Ascensão admite que a cada confinamento perde clientes. “Mesmo clientes que vinham todos os meses. Apanharam quem lhes fez clandestino, depois não voltam as costas, da próxima regressam àquela pessoa que os atendeu. Até podem gostar mais daqui, mas a pessoa está aflita, se a desenrascam, ela acaba por ir a quem a desenrascou”, conta.
No caso de São, trabalhar clandestinamente nunca foi opção em cima do balcão. “Nunca ponderei fazer porque acho que não temos as condições de higiene que se tem no cabeleireiro. É muito mais seguro ir ao cabeleireiro do que fazer clandestinamente, na casa das pessoas e em garagens”, defende, não escondendo a revolta, quer pelo encerramento dos cabeleireiros por parte do Governo quer pela clandestinidade do serviço prestada por colegas.
“Tínhamos condições para estar abertos. Não se justifica terem fechado os salões porque não é um sítio de foco de contágio, eles só fecharam os cabeleireiros para as pessoas não andarem na rua, só que ao fechar fizeram com que muita gente trabalhasse em clandestino. E o risco é muito maior ir a casa de um cliente do que estar a fazer as coisas como deve ser. (…) É muito revoltante saber de pessoas que trabalhavam em garagens, em anexos, mas aí não havia nada a fazer. E é revoltante para quem tem todas as condições para trabalhar e não pode. Uns pagam impostos e outros trabalham assim, na clandestinidade”, diz.

Sem faturar “absolutamente nada” durante dois meses, as despesas continuaram a chegar. “Como é que se paga segurança social quando não se trabalha?”, pergunta. A ajuda do Estado foi pouca: “Recebi 120 euros no primeiro mês [neste segundo confinamento] e no segundo mês nem sei”, confessa.
Perante o cenário de incerteza, confessa que ponderou desistir. “Senti-me muito frustrada. Dois meses num ano faz toda a diferença. Mesmo com a sobrecarga que há agora, não se consegue colmatar. Dois meses fechados é cinco dias de férias que tem que se dar a uma empregada que não trabalhou e nada disso tem qualquer ajuda do Estado.”
MAIS DO QUE BELEZA, UMA QUESTÃO DE SAÚDE
A procura pelo cabeleireiro tem-se sentido mais, no caso do salão São Cabeleireiros, por parte de clientes que fazem colorações e trabalhos técnicos. Uma questão de estética que ficou em suspenso durante dois meses e que teve efeitos na autoestima das pessoas. “Embora estivessem em confinamento, a necessidade de ir ao cabeleireiro não era uma questão de imagem para a rua, era uma questão de imagem para elas, para o bem-estar delas”, sublinha Ascensão Gonçalves.
Uma ida ao cabeleireiro vai além da questão da beleza. A profissional alerta para a realidade da ida ao cabeleireiro enquanto questão de saúde, uma situação que o confinamento veio agravar, nomeadamente no caso das pessoas mais idosas. “Tenho clientes com 70 anos e mais que têm muita dificuldade em lavar a cabeça e secar o cabelo. Não é só um serviço de estética, é também de higiene pessoal”, alerta.
“Tive uma cliente que não lavou a cabeça durante dois meses e punha champô seco”, conta, amargurada.
Agora, de volta ao ruído dos secadores, às vivas cores das colorações, aos movimentos frenéticos das tesouras e às expressões de satisfação das mulheres que a procuram, a luta de São centra-se em conseguir dar resposta a todos os pedidos que vão chegando, na esperança de não perder mais clientes e conseguir reconquistar alguma da estabilidade e normalidade perdida.
O Presidente da Rep blica, Marcelo Rebelo de Sousa, saudou hoje o desconfinamento das marchas populares de Lisboa, que viu passar durante cerca de quatro horas e meia, ao lado do presidente da C mara Municipal, Carlos Moedas.