Foto: mediotejo.net

A propósito das eleições presidenciais, o mediotejo.net viajou numa manhã invernosa até ao Interior profundo do concelho de Vila de Rei, para chegar a São João do Peso. Estamos na freguesia de Portugal Continental com menos eleitores e que, por isso, procede à votação em plenário, que pode ocorrer de braço no ar. Eventualmente escolhemos mal o dia para conversar com quem aqui vive, porque calhou na data do transporte feito até à sede de concelho para que a comunidade possa aviar-se, ir ao médico, fazer compras e levantar medicamentos, pagar faturas de serviços. Freguesia envelhecida, como tantas outras, esta terra do Pinhal Interior Sul tem sofrido com a perda populacional e, por sua vez, de eleitores. A presidente da junta, Rosário Cavalheiro, diz que o destino de freguesias despovoadas e isoladas, como a que gere há quase 12 anos, está na mão do governo central – são urgentes políticas que confiram uma nova dinâmica e outra vida aos povoados distantes dos grandes centros.

Encontramo-nos no Largo da Igreja, depois de desviarmos da Estrada Nacional 2, em Vila de Rei, e seguirmos para São João do Peso. O GPS falha, os dados móveis também, mas vamos seguindo pelas aldeias à nossa sorte, aguardando sinal novamente que nos corrija ou diga que estamos perto. Terras com nomes muito sui generis, como Boa Farinha, Vale da Urra, Várzeas, e lá nos reencontramos. Distam pouco mais de 12 km quando nos situamos após o descuido de localização geográfica.

Encontro marcado na Casa do Povo local, um edifício alto, ao estilo de casa senhorial, com primeiro andar. O sino da igreja toca, entoa ferozmente a rasgar o suspense da manhã enevoada. À entrada, vestígios da esplanada que funcionava durante o verão, entretendo os veraneantes e populares que por ali viam passar as horas enquanto petiscavam, bebiam algo fresco ou passavam a tomar o seu café. Mas a escalada agressiva dos números levou a que só ficassem as correntes que delimitam o espaço. O café fechou portas por ocasião do início do novo confinamento.

É por isso que, na manhã gélida, cinzenta, tudo estava vazio. Dá a vaga sensação de uma terra “fantasma”, onde o tempo tudo congelou… ou tudo afastou. O termómetro do carro marcava cerca das 10h00 os 4 graus. A brisa dava o ar de sua graça a fazer o frio recortar o rosto à passagem no nariz e nas orelhas. Bendito agasalho.

Foto: mediotejo.net

Durante aquele momento passam dois carros. Um de uma empresa que seguia viagem em direção a Cardigos. Outro estacionou, ali, junto à igreja. A presidente de Junta exclama um efusivo ‘bom dia!’, que entoou tanto quanto o sino da igreja à nossa chegada.

“Está a ver… uma terra fantasma. Não se vê ninguém na rua”, diz, encolhendo os ombros como quem já se conformou com algo que lhe escapa por entre os dedos. Já tinha estado no centro de acolhimento, lar de idosos da freguesia. Vai entrar ao trabalho depois de almoço, na Câmara Municipal de Vila de Rei, que agora tem horários desfasados devido à pandemia.

Com o frio e sem outro local perto onde nos sentarmos para conversar, sem perder tempo, Rosário Cavalheiro abriu as portas da Casa do Povo, edifício doado pelo conterrâneo Manuel Farinha Portela em 1940, e que dá o nome à rua que desagua para a junta de freguesia. Voltámos ao salão, e defronte um retrato do benfeitor, onde reportámos a sua reeleição em plenário de cidadãos eleitores, em outubro de 2017. Afinal, estamos na freguesia de Portugal Continental com menos eleitores, e que por isso procede à votação em plenário. Ou seja, segundo decretado, nas “freguesias com 150 eleitores ou menos, a assembleia de freguesia é substituída pelo plenário dos cidadãos eleitores”, convocados para a sessão no sentido de eleger, deliberar e aprovar tudo o que tenha a ver com a freguesia. E só o poderá fazer se, na reunião de plenário, estiverem presentes no mínimo 10% dos cidadãos eleitores recenseados na freguesia.

Em 2013, São João do Peso recusou a fusão com a freguesia de Fundada. Vila de Rei tem assim três freguesias, e tem dois marcos no que toca a eleições e eleitores. O concelho tem registado a maior adesão nacional ao voto, com menor abstenção registada, e tem ainda a freguesia com menor número de eleitores do continente, onde a junta de freguesia de São João do Peso é eleita em plenário de cidadãos eleitores por serem menos de 150 os votantes recenseados.

Eleição em plenário de cidadãos de 2017 para a junta de freguesia, com reeleição de Rosário Cavalheiro, reconduzida para o terceiro e último mandato. Foto: mediotejo.net

Em todo o país, à data das eleições autárquicas de 2017, seriam seis as freguesias que constituíram plenário, em eleição por democracia direta, e dessas, cinco situavam-se na ilha das Flores, no Arquipélago dos Açores. Já São João do Peso perdeu o direito às urnas para eleição enquanto freguesia por falta de eleitores inscritos em 2013, numa das reeleições da atual presidente de junta, naquele que representaria o seu segundo mandato.

A presidente de junta esteve durante a manhã, antes de nos receber, a imprimir os cadernos eleitorais, e sabe na ponta da língua com quantos eleitores poderá, eventualmente, contar. No caso das eleições presidenciais a votação é feita em urna fechada, como em todas as outras freguesias do país. “Atualmente estão 102 pessoas recenseadas inscritas para votar nas eleições presidenciais do dia 24”, diz-nos, sabendo de antemão que nem todos irão comparecer, por não terem condições para isso, não participarem simplesmente ou por já terem requerido voto antecipado.

A estes, acrescem sete pedidos para votação condicionada por parte de utentes do Centro de Acolhimento de São João do Peso, sendo que outros dois ficaram de fora por dificuldades: um por ser natural de Oleiros e não ser considerado concelho limítrofe, outro por erro na plataforma para inscrição através da Segurança Social.

E nisto a presidente refere que tinha ido nessa manhã a Cardigos, freguesia limítrofe mas do concelho de Mação. “Acabei por trazer pão. O meu cunhado tem lá um café, e já não está a servir cafés… Acabei por meter o Euromilhões, só”, indica, lembrando o agravar das medidas de restrição.

A presidente da junta é natural de Cardigos, Mação, a poucos quilómetros de São João do Peso. A família do marido é dali natural, e foi após uma tia deste lhe ter deixado casa que decidiram fixar residência e formar família. Tem duas filhas, Rita e Andreia, a última a viver em Lisboa. Já Rita é presidente da direção do Centro de Acolhimento de São João do Peso, onde é também funcionária. Rita preside ainda ao plenário de freguesia desde 2017, ano em que a mãe foi reeleita presidente de junta com 62 votos entre 64 cidadãos eleitores presentes no plenário.

Na altura existiam 122 eleitores. Recordando a evolução com eleições presidenciais anteriores, já que se aproximam as eleições deste ano, no seguinte quadro representa-se a evolução negativa, com queda abrupta de eleitores inscritos.

Eleições Presidenciais 2001 2006 2011 2016 2021
nº eleitores 207 173 154 134 102

Quadro: evolução do número de eleitores inscritos conforme levantamentos dos cadernos eleitorais das eleições presidenciais dos últimos 20 anos. Desde 2001, São João do Peso perdeu mais de metade dos eleitores que tinha.

Diz que o único funcionário da Junta está de baixa, e agora está um jovem a substituí-lo através de um POC.

À terça-feira, as pessoas de São João do Peso têm transporte público da comunidade para Vila de Rei, promovido pelo município, o que justifica em parte o vazio nas ruas, o silêncio tomado pelo balido das ovelhas que pastam nos prados verdejantes junto ao povoado.

Mas não se vende pão em São João do Peso? A presidente diz, de cor, que à terça, quinta-feira e sábado passam padeiros a vender pão porta-a-porta. “Somos tão poucos, mas vamos tendo alguma coisa”, admite.

Foi na ronda para entregar um bolo-rei, por altura do Natal, aos conterrâneos, que Rosário Cavalheiro voltou a fazer contagem. São apenas 60 as casas habitadas, em toda a freguesia que tem perto de 13 km quadrados de área. “Algumas com apenas uma pessoa a morar. Ponderámos na iniciativa até oferecer só às pessoas mais isoladas e que vivem sozinhas, mas depois pensámos que somos tão poucos e não era por aí. Não temos outras extravagâncias”, admite, rindo-se. E foi oferecido um bolo a cada casa.

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Destas, pelo menos duas casas estão ocupadas por casais a gozarem a sua reforma, outras servem de segunda habitação ou de férias. Nestas situações, refere a presidente de junta que foram ficando por se refugiarem da pandemia e ausentando-se dos grandes centros urbanos, caso de Lisboa.

São João do Peso conta na freguesia com os lugares de Sesmarias, Cimo do Valongo, Portela dos Colos e Algar (Lameiras do Algar e Ribeiro do Algar), sendo que neste último só já mora uma senhora que enviuvou, e existe um espaço de turismo rural.

Tem dois cafés, um, Café Cantinho, de um habitante que esteve muito tempo emigrado nas Caraíbas, ali conhecido por “o turista”, mas que não tem tanta clientela como o Café São João, no largo principal da sede de concelho, que fica num ponto de passagem, junto à Igreja, praça de táxis e Casa do Povo. A uns metros da junta de freguesia, da Quelha dos Abraços, novo edifício de apoio à junta doado por um popular e que está em conclusão de obras, com salão e wc.

Por sorte, começa a notar-se movimento na rua, junto ao café do largo. A presidente diz que teremos, afinal, mais pessoas com quem conversar.

O Café São João – que pertence a um casal já com idade e que preferiu deixar de o explorar – está agora entregue, desde agosto, a Rosa e ao namorado Nuno, contando com ajuda dos irmãos desta. Naturais de Vila de Rei, Rosa e alguns dos irmãos trabalhavam em Lisboa numa grande empresa de catering, mas com a pandemia, sem congressos, encontros ou eventos que promovam ajuntamentos, a empresa dispensou-os.

Agora ingressaram num novo desafio, contando com o namorado em iniciativas diferentes do habitual e que chamam clientela não só da freguesia, como de outros pontos do concelho e região. “No período da manhã já vendia 30 cafés”, conta. Em vista estão outros projetos, nomeadamente a construção da sua moradia na terra natal da mãe, Portela. E ao que parece, deverá passar a explorar também um snack-bar na sede de concelho, assim que a pandemia o permitir.

A presidente da junta e Rosa Rodrigues, atual gerente do café São João, no Largo da Igreja. Foto: mediotejo.net

Assim que assentaram e se alistaram ao exército do Peso, era costume cozerem fornadas de pão caseiro ao domingo, assarem frangos no churrasco, e venderem para fora. Agora, com o apertar das restrições do novo confinamento, nem cafés podem servir e preferiram fechar portas.

“Fizeram-nos a proposta e passaram-nos o café no dia 31 de julho, abrimos no dia 1 de agosto”, diz Rosa, visivelmente entusiasmada com o feito.

Para já os planos são por ali, com uma filha a frequentar a escola em Vila de Rei e outra a frequentar a universidade. Depois, logo se verá.

O espaço, onde instalaram doseadores com álcool gel em cada mesa, onde regulavam as entradas e estadias nas mesas do café, era controlado pelos proprietários que já conhecem os clientes e sabem com o que contar. A desinfeção era palavra de ordem. Mas nem por isso se deixou de lado a criatividade, para ajudar a criar nova dinâmica comunitária, fazer companhia às pessoas e servi-las o melhor possível.

Passaram a ter ao dispor menus e produtos que antes não havia, como bolos e pão fresco, e outros. Instalaram uma salamandra para manter um ambiente caseiro e cómodo nos dias frios de inverno.

“Quem trouxesse uma cavaca tinha direito a 10 cêntimos de desconto no café”, sorriu Rosa, a mostrar um pouco da veia criativa com que rege o estabelecimento e com que estabelece laços com a população. Até a montra natalícia do café, feita pelas mãos da comunidade e com o que foram trazendo de suas casas, ficou em 2º lugar no concurso municipal, e é com orgulho que a comunidade o reconhece.

Outras ideias divertidas foram surgindo, por exemplo, no verão quem tocasse o sino da entrada tinha de pagar a rodada aos presentes. Passaram a servir petiscos saborosos onde se incluem os caracóis, moelas e iguarias típicas das tasquinhas e tabernas à portuguesa.

A parede da igreja, durante o verão, serviu de tela para exibir filmes, programas de tv e jogos de futebol. O que a população quisesse. A partir da esplanada, o tempo foi passando, com segurança e com os membros da comunidade a cuidar de si mesmos e dos outros, cumprindo as regras.

O pão voltou a ser pendurado à porta dos fregueses. O café fechou portas por causa da pandemia e sem previsão de quando reabrirá. Foto: mediotejo.net

Mas agora, ficou tudo em suspenso. Até haver volte-face do agravamento da pandemia de covid-19 no país, após este segundo confinamento. Até o pão, que o padeiro começou a deixar no café, bem cedo, para depois os locais o irem lá levantar, voltou a ser pendurado à porta do freguês. Mau sinal, portanto.

Não há muito mais, diz a presidente de junta, mas há também um pequeno comércio que vende farinhas e rações para animais, e a Casa do Povo costuma disponibilizar mercearia à quarta-feira, com bens essenciais para quem precise com urgência e ali possa comprar. É Rosário quem costuma abrir o espaço.

Durante a semana, além dos vendedores de pão, há venda ambulante de peixe e fruta, que vem à quarta-feira. “Apita aqui, apita ali. E também já esteve infetada com o covid-19…”, suspira, como se caísse na tentação de fugir ao tema ao deixar-se levar pelo peso incontornável da atualidade. E logo refere que só há a reportar o caso recente de uma idosa no lar, que testou em dezembro positivo, tendo contraído o vírus no hospital.

Em São João do Peso há um taxista que, além desse ofício, tem ainda uma agência de seguros. Em terra com poucos serviços ou nenhuns, há quem viva em polivalência.

Depois há o Centro de Acolhimento de São João do Peso, que emprega 28 funcionários e tem ali instalados 38 idosos, alguns de concelhos vizinhos.

Equipa de colaboradores do Centro de Acolhimento de São João do Peso. Foto: mediotejo.net

Juntamente com a presidente, efetuámos visita-relâmpago, com devido distanciamento, ao lar. A presidente aproveita para saber como corre o dia e deixar palavra de ânimo aos colaboradores. Nessa altura, nem sabiam que iniciava naquela tarde a campanha de vacinação contra a covid-19 no concelho de Vila de Rei, vacinando todos os utentes e funcionários da instituição.

Lembra que há muita gente dali, até parentes seus, emigrados na Alemanha, e que há alguns cidadãos vindos da Bélgica e do Reino Unido que por ali estão a assentar arraiais, comprando casas de férias ou reconstruindo para gozarem a reforma. Com a pandemia, nunca mais ali voltaram.

Outros criaram alojamentos locais de turismo rural, caso da Quinta do Eco, em Algar, e do Vale de Garcia, em Portela dos Colos.

E por falar em Portela dos Colos, é nesta direção que surge um dos pontos de interesse turístico da freguesia, património natural exímio, especialmente no verão. A praia fluvial do Pego das Cancelas, a mais selvagem das cinco existentes no concelho, situada junto à histórica ponte que une o concelho de Vila de Rei ao concelho da Sertã (mais concretamente à aldeia de Sambal, Marmeleiro) sobre a ribeira de Isna, e já perto do concelho de Mação, na fronteira da freguesia de Cardigos.

No Peso, o padroeiro é São João Baptista, e é em sua honra que se todos os anos há festejos no terceiro domingo de agosto, na festa anual de verão, com leilão tradicional das fogaças compostas por todas as aldeias.

Pego das Cancelas. Foto: mediotejo.net

Ali há missa todos os domingos, na Igreja Matriz. Ultimamente com menos gente, até porque a igreja tem limitados os lugares para sentar. E os funerais têm, em tempo de pandemia, seguido diretamente para o cemitério. No espaço de uma semana, morreram cerca de 7 pessoas no centro de acolhimento, nenhuma por questões relacionadas com a covid-19, assegura a presidente de junta, mas ainda assim, o choque é muito grande.

Principalmente, quando os nascimentos são parcos. Da comunidade de São João do Peso os mais novos residentes contados nasceram em 2014, dois rapazes gémeos. Em 2021, a freguesia será brindada com um bebé, mas a mãe não reside ali a todo o tempo, estando a morar no Entroncamento, mas mantendo ligação e visitando o lugar com frequência.

Acontece que, mesmo estando fora, continuam a ser pertença da comunidade, continuam a ser lembrados. E a presidente de junta sabe e quer estar a par do seu paradeiro, sabê-los bem e de saúde. Na esperança que nunca esqueçam as suas raízes, ainda que a sua vida passe agora por outros lugares do país e do mundo.

Rosário Cavalheiro diz que a freguesia, apesar de tudo, tem algo para oferecer. Um estilo de vida diferente, mais saudável, no meio da natureza, reunindo condições para a calma, paz e sossego necessários para formar família, criar projetos sustentáveis e quem sabe ali investir.

“O que temos para oferecer? Paz, sossego, e a boa disposição das pessoas daqui e o acolhimento. A pessoa que está farta de uma vida exausta, de muito trabalho, que procure um sítio para morar… esta freguesia tem condições para isso. Aliás, muitas das casas existentes até estão fechadas nesta altura, porque a maioria só vem cá passar férias. Outras mantêm os edifícios como património familiar, mas não o vendem, não o reabilitam nem utilizam. Aqui houve grandes capitalistas!”, exclama, para logo reclamar da falta de pensamento para o desenvolvimento futuro, num certo egoísmo das antigas famílias que ali apenas “construíram casas”.

Rosário Cavalheiro, presidente da junta de São João do Peso. A vista sobre as serranias de pinhal cerrado ainda tem manchas de negro dos fogos recentes do verão de 2019. Foto: mediotejo.net

“Não fizeram uma indústria. Se for ao Vale da Urra, tem várias indústrias de fumeiro, carne. Nem o lar acaba por gerar riqueza cá, porque muitas das pessoas que lá trabalham não são de cá, a maioria é da Sertã. E querem é vir trabalhar de manhã e ao final do dia, cerca das três da tarde, ir embora, para suas casas. E não as censuro, acontece comigo, que trabalho em Vila de Rei, e quando chega o fim do dia fico deserta para chegar cá, a minha casa, em São João do Peso. O certo é que, de quem cá trabalha, não tendo oferta de equipamentos e serviços, nem pára. Vem e vai embora”, insiste, defendendo que é preciso investir e dar novo ritmo à freguesia.

A solução está, sim, nos investimentos. Muito necessários para o desenvolvimento e subsistência desta freguesia e que Rosário Cavalheiro crê ser o principal problema para o estagnar da comunidade e a pouca atratividade. Reconhece que se trata de um problema antigo e estrutural, não compreendendo como nunca ninguém pretendeu investir ali, havendo em aldeias vizinhas diversas indústrias, nomeadamente salsicharias, fábricas de enchidos e presuntos, e outros.

Não havendo postos de trabalho que auxiliem e estimulem a fixação de pessoas e fomentem novas famílias, torna-se ainda mais difícil desenvolver aquela freguesia, dar-lhe evolução socioeconómica, renovando gerações e acrescentando as pessoas que faltam para chegar ao ideal: aos 151 eleitores que permitiriam votar nas eleições autárquicas sem plenário de cidadãos eleitores, mas antes com ida às urnas.

Para a presidente de junta, o desafio continua a ser a luta diária pela freguesia, para que não se extinga. A fazer quase 12 anos ao comando das gentes do Peso, Rosário – ou Zarita como é carinhosamente tratada – sabe que não tem forças nem armas suficientes para enfrentar algumas das grandes batalhas que é necessário travar. Batalhas com que se debatem territórios do Interior despovoado, envelhecido, desertificado, votado ao abandono porque o destino não lhe reservou horizontes mais risonhos.

Ali nasceu o escritor, romancista, dramaturgo, jornalista, cronista e ensaísta, considerado um dos grandes vultos da ficção portuguesa da segunda metade do século XX, José Cardoso Pires, que “renegou a terra até ao fim, mas acabaram por lhe dar o nome à Biblioteca [Municipal]”, lembra Rosário Cavalheiro.

José Cardoso Pires em 1983. Foto: Carlos Gil

Pausa para um aparte: Cardoso Pires, descrito na edição especial do Diário de Notícias de 1998, aquando a sua morte, como o “alfacinha da Beira Baixa”, não nutria grande carinho pela região de onde era natural. Chegou a referir, numa entrevista a Fernando Assis Pacheco para o Jornal de Letras, em março de 1981: “Aquilo é uma terra de ‘pês’, só deu padres e pedras, pinheiros e polícias.” Foi até mais longe, ao criticar que aquela terra, a da sua nascença, “transpira subser­viência”, o que lhe provocou reação contrária e o empurrou para sul, esquecendo a infância que dizia não querer lembrar por ter sido dolorosa.

“Fujo do Norte, fugir do Norte é fugir às raízes. É eu não gostar das raízes que tenho. Nunca gos­tei. Tudo o que me cheira à Beira, àquela Beira, é pior do que … (pausa) Sabes, eu não tenho relações com a família de lá, quem tem é a minha irmã. Para mim tu­do o que vem dali é mau, é o padre, o polícia… E então eu pergunto: é es­ta gente que respeito? Não é”, pode ler-se na entrevista.

Ali ainda foi restaurada a casa onde nasceu, e a Universidade Sénior incluiu um roteiro cultural por São João do Peso, interligando o seu percurso e a sua obra com a história da sede de freguesia, marcada por mosaicos identificativos instalados nos vários edifícios, monumentos e pontos de interesse histórico.

Mas voltemos ao desenvolvimento socioeconómico em falta naquela localidade e aldeias adjacentes, à medida que o território se foi esvaziando de gente. A distância para a sede de concelho e a mais difícil acessibilidade não cativam. Os empregos ficam longe. Só depois se regressa à casa de partida, para a residência. São poucos os que ali residem, e por isso, Rosário sabe quem são. “Conheço-os a todos, de fio a pavio”, diz.

“Com os ordenados que as pessoas têm, estar a viver em São João do Peso e depois terem de se deslocar para ter acesso aos serviços na vila, sede de concelho, para poder ir ao ginásio, fazer compras, ir à piscina,… Eventualmente até poderiam pensar em descentralizar serviços e equipamentos, investir fora da sede de concelho. Depois, se alguém quer fazer compras maiores desloca-se aos concelhos vizinhos, caso da Sertã, com grandes superfícies comerciais. Aqui não há nada”, reflete.

Foto: DR

Continua a defender, tal como frisou na reeleição em 2017, que o Governo central tem de intervir rapidamente com medidas eficazes de estímulo ao Interior, que captem investimento, movam e descentralizem serviços e empresas, permitindo a fixação de população oriunda de outras cidades já saturadas, nomeadamente no litoral.

Este é o retrato de um Interior que grita por socorro, que sufoca no esquecimento, mas que ergue os braços bem no alto, gritando a uma só voz. A lembrar que nestas terras vestidas de humildade, apesar do vazio que se estende, batem corações que sentem num território profundo que – contra todas as vicissitudes e em contra-ciclo – ainda mexe.

Nem o Centro de Acolhimento fez unir forças em prol de uma causa maior e de bem público, pois segundo a presidente da junta ninguém se chegou à frente na altura com terrenos disponíveis para a sua construção. Só um cidadão ofereceu o terreno e doou 25 mil euros à data, para construção desta ERPI em Sesmarias, a 2 km da sede de concelho.

E nem aqui houve consenso, com os populares a mostrarem-se contra a distância daquela infraestrutura em relação ao centro da freguesia, crendo que poderia dar outra dinâmica, possibilitando que os idosos “andassem a pé, se sentassem nos bancos do jardim, fossem à missa”. Poderia, mas na altura ninguém apresentou soluções ou apontou disponibilidade de terrenos ou propriedades suas.

“É uma questão de mentalidade das pessoas. E a culpa é também do passado, porque nunca foi aqui instalada nenhuma indústria ou atividade económica, sem ser o tradicional, como a atividade agrícola, a produção de azeite e a plantação de pinhal, onde se vai vendendo alguns pinheiros. Mas é tudo uma questão de subsistência e consumo próprio. Não há investimentos que criem riqueza na freguesia”, admite Rosário, demonstrando que a freguesia terá sempre os braços abertos para acolher iniciativas e ideias que possam contribuir para uma nova dinâmica e que estimulem a vinda de pessoas.

Foto: mediotejo.net

Mas, sublinha, nem só da vontade dos locais isso depende. O Governo central tem de pôr os olhos nestas terras e atuar. Há um exército de gente a resistir, travando duras batalhas e para as quais não tem armas necessárias, por si só, para vencer. Mas ao resistir, existe. E com isso vai fazendo para não ser mais um território, uma população, a cair em esquecimento.

Joana Rita Santos

Formada em Jornalismo, faz da vida uma compilação de pequenos prazeres, onde não falta a escrita, a leitura, a fotografia, a música. Viciada no verbo Ir, nada supera o gozo de partir à descoberta das terras, das gentes, dos trilhos e da natureza... também por isto continua a crer no jornalismo de proximidade. Já esteve mais longe de forrar as paredes de casa com estantes de livros. Não troca a paz da consciência tranquila e a gargalhada dos seus por nada deste mundo.

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