Em tempo de guerra, esperamos o estrondo das bombas, o frenesim de generais e dos seus soldados, destruição, sangue, morte. Sujidade. Na Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital de Abrantes vive-se um perturbador silêncio, num ambiente de assepsia levada ao extremo. Por estes corredores já se viveram momentos de sufoco, mas reina nos últimos dias uma estranha acalmia. Contudo, ninguém está tranquilo. Teme-se uma segunda onda de contágio. A enchente, o caos, a incapacidade de salvar todos. Que se desenganem os incautos, o “bicho” não morreu. Nem há previsão que venha a morrer tão cedo.
“Vamos ter que aprender a conviver com o vírus…” A frase já fora ouvida noutros contextos, mas fica pendente, qual balão de banda-desenhada, quando, com ela, damos por terminado o dia de reportagem na Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) do Hospital de Abrantes.
A enfermeira Ana Bretes esteve a mostrar-nos o complexo empreendimento de vestir e despir o “fato de astronauta” – forma metafórica e bem disposta como a equipa de profissionais de saúde denomina o equipamento de proteção individual que veste para tratar doentes infetados com covid-19 –, que já teve que usar muitas vezes neste período de crise pandémica.
Aguardam-se as análises de uma paciente que esteve duas semanas a vomitar em casa, evitando ir ao hospital devido à pandemia, e que agora vai precisar de cuidados intensivos. Não há confirmação, para já, que tenha covid-19, mas vai ser instalada num dos quartos reservados para o efeito.
Enfermeira há duas décadas, Ana Bretes não vê os três filhos há três semanas. A pandemia fê-la ter que optar entre a profissão e a família. A decisão “difícil” respondeu a um imperativo de dever profissional e moral, que colocou esta enfermeira na frente de batalha, ao mesmo tempo que procurou proteger os seus. Ainda assim, confessa, vai gerindo por telefone uma ou outra contenda familiar.
O seu dia é vivido entre o hospital e o Luna Hotel Turismo, em Abrantes, que possui 30 quartos reservados exclusivamente para o pessoal do CHMT, para que mantenham o distanciamento das respetivas famílias. Não se aguardam tempos fáceis, reconhece, sobretudo para quem tem filhos a ter de completar o terceiro período letivo em casa.
Nas redes sociais e alguma comunicação social, o isolamento domiciliar e o estado de emergência têm-se tornado, aos poucos, temas sem consenso. Ao longo do dia fomos questionando estes profissionais de saúde, afastados do núcleo familiar há várias semanas, sobre a real compreensão de toda a situação pandémica pela população.
Passada a Páscoa e com os números de mortos e infetados relativamente em baixa, parece haver um relaxamento geral em relação às medidas de distanciamento social. Com o aparente fim do estado de emergência e o regresso a uma sensação de normalidade, os médicos temem uma enchente de doentes no serviço.
NO HOSPITAL DE ABRANTES AS CAMAS RESERVADAS AOS CASOS MAIS GRAVES ESTÃO AGORA VAZIAS – MAS OS MÉDICOS TEMEM QUE ESTE SEJA APENAS UM MOMENTO DE ACALMIA ANTES DA TEMPESTADE
O “bicho” não morreu, nem vai morrer tão depressa. Mas a mensagem sobre os contornos específicos da pandemia e a necessidade de se manterem precauções talvez se tenha perdido algures na torrente de informação.
Um combate feito de investigação científica
Chove. A noite trouxe uma tempestade que limpou as ruas de Abrantes e vai enchendo o Tejo. No Luna Hotel Turismo quase não há movimento e a madrugada nublada embala o ambiente sonolento. Os médicos e enfermeiros que aqui têm vivido nas últimas semanas tendem a manter-se nos quartos. Saídos de pesados turnos no hospital, o objetivo primeiro é tomar um duche e descansar, reservando também o distanciamento social dos colegas. Pelas 08h00 da manhã o salão está vazio, surgindo apenas os entrevistados com quem combinámos um encontro.
Um silêncio persistente, algo perturbador, vai acompanhar-nos todo o dia. Talvez o erro tenha sido imaginar um cenário como os de outras frentes de batalha, qual hotel madrileno em pleno bombardeamento das tropas fiéis a Franco, com Ernest Hemingway e Martha Gellhorn a discutirem os preâmbulos e ângulos do jornalismo de guerra.
Mas a guerra à covid-19, tal como a sua propagação, é feita em silêncio, num cenário de enganadora pacificidade. O combate decorre em isolamento individual, estudando todos os dias a investigação científica mais recente. As armas são a ciência, o raciocínio lógico, o pensamento crítico. A emoção, barulhenta por natureza, terá que ser deixada para outras querelas.

André Real é médico na medicina interna e estava para fazer o exame para medicina intensiva quando surgiu a pandemia. Lucília Pessoa é especialista em medicina intensiva. Ambos acompanham de um ponto privilegiado o lado mais negro da covid-19, os casos mais graves, que necessitam dos famigerados ventiladores (ao longo do dia é-nos explicado que a opção pelo ventilador já é de si extrema, dadas as consequências secundárias que traz para os entubados). Preparamo-nos para acompanhar o turno de ambos na UCI, mas queremos saber como vivem o seu tempo em isolamento neste hotel abrantino.
André Real vive há duas semanas no hotel, fazendo uma rotina exclusiva entre o seu quarto e o trabalho no hospital. A família ficou em casa, a aguardar o seu regresso. “Tentamos não pensar muito”, reflete, “estamos na frente da batalha e realmente o nosso objetivo e o nosso foco é o doente. Obviamente que deixamos uma família para trás. De um dia para o outro deixamos as nossas coisas, os nosso filhos, a nossa esposa e dedicamos-nos exclusivamente ao trabalho e a descansar… se é que se pode dizer isso”.
O médico admite porém uma certa “revolta interior” com o que vê passar-se nas ruas. “A grande maioria da população não cumpre as recomendações da DGS”, lamenta. Esta atitude, refere, vai acabar por fazer os casos aumentarem, o que vai sobrecarregar os hospitais e conduzir a uma maior probabilidade de erro médico, devido ao cansaço. “Se nós errarmos mais, vamos prejudicar mais o doente”, além do que há mais risco do próprio médico se infetar.
“As pessoas têm que estar cientes do que é esta época, esta doença e o momento que nós vivemos. E as pessoas não estão. Muito por culpa também do que lhes é transmitido, pelas redes sociais, pela televisão”, reflete. A doença, explica, é grave e as precauções têm que ser mantidas para se evitar cenários doutros países.
O contacto com a família tem sido feito por videochamada. Também já chegou a fazer compras e a levá-las a casa, deixando-as junto ao muro. “Falamos essencialmente de quando é que nós achamos que isto vai terminar. Não sabemos. Isto não envolve só os soldados que estão na frente da batalha, envolve todo o comportamento da sociedade”, refere.
Lucília Pessoa também não vai a casa há várias semanas, com a diferença que é de Oeiras, pelo que não pode fazer visitas à distância de um muro, como o colega. Por telefone vai falando com os filhos, já adultos, ou a mãe, já nos 80 anos. “Vamos conversando”, comenta, referindo que a família lhe vai afirmando que está “a fazer um trabalho importante, e que isto um dia vai passar”.

A chegada da pandemia não mudou significativa a sua rotina de trabalho, uma vez que os cuidados intensivos já recebem por norma os doentes mais críticos. “Nós nunca atiramos a toalha ao chão”, afirma.
No isolamento do hotel, vai tentando estar a par da evolução da informação sobre o vírus, que discute com os colegas no serviço ou encaminha por WhatsApp. “Sendo uma situação muito nova, que não se sabe muito bem pormenores de como vai evoluir, estamos sempre a receber artigos, informação de outros sítios, nomeadamente de países que já passaram pela crise e por crises piores”, refere.
A tentativa dos dirigentes nacionais de não promover o pânico, reflete a médica, está a ter uma consequência que a preocupa, neste caso a relativização do impacto do vírus pela população. “As pessoas percebem aquilo que lhes estão a dizer”, refere. Porém, o governo e a autoridade de saúde “estão a passar a informação de que a crise grande passou, o perigo grande passou, e as pessoas estão a começar a relaxar um bocadinho nos distanciamentos, nas medidas de contenção, estão a aligeirar demais”.
Por tal, preocupa-a o futuro: a chegada da segunda onda de contágio, o tempo que levará a descobrir uma eventual vacina ou tratamentos mais eficazes. Porque o vírus, afirma, “não está controlado”.
Ainda assim, deixa uma nota de otimismo. “A nossa unidade organizou-se atempadamente e estamos preparados para receber a grande enchente”, refere. Não há visitas, pelo que o contacto com as famílias por vezes é mais difícil, tendo que ser realizado por telefone. “Vivemos muito o drama das famílias”, admite.
Um turno nos cuidados intensivos em tempo de pandemia
Hospital de Abrantes, 6º piso, Unidade de Cuidados Intensivos. O cheiro forte a álcool intoxica, expelido num jacto que nos surpreende as narinas e faz lacrimejar os olhos. Parece que nos quer desinfetar não só as mãos como também o corpo, quiçá a alma. Em ato continuo, num tempo em que todos revelamos uma faceta meio obsessivo-compulsiva, procuramos o bendito frasco em toda a sala onde entramos.
A máscara tem um ligeiro truque para se adaptar ao rosto, mas ao fim de três horas já só queremos respirar livremente. O “fato de astronauta” é atualmente quase uma experiência sociológica de moda.
Com uma vasta lista de passos a serem executados para que se responda a uma total proteção, quem é obrigado a vestir este equipamento, e a despi-lo – o processo ainda demora mais tempo, com vários passos de desinfeção –, fica num quarto com um doente infetado durante um máximo de quatro horas. A viseira e os óculos ferem o rosto, o fato é quente e desconfortável e não se podem ligar os ares condicionados. Ao fim de quatro horas já há mais dióxido de carbono que oxigénio a circular e o profissional de saúde tem que se despir antes que comece a sentir-se mal.
Neste dia de abril, porém, as 19 camas preparadas para os doentes de Covid-19, num total de 32 no serviço, estão vazias. Há pacientes na UCI, mas tratam-se outras doenças. Após um mês de estado de emergência, observam-se aqui alguns danos colaterais da pandemia. As urgências diminuíram 50% mas quem está nesta manhã nos cuidados intensivos andou a evitar o hospital durante demasiado tempo.

André Real e Lucília Pessoa juntam-se à restante equipa e preparam o dia. O espírito é relaxado e de alguma boa disposição. Depois de semanas mais intensas, os últimos dias têm sido mais pacíficos, permitindo aos profissionais descontrair e refletir sobre a evolução dos acontecimentos.
Durante a manhã, o ponto alto é a apresentação de um novo ventilador, um modelo mais moderno de equipamento, que capta a atenção dos médicos durante algumas horas. Antes do almoço, há uma chamada para a urgência, onde dois pacientes aguardam a análise da equipa da UCI.
Percorremos corredores vazios de gente e de sons. Macas vazias encostadas às paredes. Silêncio. Demasiado silêncio. O que significa este silêncio?
Ajustar a máscara, desinfetar as mãos. No elevador pressionam-se os botões com o cotovelo. Arrisca-se libertar ligeiramente o nariz e inspirar uma lufada de oxigénio.

No 9º piso, na Medicina Interna 1, estão internados 13 doentes com covid-19, o setor destinado aos doentes de risco intermédio (há 26 camas preparadas para este efeito). O mais jovem tem 55 anos, o mais velho 90 anos.
A enfermeira Telma Silva explica que estes são doentes que tanto podem vir da urgência ou já referenciados do exterior, ou mesmo transferidos da UCI. Em todos eles o diagnóstico de covid-19 está confirmado e exige que os profissionais usem equipamentos de proteção, embora em alguns casos já não seja necessária toda a complicada indumentária.
“A imagem que toda a gente tem é que a doença é sinónimo de morte”, admite, sendo esta a principal preocupação dos doentes que por aqui vão ficando internados. A equipa tenta minimizar o desconforto do doente e procura transmitir uma mensagem positiva, que vai tudo correr bem.
Telma Silva e o marido são enfermeiros e não têm filhos, pelo que a pandemia não lhe afetou a rotina. Frisa, porém, a entreajuda a que tem assistido, inclusive da própria comunidade. “Temos que nos sentir agradecidos”, reflete.
À entrada da Medicina Interna 1 vê-se uma linha vermelha. É a divisória para a área covid-19. Quem por ali segue veste o “fato de astronauta”, numa caminhada solitária até aos doentes em isolamento. Por aqui não temos autorização para entrar e os doentes são mantidos longe dos holofotes mediáticos.

No 6º piso o dia mantém-se tranquilo e só uma senhora que levou duas semanas a acorrer às urgências parece inspirar preocupação. Nuno Catorze, diretor do Departamento de Urgências do CHMT e responsável por esta unidade especial de cuidados intensivos, foi finalmente a casa, depois de duas semanas de afastamento. “É duro, é muito duro”, admitiu, reconhecendo que as próprias crianças acabam por ter medo de serem infetadas, gerando-se toda uma incerteza neste ansiado contacto familiar.
Pela UCI a organização do serviço para receber doentes covid-19 foi realizada recolhendo a experiência dos profissionais e as diretivas da Direção-geral de Saúde e da Organização Mundial de Saúde. “Não foi fácil, não estávamos preparados”, reconheceu o responsável, frisando o intenso trabalho de preparação.
Depois de um mês de estado de emergência, porém, Nuno Catorze, tal como os colegas, não está descansado. “As pessoas acham que foi todo controlado agora, depois da Páscoa. Acreditam nos números e os números são mágicos. E portanto começaram todas elas a aliviar o seu confinamento social e começam a andar na rua”, constata. Teme assim não só pelo recrudescimento da pandemia, mas também por todas aquelas pessoas que em vez de acorrerem ao hospital ficaram em casa e que estarão agora pior de saúde.
Nuno Catorze já viu o pior da covid-19. “É tão má como dizem, é tão grave como descrevem”, garante, embora seja semelhante a outras doenças com as mesmas características.
“As pessoas acham que foi todo controlado depois da Páscoa. Acreditam nos números e os números são mágicos. E portanto começaram todas elas a aliviar o seu confinamento social e a andar na rua”, lamenta o médico Nuno Catorze

Maria Madalena Loureiro, assistente operacional, conhece bem o perigo das infeções. A pandemia de covid-19 não alterou particularmente as suas rotinas, já bastante exigentes num serviço como a UCI, mas reforçou-as. O fator humano é que por vezes mexe com o coração. “Não é fácil”, reconhece, e há “dias difíceis”, assim como momentos em que se vai para casa a chorar. Atualmente “vive-se um dia de cada vez”.
Com uma grande confiança na equipa do Hospital de Abrantes, Maria Madalena destaca a importância do apoio mútuo que encontra nos colegas. Chegou a isolar-se uma semana, mas agora vai todos os dias a casa, tendo a filha de 20 anos ido para Évora, onde estuda, para evitar um possível contágio.

O turno termina com o alívio de se despir o “fato de astronauta”. Lucília Pessoa e André Real encerram o dia de trabalho e regressam ao hotel, pensando já nas horas que faltam para regressarem de novo.
O hospital está preparado para a grande “invasão”, mas os médicos são humanos, têm coração. Preocupam-se, afligem-se, tentam antecipar todos os cenários para que nada lhes possa escapar. Talvez este seja o significado, afinal, de tamanho silêncio naqueles corredores. Para quem ali trabalha, este será apenas um período de acalmia antes da grande tempestade.