Créditos: mediotejo.net

Passam hoje seis meses sobre o registo do primeiro caso de infeção por covid-19 na região: foi a 16 de março que uma mulher de Tomar foi diagnosticada com a doença provocada pelo SARS-CoV-2, o coronavírus que continua a manter o mundo refém do medo. Desde então, nos 13 concelhos do Médio Tejo foram registados 584 casos e morreram 16 pessoas. Conversámos com alguns doentes para perceber como as suas vidas mudaram após um diagnóstico de covid-19, e como foi lutar ainda contra outro vírus poderoso: o da estigmatização, especialmente ativo nos meios mais pequenos.

Aos 4 anos, Carolina foi a paciente mais nova diagnosticada com covid-19 na região do Médio Tejo. Quem a vê saltitar pelo pátio de casa descobre apenas uma criança como as outras, cheia de energia, sempre com um sorriso e uma pergunta curiosa na ponta da língua. Depois nos apresentar o cão e o gato, o escorrega e algumas bonecas, dá espaço aos crescidos para as suas conversas e regressa ao mundo do faz de conta. Nota-se que está habituada a brincar sozinha – e agora, nesta “era coronavírus”, não teve mesmo outro remédio.

Os pais, Marisa e Nuno Tavares, ambos professores, vivem durante a época escolar num apartamento em Almeirim, mas têm uma casa grande no Sardoal, terra de origem do pai. Foi ali que se refugiaram para fazer a quarentena, quando receberam a notícia de que a Carolina testara positivo para o SARS-CoV-2.

Carolina foi, aos 4 anos, a paciente mais nova diagnosticada com covid-19, no Médio Tejo. Fotografia: Paulo Jorge de Sousa / mediotejo.net

O diagnóstico surgiu por acaso – é uma das muitas “pontas de icebergue” que se tornaram visíveis, apenas porque se reuniu um conjunto de circunstâncias num período muito específico. Uma semana antes, ou uma semana depois, talvez a menina não tivesse indicação para ser testada. Milhares de outras crianças com sintomas semelhantes não foram encaminhadas da mesma forma pelos serviços de saúde, nos últimos meses.

Carolina tem um histórico de infeções respiratórias e pneumonias, é usual ter viroses e febres tão altas que entra em convulsão. Quando adoece, fica com tanta expectoração que os pais dormem com ela, para assegurar que não sufoca com os vómitos que a tosse lhe costuma provocar. Por isso, quando a menina ficou “mais mole” e viram que tinha 38ºC de febre, não valorizaram muito o quadro. Contudo, perante as notícias, a mãe perguntou ao pediatra que os acompanha o que deveria fazer, e ele achou por bem que ligassem para a Saúde 24.

Os pais assim fizeram, naquele 27 de março. Vivíamos uma fase muito específica do combate à doença, e os médicos receberam ordens para, basicamente, “testar, testar, testar”. E por isso encaminharam a Carolina para a pediatria do hospital de Torres Novas. O primeiro diagnóstico foi imediato: amigdalite bacteriana. Os pais ficaram descansados; estava aí a razão para a febre. Foram para casa, ela iniciou a toma do antibiótico, dormiu bem e acordou quase como nova. Não voltou a ter febre, nem qualquer outra queixa. Mas, na manhã seguinte, quando o telefone tocou, o coração dos pais ficou num aperto: o teste dera positivo, a menina tinha covid-19.

“Eu nem queria acreditar”, recorda a mãe, enquanto Carolina saltita à volta da casa, numa corrida de cavalos imaginária. Os pais não tinham sintomas de maior – Nuno notara somente que estava sem olfacto e paladar, Marisa tinha dores nas costas – e, por isso, não foram testados. “Disseram-nos apenas para ficarmos em isolamento 14 dias, e assim fizemos”, explica o pai.

As brincadeiras de Carolina ficaram circunscritas ao pátio da casa no Sardoal, com as suas bonecas, o cão e o gato. Fotografia: Paulo Jorge de Sousa / mediotejo.net

Todos os dias a Delegada de Saúde ligava para saber como estava a menina e se os pais se mantinham assintomáticos. “A Carolina nunca mais teve febre e esteve sempre bem naqueles dias”, conta a mãe. “Estava até melhor do que era costume, sem problemas nenhuns de alergias ou de respiração… Até ganhou apetite! Costumamos brincar e dizer que o covid para ela foi uma boa vacina!”

Porém, naqueles primeiros dias de incerteza, com receio de que o vírus pudesse amarrar-lhes a filha a um ventilador, na cabeça dos pais as perguntas davam voltas sem fim. Como é que teria sido infetada? As aulas presenciais terminaram a 13 de março e Marisa recorda que havia muita gente constipada nessa altura. “Tive alunos [do 3º ano do 1º ciclo] muito doentes na sala de aula, com febre até, que iam à escola porque havia testes finais [do período escolar]”, comenta, acrescentando que, das colegas professoras com quem dividia habitualmente o transporte de carro até Salvaterra, duas estiveram também engripadas, “com uma tosse terrível”.

Nuno, professor de educação física, foi pela mesma altura internado no hospital de Santarém com uma apendicite, e teve alta a 16 de março. Poderia ter ficado infetado lá? É impossível saber.

Refugiaram-se no Sardoal, onde familiares e amigos lhes levavam comida à porta, e continuaram a dar aulas, por videoconferência. “Sentíamo-nos bem, não fazia sentido estarmos de baixa, e os nossos alunos também precisavam de nós”, explicam. Ali à volta ninguém sabia do diagnóstico da menina, e como não saíam à rua, não tiveram de lidar os problemas que acabaram por afetar outros familiares seus.

O caso tornou-se complicado sobretudo para a mãe e o irmão de Marisa, que vivem em Benfica do Ribatejo. “Como a avó tinha estado com a menina, assumiram logo que ela também estaria infetada”, conta. “E como o meu irmão ia jantar todos os dias a casa da minha mãe, também estaria…” O irmão tem uma empresa agrícola e, nas semanas seguintes, ficou quase sem trabalhadores e perdeu parte das colheitas. Ninguém queria trabalhar, tinham medo de ser infetados pelo patrão, e só admitiam voltar aos campos se ele pagasse testes a todos.

Por toda a vila ribatejana havia ondas de choque por causa do teste positivo da menina. Até a mulher de um funcionário do irmão já era descriminada no seu trabalho, e teve de ir fazer um exame a um laboratório privado para continuar ao serviço. A mãe e o irmão acabaram por fazer também um teste, ao contrário dos próprios pais da menina, e só com esses resultados negativos o falatório acalmou. “Foram tempos muito complicados… a minha mãe só chorava”, lamenta Marisa.

A estigmatização de doentes com covid-19 é sobretudo notória nos meios mais pequenos, onde todos se conhecem. Num prédio de Lisboa por vezes nem se sabe o nome do vizinho do 3º andar, quanto mais se está ou esteve doente. Na rua de uma aldeia, só a ténue possibilidade de alguém ter estado próximo de um caso é suficiente para fazer soar alarmes. E depois dos 14 dias de isolamento, ou com testes já negativos à doença, a maioria mantém-se em casa. Não é fácil encarar os vizinhos que mudam de passeio ou aguentar as críticas que se ouvem nos cafés.

“O meu pai todos os dias ia jogar às cartas com os amigos, era a grande alegria dele. Agora está há dois meses fechado, ninguém o quer por perto…”, conta Maria Neves, que prefere não identificar a aldeia de residência da família, no concelho de Torres Novas. Por mais que as autoridades de saúde pública tentem passar a mensagem de que as pessoas podem voltar à sua vida normal depois de terem alta, o medo do desconhecido prevalece. Na dúvida, mantém-se a distância. “Dá dó vê-lo por casa, mais triste a cada dia que passa.”

É uma realidade que Raquel Pedro, 27 anos, bombeira no Entroncamento, conhece bem. Todos os dias transporta idosos para os hospitais, quer na região quer para tratamentos em outras zonas do país, e a solidão e o isolamento dos mais velhos – que já era um problema – tem-se agravado nos últimos meses. Quando foi chamada para realizar um teste de despistagem à covid-19 nem pensou muito no assunto. É nova, saudável, sentia-se bem. Ficou por isso em estado de choque quando, na manhã seguinte, acordou com um telefonema e a voz grave da Delegada de Saúde de Pública comunicando-lhe que estava infetada com o SARS-CoV-2.

A bombeira Raquel Pedro ficou doente num transporte ao serviço da corporação do Entroncamento. Fotografia: mediotejo.net

“Chorei muito, não estava nada à espera”, conta, à mesa de um café da rua onde vive, no centro da cidade ferroviária. O namorado tinha estado ausente em trabalho e regressara de viagem na noite anterior, já ela dormia, ainda mal se tinham visto. Só conseguiu dizer-lhe para saltar da cama, sem saber o que fazer a seguir.

Nos Bombeiros Voluntários do Entroncamento houve um outro caso positivo, de uma colega que a ajudou a colocar a questão em perspetiva. Na verdade, não tinha qualquer sintoma. Estava bem e iria superar a situação, seriam umas “férias” forçadas. Com o passar dos dias, e sem febre ou qualquer outro sintoma, ficou mais confiante. O namorado não ficou doente e foi duro permanecer isolada, sem sair de casa, mas com o apoio dos camaradas bombeiros e da família os dias acabaram por passar. Duas semanas depois repetiu o teste e já estava negativo. Dias mais tarde estava de novo ao serviço.

No Entroncamento não sentiu qualquer estigmatização. Na sua rua, diz, talvez ninguém tenha percebido que esteve “doente”. E entre os bombeiros, e por parte das suas chefias, só sentiu solidariedade. Contudo, ficou vários meses sem ir à sua terra natal, Fontes, no concelho de Abrantes, onde residem os seus pais. Passar por esta doença ali teria sido mais difícil, admite. Talvez o medo se agigante de forma diferente nas terras mais pequenas. Os silêncios calam mais fundo, os olhares pesam-nos mais.

De volta ao trabalho, Raquel Pedro continua a transportar doentes que podem ter covid-19, mas decidiu que não iria entrar em pânico a cada serviço. “Tenho todos os cuidados, protejo-me como posso e nalguns casos dou até o meu contacto à família, para se houver um teste positivo me avisarem mais depressa”, explica. A vida tem de continuar, e há uma missão a cumprir a cada novo dia. “Sou tripulante de ambulância, é a minha profissão e gosto muito do que faço.”

Ter a doença sem dar por nada

A grande maioria dos infectados com o SARS-CoV-2 não apresenta qualquer queixa, sobretudo abaixo dos 65 anos. E isso gera ainda mais medo, transformando em suspeitos todos aqueles com quem nos cruzamos. Até quando teremos de viver desta forma? Ninguém sabe, mas a diretora da Unidade de Saúde do Médio Tejo não está otimista. “Teremos de preparar-nos para viver com este vírus por muito tempo, largos meses, se não anos”, até haver tratamento para a doença, diz Maria dos Anjos Esperança. “A História mostra-nos que, se não tivermos cuidado e começarmos a pensar que tudo já passou, vamos ter problemas… Tudo volta – e volta muito pior.”

Ana Rita Mendes e Carlos Cardoso são ambos enfermeiros, com um bebé em casa e outro a caminho. Foram particularmente difíceis os dias de isolamento dela, infectada em serviço, no hospital de Tomar. Fotografia: Patrícia Fonseca / mediotejo.net

A tristeza não entra na casa dos enfermeiros Carlos Cardoso e Ana Rita Mendes, nem mesmo perante a possibilidade de quase ninguém ir ao seu casamento [que planeavam na altura desta entrevista]. Mesmo numa “versão minimalista”, com poucas pessoas e distâncias asseguradas na igreja e no copo de água, muitos familiares já anunciaram que não vão estar presentes. “Temos de perceber, há um grande receio à volta desta doença”, comenta Ana Rita, que ficou infectada com covid-19 em serviço, no Hospital de Tomar.

Foi testada por precaução, pois tinha substituído uma colega na administração de um medicamento a um paciente de medicina interna que, dias depois, foi diagnosticado com covid-19. Limitou-se a entrar no quarto para lhe dar um medicamento injetável, intramuscular. Como já era do protocolo, usou máscara e luvas, entrou e saiu em dois minutos. “Umas semanas antes andava aflita com a minha renite alérgica, nesses dias até me sentia especialmente bem, nunca pensei que podia estar doente…”, comenta. Ela e outra colega testaram positivo, quando outros profissionais de saúde que tiveram mais contactos com o doente não ficaram infetados. “É difícil perceber o comportamento deste vírus”, diz, num encolher de ombros.

A ideia de ter de ficar em isolamento era o que mais a assustava, nos primeiros momentos após receber a notícia, pois não concebia ficar longe do seu bebé de 9 meses. Por outro lado, temia infetar o filho. Que fazer? Pesados os prós e os contras, com o apoio dos profissionais médicos que a acompanharam, decidiu manter contacto com o Diogo.

Carlos, enfermeiro no Hospital de Torres Novas, também fez o teste à covid-19 e, apesar de negativo, devido à profissão que desempenha, cumpriu os 14 dias de isolamento em casa, usando outro quarto e outra casa de banho. O filho foi, nesses dias, a única ponte entre o casal.

“Nos primeiros dias tive medo do que poderia acontecer. Olhava para o meu filho a dormir e pensava no que seria o futuro dele sem mim. Cheguei a despedir-me, confortada com a ideia de que o pai iria cuidar bem dele.”

Com o passar dos dias, sem febre ou qualquer outro sintoma, começou a descontrair. E depressa chegou a hora de realizar novo teste, para averiguar se a infeção se mantinha ativa. O casal foi testado por duas vezes no Hospital de Abrantes, com um intervalo de 48 horas, e os resultados de ambos revelaram-se sempre negativos, ficando assim com “carta branca” para regressarem ao trabalho.

Voltaram ao serviço, sabendo que a cada dia arriscam um encontro com o vírus. “Estamos, como se costuma dizer, na linha da frente”, comenta Carlos, mas é a vida que escolheram. Tomando sempre os devidos cuidados, tentam não pensar muito nisso.

Preferem ocupar a mente com o casamento, aplaudir os primeiros passos do Diogo ou pensar no nome que vão dar ao seu irmão ou irmã, que cresce já no ventre de Ana Rita – um triunfo do amor em tempos de pandemia.

Patrícia Fonseca

Sou diretora do jornal mediotejo.net e da revista Ponto, e diretora editorial da Médio Tejo Edições / Origami Livros. Sou jornalista profissional desde 1995 e tenho a felicidade de ter corrido mundo a fazer o que mais gosto, testemunhando momentos cruciais da história mundial. Fui grande-repórter da revista Visão e algumas da reportagens que escrevi foram premiadas a nível nacional e internacional. Mas a maior recompensa desta profissão será sempre a promessa contida em cada texto: a possibilidade de questionar, inquietar, surpreender, emocionar e, quem sabe, fazer a diferença. Cresci no Tramagal, terra onde aprendi as primeiras letras e os valores da fraternidade e da liberdade. Mantenho-me apaixonada pelo processo de descoberta, investigação e escrita de uma boa história. Gosto de plantar árvores e flores, sou mãe a dobrar e escrevi quatro livros.

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