Com a chegada da pandemia, os custos “mais do que decuplicaram”, consequência da aquisição de equipamentos de proteção individual e produtos desinfetantes. Foto: DR

As funerárias são um negócio, mas este não é trabalho para qualquer um. Com o surgimento da pandemia, o quotidiano de um agente funerário ficou descaracterizado e os trabalhadores viram-se confrontados com a incerteza e a exigência de adaptação a regras pouco claras. Expostos ao perigo e numa linha da frente que passa despercebida a muitos olhos, o dever chama a qualquer hora e nas circunstâncias mais inesperadas. A par disto tudo, está a missão de consciencializar as famílias para a necessidade de evitar presenças de amigos e familiares nas cerimónias, nem sempre com sucesso. Numa altura em que a região do Médio Tejo registou já 143 óbitos por covid-19, o mediotejo.net foi conhecer a realidade dos técnicos de serviços funerários.

“Acredito que uma boa parte dos contágios [de covid-19] na nossa região se tenham desenvolvido em velórios, porque já vi pessoas com as lágrimas a escorrer cara abaixo e a beijarem-se”. Quem o diz é Nuno Carola, agente funerário e responsável técnico pela Agência Funerária Paulino, em atividade desde 1925, com sede na cidade de Abrantes. A pandemia veio deixar “completamente descaracterizado” o quotidiano de Nuno e dos seus funcionários quer na sede, em Abrantes, quer na filial, em Vila de Rei. Em declarações ao mediotejo.net, confessa existirem lacunas na regulamentação dos procedimentos a tomar, num verdadeiro “cada um faz o que quer”. Mas já lá vamos.

Antes do aparecimento da pandemia, o trabalho de um técnico de serviços funerários já exigia complexas regras de gestão e atuação, numa articulação constante com os operadores locais – desde o presidente de Junta ao coveiro, sem esquecer a senhora que toca o sino da Igreja e até o senhor do café onde se colocam os editais. Nuno Carola admite que é preciso “ter um certo feeling para trabalhar nesta área”. “É preciso adquirir um know-how, ter boas relações estabelecidas. Isto é preciso quase estar no sangue das pessoas”, diz, considerando que “não é qualquer um que tem essa capacidade”.

Um dos principais problemas com que se depararam as funerárias no início da pandemia foi a falta de material de proteção. As empresas não tinham equipamento para vender, lamenta Nuno Carola, recordando um episódio, quando teve de ir em serviço ao Hospital de Santo António, no Porto, tendo como proteção “apenas “um filtro de café”

Num trabalho em que não existe um código deontológico definido a nível nacional, aos agentes funerários resta regerem-se pelos princípios éticos. Em oito anos, Nuno Carola já violou duas vezes um dos que mais procurar seguir à risca: chorar. “A família vê em nós a tranquilidade de todo o processo e a segurança do processo. Agora, se nós entrarmos ali numa manifestação coletiva de choro é uma desgraça. Perde-se ali o pilar, a referência que a família tem durante aquele tempo. É importante as pessoas perceberem que estou aqui para as ajudar”, diz.

Técnicos de serviços funerários após tratamento de cadáver de covid-19. Foto: DR

Com a experiência das situações pelas quais vão passando, vem uma aprendizagem maior. “Aprende-se a lidar com a morte. Estou aqui há oito anos e já me passaram uns milhares valentes de processos de funeral pelas mãos. Mas cada caso é um caso, cada família tem a sua história”, diz Nuno Carola, assumindo que “a centralidade deste trabalho é trabalhar com os vivos. (…) Trabalhamos com a morte mas o nosso foco é nos vivos”. E, nessa linha, há todo um processo rigoroso para que nada falhe na última homenagem a um ente querido.

O TRABALHO INVÍSIVEL PARA QUE NADA FALHE NA ÚLTIMA HOMENAGEM

“Nós temos que estar com muitas coisas na cabeça para que tudo corra bem, para que aquela homenagem que a família quer fazer seja, de facto, o que eles desejam. É a última coisa que se vai fazer àquela pessoa”, lembra Nuno Carola.

Num trabalho cujo resultado tem em vista não a satisfação mas sim a “mitigação da dor” das pessoas, uma das regras base é “a consciencialização dos clientes de tudo o que vai acontecer”. “O nosso trabalho passa sobretudo por saber explicar às pessoas cada passo que vai ser dado – prazos legais, logística, as normas de cada cemitério e casa mortuária. É sobretudo fazer o cliente sentir que tem consciência de tudo o que vai acontecer (…) Saber explicar às pessoas, ajudá-las a compreender, porque bem basta a circunstância que é angustiante”, refere.

A par das competências técnicas, as competências emocionais dos agentes são indispensáveis para conseguir proporcionar um último adeus digno, nomeadamente a capacidade de lidar com diferentes personalidades, temperamentos e reações.

“Nem todos têm a mesma emotividade e nós podemos esperar todo o tipo de reações. As pessoas estão numa espécie de misto de sentimentos. Por um lado, o sentimento de dor pela perda do seu familiar. Por outro, a revolta, o ‘porque é que isto aconteceu a mim’. Temos que estar sempre à espera das reações mais adversas. Temos também que ter a capacidade de, a bem do cliente, saber reagir a elas”, explica. Para isso, Nuno socorre-se da experiência e da leitura de livros sobre a temática, nas horas vazias.

Assim que é recebido o contacto por parte do cliente, existem duas vias, consoante o óbito tenha ocorrido em casa ou em instituição/hospital. “Quando é em casa temos de fazer a ponte entre a autoridade e o médico de família, a fim de que se possa proceder à emissão do certificado de óbito e transportar o corpo para a casa mortuária. Quando é no hospital é ir lá buscá-lo e iniciarmos o velório”, elucida-nos. É que a morte, além de ser um momento da vida das pessoas e “um momento social de cada comunidade” é também “um processo administrativo”, conforme admite o responsável técnico da Agência Funerária Paulino.

Pelas mãos de Nuno Carola e dos seus técnicos já passaram muitos mortos por covid-19, como os idosos vítimas do surto no lar do Pego

“Há muito trabalho que as pessoas não veem, sobretudo a parte burocrática de conjugarmos o horário do padre com o do presidente da junta, com o nosso próprio horário. Isso, de facto, as pessoas não se apercebem da trabalheira e da responsabilidade que é a preparação de um funeral, porque temos muitas normas legais”, acrescenta.

Nuno Carola, técnico de serviços funerários, trabalha na área há oito anos e é gerente da funerária em Abrantes desde outubro de 2020. Foto: mediotejo.net

Em isenção de horários, a disponibilidade é permanente, incluindo fins-de-semana e feriados. Nuno Carola e os seus técnicos trabalham sob a máxima de que esta é uma missão. “Acabamos por pôr muito de lado a questão do negócio”, confessa. Compara a sua profissão à de um bombeiro ou operador do INEM, pela imprevisibilidade quer de horários quer das “condições impensáveis, nos dias de hoje, que vamos encontrar”.

“As pessoas não fazem ideia do que é entrar numa casa e pensar que já ninguém vivia naquelas condições. Entrar numa casa e, sobretudo nestes tempos difíceis em que se deve guardar reserva de convívios, chegar e ver uma casa cheia de gente, até vizinhos entram. Isto exige, num curto espaço de tempo, fazer uma análise de segurança da situação”, revela-nos. Em tempos de pandemia, os cuidados tornaram-se mais apertados e todos os pormenores são tidos em conta para que o serviço decorra com a maior segurança possível, quer para quem organiza quer para a família.

A CHEGADA DA COVID-19: OS “TEMPOS NEGROS” DO “SALVE-SE QUEM PUDER”

“Atualmente, não estamos a preparar nenhum corpo em casa. Trazemo-lo para as nossas instalações e fazemo-lo cá em segurança. Até porque não vamos nós levar o nosso equipamento todo para dentro das casas das pessoas porque também andamos em todo o lado”, elucida o responsável.

Numa profissão em que o teletrabalho não é opção e em que o contacto é sempre direto com as pessoas, a chegada da pandemia trouxe consigo a incerteza e uma mão cheia de questões que ao dia de hoje ainda permanecem sem uma resposta clara. Nuno Carola admite mesmo que o seu trabalho ficou “completamente descaracterizado” em relação ao que era o quotidiano.

“Todos nos sentimos perdidos. Vimos notícias a aparecerem diariamente, a sermos bombardeados com perguntas, a autoridade de saúde calada, nós tínhamos notícias de que morriam pessoas noutros países [com covid] (…) e começou-se a colocar a questão ‘E cá? Como vamos fazer? Vestimos os corpos ou não vestimos?’. Foram tempos difíceis, foram tempos negros. [No início da pandemia] foi o salve-se quem puder”, revela-nos.

“Todos nos sentimos perdidos. (…) autoridade de saúde calada e nós sem sabermos como vamos fazer. Vestimos os corpos ou não vestimos? Foram tempos difíceis, foram tempos negros. [No início da pandemia] foi o salve-se quem puder”

Um dos principais problemas com que se depararam as funerárias no início da pandemia foi, desde logo, a falta de material de proteção, os chamados Equipamentos de Proteção Individual (EPI). As empresas não tinham material para vender, lamenta Nuno Carola, recordando um episódio, quando teve de ir em serviço ao Hospital de Santo António, no Porto, tendo como proteção apenas “um filtro de café”.

Sem resposta por parte da Direção-Geral da Saúde quanto ao tratamento dos cadáveres, foi da parte da Associação Nacional das Empresas Lutuosas que surgiu uma luz ao fundo do túnel, com a emissão de um guia sem caráter vinculativo mas que serviu de orientação.

Os cadáveres deixaram de ser vestidos e começaram a ser colocados apenas dentro de um sudário em PVC. “Um saco, literalmente”, constata Nuno Carola. Uma prática que começou a ser realizada pelos hospitais mas que levantou questões por “começaram a fazer isto com todos os cadáveres”, quer fossem infetados ou não pelo novo coronavírus.

Nuno Carola, que além de responsável técnico da Agência Funerária é também o técnico de higiene e segurança da firma, conta-nos que no seu novo dia a dia, bem como no dos dois colaboradores técnicos de serviços funerários, passaram a fazer parte os fatos de proteção, os pezinhos de plástico, as toucas, as viseiras, as máscaras e as luvas. Atualmente, já conseguem aceder facilmente ao mercado dos EPI’s e dos químicos de desinfeção. No entanto, os custos “mais do que decuplicaram”, fator que levou a que “alguns funerais, para não dizer todos, sofressem um aumento” de preço. “Tivemos de adequar as coisas ao real custo que tinham, porque isto é uma coisa que nunca se vivenciou”, diz.

Estão “precisamente no olho do furacão” e, por isso, são alvo de testes à covid-19 regularmente. Até ao momento, a agência, quer a sede em Abrantes quer a filial em Vila de Rei, não registou qualquer caso de infeção por via profissional. Resultado que se deve ao mínimo relacionamento possível entre colegas e ao cumprimento de normas como “usar a máscara e desinfetar os carros a cada utilização”.

Pelas mãos de Nuno Carola e dos seus técnicos já passaram, a título exemplificativo, os mortos com covid-19 provenientes do surto do lar do Pego. Entre os números de vítimas que vão aumentando a cada dia, o responsável funerário relembra que a pessoa mais jovem cujo funeral foi levado a cabo pela sua agência tinha cerca de 50 anos.

A par dos novos tempos tiveram de ser criadas novas soluções, como a encontrada para a proibição de abrir a urna em velório: um caixão com visor para que as pessoas se possam despedir do seu familiar, “sem tocar, sem abrir, mas podendo ver”. Não obstante o encontro de alternativas, mais de meio ano depois do início da pandemia, continua a não haver uma definição clara das normas a adotar, variando as mesmas “de freguesia para freguesia, de paróquia para paróquia”.

A par dos novos tempos tiveram de ser criadas novas soluções, como a encontrada para a proibição de abrir a urna em velório: um caixão com visor para que as pessoas se possam despedir do seu familiar, “sem tocar, sem abrir, mas podendo ver”

Procedimentos levados a cabo pelos agentes funerários após contacto com cadáver com Covid-19. Foto: DR

“CADA UM FAZ O QUE QUER”: OS VELÓRIOS E AS “IRRESPONSABILIDADES COMETIDAS”

Apesar de serem os Municípios a definir exatamente se é permitido ou não haver velório, Nuno confessa que “as coisas têm estado todas a ser muito feitas só com base num edital que aparece escrito. A responsabilidade esgota-se aqui, é isto e ponto final”. Refere uma “lacuna muito grande” na questão dos velórios no caso dos óbitos por outras causas que não covid-19 (pois, nesse caso, não existe velório devido à máxima do “mínimo contacto possível”).

Sob a responsabilidade das paróquias, as casas mortuárias (havendo algumas sob gestão das juntas de freguesia) são o local onde se realizam os velórios. No entanto, nem sempre os mesmos acontecem. No caso de Abrantes, em que os velórios são permitidos (com urna fechada e máximo de quatro pessoas no espaço), Nuno Carola refere uma discrepância de situação para situação.

As regras ditam que existam apenas quatro pessoas num velório mas “isso nunca é cumprido”, diz-nos, acabam sempre por entrar mais pessoas. “Já tenho visto cinquenta pessoas dentro da casa mortuária.”

“O que se passa aqui, no nosso concelho é permitido os velórios, com alguns limites, mas há algumas casas mortuárias que não estão abertas porque estão sob a alçada Igreja. Da mesma forma, há outras aqui em que os funerais vão à Igreja e outras em que não vão porque os padres uns fazem de uma forma e outros fazem de outra”, diz, apontando a falta de uma estratégia de comunicação e regulamentação por parte da Diocese de Portalegre. “Cada padre faz como entende e isso leva a confusão entre as pessoas porque nós podemos ter aqui uma paróquia que vai à Igreja, as pessoas sentam-se nos lugares previamente marcados, tem velório, mas depois na outra já não tem. Há aqui algumas irresponsabilidades por responsáveis que são cometidas”, admite.

Nuno Carola não poupa exemplos das falhas que sucedem a este nível. Conta-nos o caso de dois velórios que decorreram ao mesmo tempo, na mesma sala, em tempos de pandemia. “Tivemos que juntar duas famílias de concelhos distintos na mesma sala. Isto com a bênção quer do pároco, que é o responsável, quer do presidente de Junta”.

Atitudes como esta levam a um aligeirar da postura no dia-a-dia, defende Nuno, que admite ter vivenciado “coisas terríveis”. “Acredito que uma boa parte dos contágios na nossa região se tenham desenvolvido em velórios, porque já vi pessoas com lágrimas a escorrer cara abaixo e a beijarem-se. E há sempre um momento em que a emoção passa sobre a razão… e lá vai um abraço”, admite. Defendendo uma melhor avaliação e desenvolvimento do edital camarário referente aos velórios, as situações vão-se somando. As regras ditam que existam apenas quatro pessoas num velório mas “isso nunca é cumprido”, diz-nos, acabam sempre por entrar mais pessoas. “Já tenho visto cinquenta pessoas dentro da casa mortuária.”

“Acredito que uma boa parte dos contágios na nossa região se tenham desenvolvido em velórios, porque já vi pessoas com lágrimas a escorrer cara abaixo e a beijarem-se.
E Há sempre um momento em que a emoção passa sobre a razão… e lá vai um abraço”

Nestes casos, o papel de um agente funerário não vai além da sensibilização. “Não podemos fazer nada, porque o cliente continua a ter o seu direito de opção. Eu também devo defender os interesses do cliente, sendo meu dever levá-lo a escolher a melhor opção dentro das medidas de segurança”, explana Nuno Carola.

Já no caso dos óbitos por covid-19, o velório não é sequer uma questão em cima da mesa. Não existe essa possibilidade e o sepultamento pode até ser feito antes do prazo legal. Apesar disso, nos casos suspeitos (em que a pessoa morre antes de se saber o resultado ao teste de covid-19), vão existindo velórios, situações em que tem havido novamente, refere Nuno, um “aligeirar da situação”.

“A partir do momento em que o corpo é colocado dentro daqueles dois sacos [sudários] é desinfetado (…) desinfetamos o saco, desinfetamos a urna por fora. Toda a contaminação está contida lá dentro, não há perigo nenhum”, conta-nos o agente funerário.

Envoltos na realidade que se tornou o seu novo dia-a-dia, mais uma das missões dos agentes funerários é a de, neste cenário de dor e perda, não tornar mais negro o momento que representa a última homenagem a alguém querido. “Devemos, dentro das condições de segurança, aproximar isto ao máximo da normalidade. Não deixamos de dizer à senhora que toque o sino, não deixamos de colocar editais nos sítios, para que a comunidade possa saber e fazer o seu luto”.

Ana Rita Cristóvão

Abrantina com uma costela maçaense, rumou a Lisboa para se formar em Jornalismo. Foi aí que descobriu a rádio e a magia de contar histórias ao ouvido. Acredita que com mais compreensão, abraços e chocolate o mundo seria um lugar mais feliz.

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