Domingo, 10 de maio. Em anos normais, grupos alargados de peregrinos deveriam encher por esta altura os passeios, mais ou menos estreitos, das entradas de Fátima. A pandemia de covid-19 reduziu a paisagem a uma estranha melancolia de inverno, como se a época baixa tivesse congelado no tempo. No fim de semana antes do 13 de maio, anunciaram-se 3500 militares da GNR a impedir a aproximação ao Santuário de Fátima e apelou-se à ausência de peregrinações. O mediotejo.net encontrou dois peregrinos a pé, lojas vazias e uma estranha acumulação de ciclistas e populares a correr ou a fazer caminhadas. A GNR circula, mas não há aparato. A mensagem parece, para já, ter sido recebida.
O caminho até Fátima está reduzido ao trânsito automóvel. Aqui e ali, espalhados discretamente por pontos estratégicos nos acessos e na cidade de Fátima, vêem-se militares da GNR em vigilância, mas o aparato anunciado e um eventual cerco à cidade está longe de ser uma realidade. Pelo menos neste domingo de maio.
Com o 12 e 13 de maio a ocorrer durante a semana, seria de esperar um fim de semana de enchente em Fátima, num ano normal. O anúncio de que as entradas iriam ser restringidas durante a data celebrativa fez soar os alertas para peregrinações antecipadas. Mas praticamente ninguém peregrina neste fim de semana até Fátima. Na bomba de combustível da estrada da Loureira garantem-nos inclusive que nem turistas de carro aparecem. Apenas habitantes locais.

Talvez seja por isso que não se vê GNR, nem cerco à cidade…
Pelos caminhos de Fátima, o mediotejo.net encontrou apenas dois peregrinos, que chegavam nesta de domingo da manhã da Póvoa do Varzim. Fernando Pereira carregava uma pesada imagem de Nossa Senhora às costas. Cumpre a promessa que fez há 27 anos de peregrinar duas vezes por ano a Fátima, em agradecimento por não lhe ter sido amputada uma perna.
A pandemia não o dissuadiu de fazer o trajeto neste mês de maio, mas tomou precauções: veio apenas com um companheiro de viagem e chegou mais cedo, evitando os dias mais próximos do 13. “Vamos até onde nos deixarem ir”, garantiu.

“Se não me deixarem entrar tenho que respeitar”, comentou ao mediotejo.net, mas a eventualidade de encontrar um cerco à cidade não o demoveu. A sua fé fê-lo empreender a viagem e pretendia cumprir a sua promessa dentro das restrições que lhe fossem impostas.
Ao longo do percurso encontrou porém muito poucos peregrinos. A pandemia, reconheceu, preocupa a todos. Mas a fé, acredita, move montanhas e “é o mais importante que tudo na vida”.
Cerca de uma hora depois da entrevista, encontramos Fernando Pereira a chegar ao Santuário de Fátima. Dá uma volta à capelinha das Aparições e ajoelha-se frente à imagem de Nossa Senhora do Rosário. De braços levantados, faz a sua oração. Este ano, mais uma vez, conseguiu cumprir a sua promessa.
O recinto está mais vazio que o que seria normal por esta altura do ano, mas não está propriamente deserto. Famílias inteiras, casais, um ou outro rosto estrangeiro, percorrem o espaço, colocam velas no tocheiro, tiram fotografias ou rezam. Várias usam máscara, mas muitas têm o rosto descoberto. Parece um dia de inverno no Santuário de Fátima, ou quiçá uma memória da escassa frequência de peregrinos nos anos 90 em época baixa.

Pela cidade observa-se uma súbita circulação de ciclistas. Não será do sol, uma vez que o tempo está de chuva e ameaça trovoada. Junto à Basílica da Santíssima Trindade encontramos Firmino Vital, que veio a pedalar este domingo do Entroncamento. Passou por um GNR, até o cumprimentou, mas ninguém o impediu de chegar ao Santuário de Fátima.
“Gosto de vir todos os meses”, confessa ao mediotejo.net, inclusive no 13 de maio, observando a movimentação de peregrinos. Este ano não se cruzou com ninguém a pé pelo caminho, salienta, mas encontrou vários ciclistas. Não tendo podido fazer o percurso de bicicleta nos últimos meses devido ao confinamento, resolveu este domingo ir a pedalar até Fátima.
As restrições no acesso à cidade anunciadas revoltam-no um pouco, admite. “Não me revejo nisto”, refere, argumentando que com precauções, com controlo, seria possível decorrer a peregrinação de maio. “Se houve 25 de abril, se houve 1º de maio, também devíamos respeitar”, comenta.



Firmino prepara-se para regressar a casa, depois desta breve paragem no recinto. Observamos-lo a contemplar a capelinha das aparições e o movimento de crentes, perdido nos seus pensamentos. Não chegamos a questionar sobre o que pensa, se reza, se faz as contas aos quilómetros que tem pela frente para regressar ao Entroncamento. Será uma outra forma de peregrinar a Fátima.
Comércio tradicional dá o ano por perdido
O fim de semana antes do 13 de maio seria um dos mais fortes do ano em termos de negócio. Emília Ribeiro, da Casa das Regueifas, abriu a loja no sábado e não teve qualquer cliente. “Não vale a pena” ter a porta aberta, confessa ao mediotejo.net.
A pandemia exigiu-lhe que encerrasse o negócio e as quebras nas vendas estão neste momento pelos 100%. O ano, antevê, está perdido. “Não há turistas, não há ninguém”.
Emília discorda com a tomada de posição da Igreja em fechar as cerimónias aos peregrinos. “Seria mais benéfico o Santuário de Fátima, em vez de fechar tudo, oferecer máscaras e luvas para as pessoas fazerem a peregrinação”, sugere. Partilha assim da mesma perspetiva que outros entrevistados: “se não se pode ir a Fátima, que é ao ar livre, porque se faz a festa do Avante e o 1º de maio?”. A comerciante acredita que com as devidas medidas de precaução as pessoas teriam cuidado e o 13 de maio poder-se-ia realizar sem problemas.

A sua opinião não é porém consensual.
Um pouco mais abaixo, na Ourivesaria Confiança, abriu-se a porta, mas as expetativas de negócio não são muito melhores. “Está tudo muito calmo, as pessoas vêm fazer o indispensável”, adianta o proprietário, Manuel Silvestre, que estima uma quebra no negócio em cerca de 85%. Não houve primeiras comunhões, o dia da mãe foi passado em confinamento, tem quatro pares de alianças para casamentos que foram canceladas, enumera.
Ainda assim, Manuel Silvestre concorda com as restrições colocadas ao 13 de maio. “Ao fim de tanto sacrifício, esperamos que valha a pena”, reflete.
Ao lado, Júlio Silva, da “Silva Jeans”, abre a montra da sua loja de vestuário mais por rotina que por esperança de vender. “Não vale a pena, não há que fazer. Não há peregrinos, mesmo os locais não vêm”, confessa. As vendas estão a zeros desde que foi decretado o estado de emergência, a 16 de março.


Sobre as restrições no acesso a Fátima, o lojista interroga-se sobre o eventual exagero, mas comenta que é preferível por uma questão de segurança. Está tudo parado, reflete, “até faz impressão”.
Pelas ruas de Fátima circulam sobretudo os moradores. Boa parte do comércio está encerrado, mas muitos lojistas optaram por abrir a porta este fim de semana, ainda que frequentemente os encontremos na conversa uns com os outros, sem clientes a quem responder. “Ainda está tudo fresco”, ouve-se de relance, comentando-se o esperado aparato de militares a cercar a cidade que afinal parece não se ter efetivado.
O cenário para os dias 12 e 13 ainda é uma incógnita. Para já, Fátima parece ser terra apetecível para exercício físico, corridas e passeios de bicicleta. Muitos circulam, mas ninguém consome. Assim se vive a pandemia em vésperas de aniversário das aparições da Cova da Iria.
O mediotejo.net solicitou uma entrevista com a GNR para obter esclarecimentos sobre o dispositivo montado, tendo sido comunicado que este domingo não estavam autorizadas declarações aos órgãos de comunicação social.