Fernanda Carvalho faz parte da lista de alunos que frequentaram a Escola Camões no Entroncamento, projetada pelos arquitetos Luís da Cunha e Cottinelli Telmo. Os primeiros estudantes do ensino primário diurno para crianças e noturno para funcionários da CP chegaram em 1928 e Fernanda cerca de uma década depois. Aos 91 anos, aceitou o convite para regressar à escola onde tudo envelheceu, à exceção do azul que se mantém tão vivo quanto as suas memórias.
Filha do primeiro ferroviário da família, Fernanda Carvalho chegou ao Entroncamento já na terceira classe, depois das férias de Natal marcadas pelo falecimento da mãe. Até à data conhecia as ruas de Campolide, que deram lugar ao curto percurso que fazia a pé de entre a casa da madrinha e a nova escola de manhã e onde se sentava no passeio com as colegas a dar explicações ao final da tarde.
Os números deliciavam-na e trazia sempre consigo o caderninho onde escrevia sinónimos das palavras para embelezar os textos. O estabelecimento escolar perto da capital, também propriedade da CP, é recordado como “uma caixa de fósforos” e foi no novo e moderno que acabaria, diz, por se sentir “em casa”. Tinha chegado à Escola Camões, construída para substituir outra com o mesmo nome.
A mais antiga tinha sido projetada em 1879 e a escolha de Camões para lhe dar o nome, em 1880, coincidiu com o terceiro centenário da morte do poeta. O edifício localizado na Rua da Estação acabou por ser demolido em 1950, depois de 20 anos de coexistência com o novo, que recebeu os primeiros alunos em janeiro de 1928. Fernanda, a menina que surge numa foto com corte de cabelo que hoje associamos à atriz Beatriz Costa, de olhar e vestido marcados pelo luto, chegou cerca de uma década depois.

Não entrou pelo portão lateral como fez agora, a nosso convite, mas pelo principal pela mão de uma amiga mais velha. Oitenta anos depois, vê de perto o edifício onde estudou durante dois anos letivos e a primeira expressão que lhe sai dos lábios é “ai, as minhas janelas”. A vista depressa se vira para o pátio frontal e começam a surgir as recordações dos jogos feitos com as colegas na relva e nos bancos das janelas gradeadas que dão para a estrada.
A professora, Fernanda como ela, surge na catadupa de momentos que vai partilhando. Tornou-se quase mãe quando a recebeu depois de a ver passar as colunas encimadas pelos mochos em pedra que, entretanto, desapareceram. Um dos muitos pormenores com o cunho de Cottinelli Telmo, como a carranca do tanque no pátio do recreio, que lá continua, ou os grandes candeeiros azuis do interior, que tiveram o mesmo destino dos pássaros que simbolizam a sabedoria.
A nossa entrada na Escola Camões é acompanhada por um som que marca presença constante na viagem no tempo guiada por Fernanda e Manuela Poitout, por nós conhecida como historiadora e por ela como prima e amiga. Os vidros que vão estalando são apenas alguns dos restos de uma escola que, na altura, chegou a ser considerada a maior construída para o ensino primário. Vão-se partindo e repartindo debaixo dos nossos pés, misturados com pó escuro e estuque branco.
Crac… crac… crac.

Começamos no vestíbulo com o friso de cores vibrantes, onde se destacam o azulão e o amarelo a fazer lembrar os dias de verão. A preto, sobre o fundo branco da parede por cima da porta principal, letras simples identificam os arquitetos responsáveis pelo projeto. Foi em 1926 e 1927 que Luís da Cunha e Cottinelli Telmo, a mando da Companhia dos Caminhos de Ferro, fizeram os primeiros traços da escola integrada no bairro com o mesmo nome, projetado com base no modelo das “cidades-jardim”, lançado em Inglaterra no final do século XIX.
O bairro servia para albergar os quadros superiores da CP. Pela escola passavam filhos de funcionários da empresa e não só, durante o dia, e os trabalhadores, ao início da noite. Quase um século depois, nos corredores já não se ouvem vozes infantis a repetir a ladainha do “um mais um dois, dois mais dois quatro”, nem as dos adultos que frequentavam os cursos de alfabetização e formação profissional.
Apenas silêncio intercalado pelos pássaros que cantam lá fora, no pátio do recreio onde Fernanda almoçava com as colegas entre as lições da manhã e da tarde. O cheiro a sopa que vinha da pequena cozinha, ao lado da sua sala de aula – com o balcão em que Fernanda lembra “o grande sabão” – apenas era para os mais pobres, que usufruíam do apoio da Caixa Escolar. Os restantes, como ela, recebiam as refeições entregues pelas famílias antes de regressarem às quatro salas nas quais, tal como na generalidade, tudo foi pensado ao centímetro.

Espaços adequados à capacidade de ocupação dos alunos, ventilação, orientação solar, secretárias de estudo indicadas para a “escrita inclinada”, salas de professores, divisão proporcional dos espaços interiores e exteriores e um átrio interior onde se poderiam realizar eventos culturais. Recantos e pormenores da escola descrita na revista “Arquitectura” como dotada de “uma situação boa, pelo seu isolamento, independência e paisagem”.
No mesmo exemplar, datado de abril de 1927 e onde era anunciada a abertura do Café Chiado, em Lisboa, o fontanário do Bairro Camões tem destaque. A referência à escola surge nas páginas seguintes da publicação dirigida por Francisco Costa, com indicação do jardim e da horta na entrada, da biblioteca e da sala de leitura que ladeavam o vestíbulo, do “hall-vestiário” e da galeria “bem iluminada” que tinha nos extremos “lavabos, wc e escadas para o andar superior”.
Quarenta alunos por sala. Raparigas no corredor do lado esquerdo, rapazes no do lado direito. Fernanda sabe-o bem e temos que acelerar o nosso passo para a acompanhar até ela interromper o seu junto da segunda porta, no lado direito. Exclama “esta era a minha sala!”. Lá dentro já não existem as mesas, nem as cadeiras. As imagens de Jesus e Salazar também já não estão nas paredes.

Do antigo quadro de ardósia pouco ou nada sobreviveu e os degraus do anfiteatro deram lugar a um chão maltratado. No corredor, com azulejos azuis e brancos, é recordado o quadro na parede, parecido com o do mapa existente na sala de aula. Os bancos em que ali se sentava eram autênticas arcas do tesouro, o seu “encanto”. Uma vez aberto o tampo descobria-se a riqueza do conhecimento nos “cadernos de quem já cá não estava”, diz Fernanda.
Um apoio para os deveres que ela e as colegas faziam no pátio. O local escolhido pela professora Fernanda era estratégico pois conseguia vigiar as alunas mais velhas da janela enquanto ensinava as matérias às meninas da primeira classe. A “D. Fernanda”, que lembra com carinho e diz que raramente batia, foi uma entre os docentes que viveram com as respetivas famílias nas quatro habitações independentes do andar superior. O acesso era feito através do exterior ou pelos corredores internos.
O corrimão azul das escadas não aligeira a subida em que os degraus exigem cuidado extra. Fernanda opta por não subir até às divisões que conheceu outrora e das quais lembra a “mobília muito linda” da professora. Percorremos os corredores com Manuela Poitout, onde o azul volta a estar presente nas portas e portadas das salas que mais tarde passaram a receber alunos e, numa das últimas intervenções estruturais, a ser acessíveis a pessoas com mobilidade reduzida através de elevador.

Novamente o “crac… crac… crac”. O cenário não muda muito, mas tem a novidade de chegarmos ao pequeno pátio exterior, ficando mais próximos do emblemático painel de azulejos com flores azuis que identifica a Escola Camões e podermos apreciar a Rua Eng.º Ferreira de Mesquita, antigo presidente do Conselho de Administração da CP. Do lado oposto do corredor, a janela da cozinha mostra-nos o pátio do recreio onde estivemos momentos antes e uma perspetiva desconhecida do Bairro Camões.
Descemos e reencontramos Fernanda para a despedida do estabelecimento de ensino escolar que também foi Escola Técnica de Aprendizes das Oficinas da CP na década de 60, Liceu até à segunda metade da década de 70, e CERE – Centro de Ensino e Recuperação do Entroncamento, entre 1980 e 2001. Também se encontram referências de ter sido Externato e, em 1995, foi classificado pelo município do Entroncamento como imóvel de interesse concelhio.
O novo milénio trouxe-lhe silêncio aos corredores e são diversos os episódios que marcaram a história recente, como quando foi colocado à venda e a câmara municipal avançou com uma proposta de um euro para demonstrar que o edifício devia manter-se integrado no património ferroviário do concelho. Outros se sucederam, sempre acompanhados pela expetativa da população em (re)ver o portão principal aberto.

As tensões institucionais aliviaram-se e a assinatura do contrato de concessão entre a autarquia e a IP – Infraestruturas de Portugal, prenuncia uma nova vida para o edifício. A parceria tornou-se oficial no passado mês de novembro durante as comemorações do 73º aniversário do concelho, ou seja, a Escola Camões é mais antiga, tal como as memórias de Fernanda Carvalho. É uma instituição, no verdadeiro sentido do termo, que faz parte da História do país.
A importância do segundo estabelecimento de ensino do concelho com nome inspirado no autor dos “Lusíadas” é espelhada no artigo do Boletim da CP, de maio de 1951, que dá notícia da morte do antigo Presidente da República, Marechal Óscar Carmona. A bandeira da escola desfilou no cortejo fúnebre ao lado das dos Sindicatos Nacionais do Ateneu Ferroviário, dos Grupos Desportivos de Lisboa, Barreiro, Campanha, Entroncamento e dos Bombeiros Voluntários do Sul e Sueste.
As previsões mais positivas apontam para que o “cabo das Tormentas” da Escola Camões se transforme em “cabo da Boa Esperança” em breve e o silêncio volte a ser pontual com a reabertura em 2020. Antes, virão as obras e a decisão sobre a finalidade do edifício. As hipóteses em cima da mesa são variadas e fala-se em espaço cultural, associativo, formativo ou hotel de luxo, não estando descartada a realização de consultas públicas neste sentido.
Qualquer pessoa do Entroncamento e dos concelhos vizinhos parece ter uma história, curta ou longa, para contar sobre a Escola Camões e a recuperação à vista traz um novo fôlego ao passado. Ninguém sabe que cores vão surgir no futuro. No entanto, qualquer viagem no tempo – como a que fizemos com Fernanda Carvalho – terá sempre aquele tom do azul que continua vibrante noventa anos depois de ter surgido.