Um casal, mais de 40 quilos de esperança na bagagem e a solidariedade como destino. Cátia Laranjeira e Luís Chuva partiram de Abrantes rumo a África numas férias que se tornaram numa missão maior: aquecer o coração das crianças de Zanzibar. De regresso a casa, as malas trazem consigo os sorrisos, os abraços e as lições de quem vive feliz com o pouco que tem.
“O que me marcou mais foi o sorriso das crianças, um sorriso tão fácil com tão pouco. E a grande maioria dos miúdos podia desejar uma vida na Europa e nenhum quer sair de lá, todos nos disseram que eram felizes ali. E nós perguntávamos «mas mesmo com tão pouco?» e eles respondiam «nós não precisamos de mais nada»”.
Quem nos conta esta memória é Cátia Laranjeira. A 2 de outubro deste ano a abrantina embarcou naquela que adjetiva convictamente como a viagem da sua vida. Dizia o poeta Fernando Pessoa que “o sonho comanda a vida” e o sonho vem já de há muito, quando em criança Cátia sonhava com as imagens que via na televisão das paisagens africanas nos programas da BBC Vida Selvagem e da National Geographic.
“Era o meu sonho, era a viagem que queria fazer há muito tempo. Fiz um curso de Turismo e todos os trabalhos que fazia eram sobre isto. O meu coração já era de lá há muito tempo e agora ficou lá mais um bocadinho”, confessa.
O “lá” fica a uns longínquos milhares de quilómetros de Portugal, em África. Mais precisamente, em Zanzibar, uma ilha no Oceano Índico pertencente à Tanzânia. Depois de vário tempo a juntar dinheiro e a planear a viagem ao detalhe, nem a pandemia – que chegou a adiar o embarque – conseguiu impedir o inevitável.
“Ao fim de tantos anos a pesquisar, foi chegar lá e sentir que já conhecia aquilo tudo”, admite Cátia. Movida pela vontade de conhecer a cultura local, contactar com as gentes, sentir os cheiros e explorar os parques de vida selvagem, conseguiu convencer a sua cara-metade a embarcar consigo nesta aventura.

“Eu não queria muito ir. Já tinha estado em África, é uma realidade completamente diferente da nossa…” assume Luís Chuva, companheiro de Cátia Laranjeira. “Ele esteve numa missão através do exército e a realidade que tu vês, o choque é muito maior, então era como se toda a África fosse aquilo, mas não é”, explana Cátia. “No fim, acabei por gostar, quero ir para lá outra vez”, admite Luís.
Mas algo maior do que umas férias à descoberta de Zanzibar estava a ser preparado. “A ideia surgiu antes da viagem. Nós primeiro tínhamos pensado em comprar algumas coisas, depois como a viagem se tornou dispendiosa tornou-se impossível comprarmos muita coisa”, começa a contar Cátia que explica que, segundo as regras da companhia aérea em que viajaram, cada pessoa podia levar até duas malas de 23 kg.
Partilharam com os amigos mais chegados aquilo que tencionavam fazer e, sem darem conta, o passa palavra gerou uma onda de solidariedade. “As pessoas começaram a partilhar, começaram a ajudar e foi uma loucura. Mais gente começou a dar e quando demos conta já tínhamos praticamente o peso todo. Acho que por pouco não conseguíamos levar tanta coisa”, diz-nos, entre risos.
Cada um levava 46 kg de bagagem. Quase na totalidade, material escolar e produtos de higiene (pastas e escovas de dentes) para doar às crianças da vila de Kolombero.
ÁUDIO | O casal fala sobre a partilha da experiência nas redes sociais
“Nós pensámos «ok, vamos tentar reduzir, vamos de mochila às costas e levamos o resto do peso extra em coisas úteis»”, diz Cátia. “Só não conseguíamos levar mais porque o peso realmente era imenso. Só em material iam mais de 30 kg”, acrescenta Luís.
“Eu tinha também já falado com o diretor de um projeto que eu gostava muito de visitar lá. Dois meses antes já falávamos, já sabíamos que eles tinham aquelas carências (…) e já tínhamos noção do que era o projeto e de como funcionava”, explica a jovem. Trata-se de um projeto não-governamental liderado por um particular que investe o seu tempo e dinheiro e que, através do seu projeto de voluntariado “School of Hope” já conseguiu criar seis salas de estudo.
“O sítio que nós visitámos não é uma escola, é uma sala só, super rudimentar. É uma sala só para uma aldeia inteira – todos os miúdos daquela aldeia têm aulas naquela sala. É só uma sala, com uma janela com grades e com um telhado de chapa, uma porta de grades, bancos de madeira, um quadro pintado na parede”, recorda Cátia.
Conta-nos que encarar aquela realidade foi “um murro no estômago enorme”. “Era uma sala muito pequenina, com o teto a desabar, cerca de 40 crianças nesse espaço e cheirava a mofo. (…) Foi muito pesado. E tu pensas na tua cabeça ‘fogo, porque é que eu me queixo todos os dias’ ”.
Já Luís admite que o choque maior que sentiu foi o da falta de investimento do Governo na formação das crianças. “Os miúdos vieram ter connosco para praticar línguas, porque o governo não investe na formação das pessoas e isso é muito mau. Eles querem aprender, e são inteligentes e têm capacidade”, admite.
Mas o casal deparou-se com outra realidade, a da felicidade. “E os miúdos receberam-nos com sorrisos, eles são felizes lá. Como nunca tiveram contacto com nenhuma outra realidade, para eles aquilo é bom”, diz.
“A alegria dos miúdos quando começaram a mexer nas coisas que levámos foi top. Para já, todos queriam tudo. Demos imensas coisas giras, desde guaches, mochilas super engraçadas. (…) Nós íamos à espera de visitar a escola, conhecer, brincar com os miúdos, fazer meia dúzia de atividades, dar o material escolar e pronto, e eles conciliaram a nossa visita com a inauguração de uma sala nova. Portanto, havia festa e não estávamos à espera, também foi uma surpresa para nós”, recorda Cátia, com o sorriso na voz. “Super calorosos, aos saltos”, completa ainda Luís.
Ainda hoje o casal mantém contacto com o responsável do projeto e com as crianças, através da troca de vídeos com o diretor da escola. Voltar não é um plano, é uma promessa assumida. “Completamente”, dizem em sintonia.
Mas hoje já em casa, em Abrantes, Cátia e Luís continuam a enviar esperança para Zanzibar. “Não é fácil ajudar de cá, porque não conseguimos enviar material para lá com facilidade. Para já, para enviar uma encomenda com 500 gramas fica à volta de 60 euros os portes. E depois o problema é conseguir fazer isso chegar lá”, dizem.
“Mas há uma maneira super engraçada, que é através de grupos de viagens conhecemos imensa gente a viajar para lá. Ainda há poucos dias enviei uma encomenda por um rapaz que ia fazer férias lá”, expõe Cátia.
ÁUDIO | O casal explica como se pode doar material para as crianças
“Amor” e “inesquecível” são as duas palavras escolhidas por Cátia e Luís para descrever esta experiência que lhes deu uma grande lição: “Nós somos muito materialistas e damos muito valor a coisas que não devíamos dar. Há muita gente que devia ir nem que fosse só um dia. Esse choque cultural faz-te repensar muita coisa. Temos muito a aprender com eles, em tudo”.