Estar em recuperação, seja de que dependência for, é florescer a partir de um lugar que sangra. É uma ferida que se cuida e que eu sei que nunca vai sarar inteiramente, mas também sei que, se a tratar com prudência e delicadeza, não me vai matar.
Sair de um passado tumultuoso traz o enorme peso da vergonha e da culpa. Uma carga que não posso aliviar sozinha, mas somente com ajuda, porque eu vim da solidão e o estar viva de novo depende de estar no mundo em relação.
Há, porém, uma diferença fundamental entre a vergonha e a culpa. Elas atormentam-me de igual forma, mas a primeira é corrosiva e a segunda natural, e até saudável, na medida em que me diz que tenho viva consciência do que fiz. A mim e aos outros.
A vergonha diz-me que sou má pessoa, que fui indigna e não há nada a fazer. Paralisa-me. Ao contrário, a culpa responsabiliza-me, diz-me que o errado se pode corrigir. Não é mudar o passado: o que está feito, feito está. Muito estrago e muita quebra de confiança que não se restaura com pedidos de desculpa. Estes são inúteis, porque o restabelecimento da confiança dá-se com a mudança. Eu fui assim contigo no passado, mas agora serei diferente, porque também sou diferente comigo.
Há, contudo, confianças e pessoas irrecuperáveis e às quais não há reparação possível que se possa fazer. Faz parte do processo lidar com a perda. Eu perdi muito. Porém, a ressiginifcação da minha vida é também aceitar que quem foi importante no passado já não o é, e está tudo bem. E eu não tenho de continuar a ter vergonha, porque eu já não estou errada.
Enfim, seria bom que fosse tudo tão fácil quanto escrever estas palavras, mas a escrita ajuda porque reforça o meu sentido de responsabilidade. Eu assumo inteira responsabilidade pelo que sou e pelo que fui.
Sei que há um “Kraken” furioso dentro de mim e sei que não posso continuar a ser uma marinheira incauta no mar da minha vida. Ao mínimo descuido, o “Kraken” desperta e engole tudo à minha volta, tem tentáculos imensos e a todos chega e magoa.
São os trabalhos e os dias de uma laboriosa construção. O meu pequeno poema épico por ter desafiado e transgredido a vida.
Ao fim de cada dia, sei que vale a pena.