Fernando Lopes Graça dizia que “o folclore que sai do seu âmbito próprio, que são os campos e as aldeias, e exorbita das suas funções próprias, que são as de exprimir a vida e os trabalhos do homem rústico, esse folclore assim posto em evidência e assim utilizado deixa precisamente de ser folclore para se transformar em divertimento banal ou servir de mero cartaz turístico”. Ora em Malpique, Santa Margarida da Coutada, o Racho Folclórico Os Camponeses trabalha há 38 anos com base nesta visão, defendendo igual pensamento.
O projeto deste grupo etnográfico, que existe desde 1985, assenta na defesa da preservação dos usos, costumes, tradições e identidade daquela freguesia do concelho de Constância, ou seja da soberania do povo, em matéria de arte. Até porque o folclore, assegura Custódio Rodrigues, diretor técnico do rancho, “não é só cantar e dançar”.
Além dos cantares também as rezas e orações, os trajes de época e a própria gastronomia, como as migas carvoeiras e pintassilgo, são folclore, explica. Embora o rancho tenha as suas raízes plantadas sete anos antes (desde 1978) “numa outra coletividade”, no ‘Flores do Campo’, de Malpique, da União Jazz Malpiquense.
“Iniciámos uma marcha, carnaval… mas depois entendemos que o caminho não era aquele e começámos a instruir-nos e a ir a congressos”, num percurso formativo e de saber fazer até formar o atual rancho.

Inscritos na Federação Portuguesa de Folclore, os Camponeses de Malpique diferenciam-se de muitos ranchos folclóricos nacionais porque somos “recriativos e não recreativos”, refere Custódio Rodrigues. Ou seja, em folclore, as tradições culturais de um povo, os cerca de 50 elementos do grupo, na grande maioria jovens, trabalham na “recriação das vivências das pessoas de determinada época”.
Para tal recorreram, e ainda recorrem, à recolha do património material e imaterial, fazendo o levantamento junto da população da freguesia e do concelho, as pessoas mais antigas que preservam memórias desses tempos de um Portugal pobre e descalço, de uma freguesia rural.
Custódio admite que “as vivências das épocas”, com o passar do tempo, “vai-se sempre perdendo qualquer coisa mas tentamos ir ao mais puro possível. Essas pessoas são livros e cada pessoa que morre é um livro que se fecha”, considera o diretor técnico, explicando que “grande parte da recolha são fotos, etnografia e vertente oral”.

Assumindo-se como sendo um grupo “criterioso”, confessa que por vezes o rancho é incompreendido, até na contratação, por isso atuam “em muitos festivais e poucas festas”, sendo “pouco solicitados”. Nas festas “não se importam de pagar 3 ou 4 mil euros a um qualquer” cantor popular que cante de forma desafinada “mas recusam pagar 500 euros a um grupo de folclore. Isso não aceitam!”, observa, em tom crítico.
Não é o caso das Festas da Nossa Senhora da Boa Viagem de Constância, onde são presença assídua no palco principal. Este ano atuam na tarde de domingo (dia de Páscoa), num espetáculo de duas horas, em conjunto com dois grupos convidados, do Pego e de Coruche. Além disso ainda enfeitam uma rua com flores de papel e são responsáveis por uma tasquinha na feira mostra de artesanato e doces sabores.
Custódio Rodrigues revela que o grupo tem de fazer um esforço adicional na dinamização da sua tasquinha. “É muito duro”, nota, mas importante, sendo uma forma de angariar verbas para a associação.

Os seus espetáculos incluem recriações históricas, como por exemplo o pastoreio de ovelhas, o jantar na malhada, uma máquina de debulhar milho, o descamisar do milho, o vender tremoços, jogar à sueca, beber vinho ou vender pão de bicicleta.
O Rancho Folclórico ‘Os Camponeses’ de Malpique possui um repertório com 20 modas – com viras, verde gaio, fadinhos, saias, bailarico ou fandango. Esta última encontra-se entre as oito variantes classificadas do Ribatejo -, ou seja, as canções e músicas que o grupo recolheu, ao longo destes 38 anos, junto da população.
Para que nada falhasse sobre a autenticidade desse património tradicional, afastando por isso a descaracterização da região, o grupo contou com o musicólogo Bertino Coelho Martins e Ludgero Mendes, da Federação Portuguesa de Folclore. Como são definidas as modas? “Melodicamente e coreograficamente”, esclarece o diretor técnico.
Exemplifica com uma moda, a dança da Carrasquinha, originária da zona de Ovar mas que veio parar a Constância e é no presente tradição desta região. “Sabemos que lá era mais acelerada e aqui mais lenta. Alguém a trouxe para cá e foi adaptada por pessoas de cá, deram-lhe um cunho pessoal. As pessoas daqui eram diferentes das pessoas da beira mar. O trabalho duro faz as pessoas brutas e as pessoas brutas têm gestos mais agressivos, mais agudos, por isso é que o folclore do Ribatejo é mais rude, mais ritmado, e as danças refletem a maneira de ser das gentes”, elucida.






“Não inventamos nada, nós recriamos”, insiste. “Fazemos o levantamento e temos de fazer tal e qual como era. Antigamente as pessoas dançavam num baile por divertimento, nós hoje divertimo-nos mas a recriar o que os outros faziam”. Ou seja, o rancho tem como prática “interiorizar as pessoas do passado. A recriação tem de ser séria, é uma questão de princípio”, defende.
Tendo em conta as grandes mudanças etnográficas, desde os anos 1930/1940 até à atualidade, os elementos do grupo “têm de se preparar para interpretar o passado”. Vestem trajes de camponeses ou de trabalhadores rurais, essencialmente de trabalho e domingueiro ou de ir à missa, sendo o primeiro mais usado e o outro fato novo. Maioritariamente “em coutim (lã) e pano cru” porque interpretam “comunidades pobres, rurais.
“Como o dinheiro não era muito, dantes as pessoas tinham de comprar os tecidos mais baratos mas resistentes e quando as calças rompiam metiam uma chapa. O linho também havia, mas em pequenas quantidades. Temos de ver o que é o folclore: uma coisa só é tradição quando usada, muitas vezes, por uma comunidade e ir passando e geração em geração”, detalha.

E como se cativam os jovens para um rancho folclórico? “Com incentivos e responsabilidade. Os jovens cativam-se com ambiente de camaradagem, somos uma família. São pessoas válidas, basta aceitarem as regras”, diz Custódio Rodrigues, referindo algumas delas: “não podem ter piercings ou unhas de gel”, simplesmente porque no passado tal não existia, exemplifica.
Conta-nos Custódio que nos anos 1950, aquando da primeira Feira do Ribatejo, “o Estado Novo instituiu uma medida para dar uma lavagem, uma nova roupagem, às gentes – porque as pessoas eram pobres, passavam fome, não tinham nada – para alterar a imagem do país no exterior. Esses ranchos – o que era um rancho? Um grupo de pessoas organizado” provocaram “adulterações no folclore”.
Isto é, o Estado Novo “mandatou as Casas do Povo criarem grupos de pessoas para irem à primeira Feira do Ribatejo mostrar o que cada terra tinha de melhor. Ninguém queria ser pobre, quiseram cortar com o passado delas”. Mas “as nossas tradições são a identidade cultural do nosso povo”.
Portanto, no Rancho Folclórico Os Camponeses de Malpique os bailadores e bailadoras “podem dançar descalços, porque as pessoas andavam descalças ou de tamancos de pau”, nota.

Os espetáculos são apresentados pelo grupo, com os bailadores e bailadoras a dançar baseando a sua arte nas raízes temáticas e nas velhas canções cantadas pelos cantadores e pelas recriações já mencionadas. “Não é para tirar o foco às pessoas mas para engrandecer o espetáculo”, explica Custódio.
O próprio ligado aos grupo desde o início, ou seja desde 1978, sendo um bailador e diretor técnico há muitos anos, diz que o público acolhe o rancho “muito bem. As pessoas interagem e é isso que nos dá prazer”, como acontece em São Facundo (Abrantes), exemplifica. “É gratificante quando as pessoas sabem apreciar o que se está a fazer”.

Ao fim ao cabo, aquilo que lhes dá mais prazer “é andar no folclore, ver as nossas tradições, preservar a nossa identidade cultural, continuar o legado dos nossos antepassados, é isso que nos move. Estamos a fazer um trabalho que competia ao nosso Estado mas o folclore é o parente pobre da Cultura portuguesa, infelizmente… também por culpa própria”, reconhece, porque “o movimento de folclore não sabe preservar a verdade”, constata.
Com sede em Malpique – a chamada Oficina Cultural, com um museu – o rancho “tem os seus elementos espalhados por um território de 50 km, sendo mais difícil de trabalhar mas sempre foi assim. Naquele espaço decorrem os ensaios, designados como sessões de apontamentos técnicos, e serem ainda “para manter as pessoas unidas”, conclui Custódio, antes de partir para mais um ensaio para a recriação e atuação na grande festa do concelho e em Honra da Senhora da Boa Viagem.