“Ninguém duvide que um pequeno grupo de cidadãos atentos e comprometidos pode mudar o mundo. Na verdade, foi o que sempre aconteceu.”
– Margaret Mead
Nicolau Maquiavel sabia do que falava quando disse que “nada é mais difícil de assumir, mais perigoso de conduzir ou mais incerto quanto ao desfecho, do que liderar a introdução de uma nova ordem das coisas”. O conselheiro do Príncipe era exímio na compreensão da realidade, acrescentando que “os reformadores têm inimigos naqueles que beneficiam com a velha ordem e apenas defensores hesitantes nos que beneficiam com a nova ordem, pois estes não acreditam verdadeiramente em nada do que é novo, até que o experienciem”.
Os seres humanos, vivendo isolados ou em sociedade, necessitam de ordem e apreciam-na. A ordem dá sentido à realidade caleidoscópica e facilita o esforço (físico, mental e psíquico) de lidar com ela. Os seres humanos não gostam, em regra, de desordem, porque a desordem – entendida como caos ou acaso – é sinónimo de incerteza, e a incerteza gera medo. E, não gostando de desordem, não gostam, em geral, de desordeiros, cujo comportamento tende a ser visto como desviante e ameaçador.
Todavia, não existe uma única percepção da ordem existente, nem uma única ordem possível. Existem tantas ordens quanto as imagens – formando padrões – que um caleidoscópio consegue obter, combinando fragmentos de vidro colorido. Tal como neste aparelho de física, as imagens que temos da realidade são reflexo ilusório de “espelhos inclinados que, a cada momento, apresenta combinações variadas e interessantes” (Priberam).

E, quando os padrões que percepcionamos (ou esperamos/queremos percepcionar) não são claros ou nem lá estão, completamo-los recorrendo às leis da boa forma (gestalt). Como quem espreita por um pequeno tubo de cartão ou metal, através do qual se reflecte a luz exterior, apreciamos a “realidade” que não é real(1) e julgamos a sua beleza, bondade, utilidade e agradabilidade. Se satisfaz, deseja-se mantê-la (é a chamada ordem vigente ou estabelecida), se não satisfaz (ou insatisfaz) deseja-se mudá-la.
Contudo, “desejar mudar” não é o mesmo que “mudar efectivamente” e o caminho para a mudança é tudo menos simples e linear. São muitos os factores de resistência à mudança, como já aqui referi em Quem tem medo da mudança?. As pessoas podem escolher a manutenção da ordem estabelecida porque lhes agrada ou convém, ou, não sendo o caso, porque não confiam no resultado ou no processo da mudança, ou porque não estão dispostas a suportar os seus custos, sobretudo quando os imaginam elevados.
Ora, um dos custos da mudança é exactamente a “desordem temporária”, ou seja, para se alcançar uma nova ordem é inevitável passar por alguma “destruição criativa” (assim a baptizou o economista austríaco Joseph Schumpeter, no domínio da inovação organizacional). É como fazer obras numa casa, antes de ficar bem ou melhor, passa necessariamente por ficar mal ou pior. Na verdade, é assim com a generalidade das acções humanas, há sempre algum custo a suportar para se chegar a um proveito ou benefício, desejando-se que seja mínimo.

Como se percebe facilmente, a avaliação que as pessoas comuns fazem destes custos e benefícios é altamente subjectiva e susceptível ao erro, fundamentalmente pelas duas razões já referidas: a percepção da realidade actual e a imaginação da realidade futura. Daqui resulta uma matriz que ajuda a compreender a atitude dos indivíduos: num dos eixos a Ordem Actual (1-Satisfaz/2-Não Satisfaz), no outro a Ordem Futura (3-Confia/4-Não Confia), resultando deste cruzamento a disponibilidade para a mudança (I-Deseja e Quer/II-Não Deseja ou Não Quer), com o esforço de persuasão a ser determinante nos quadrantes 1×3 e 2×4.
Numa outra perspectiva, poderia discutir-se o tipo de ordem aceite ou desejada, de um lado a “ordem natural das coisas”, do outro a “ordem socialmente construída”. Se aquela é relativamente aleatória, esta desmultiplica-se em infinitas possibilidades que os seres humanos, procurando dar ordem às ordens possíveis, agrupam em função de ideologias ou convicções políticas, sociais ou filosóficas, das mais clássicas ou ortodoxas às mais (pós-)modernas ou heterodoxas.
É neste caldo de considerações que se questiona (e eventualmente disputa) o poder ou as suas decisões, tendo de um lado os situacionistas que o controlam e exploram (no bom ou no mau sentido), tudo fazendo para manter a ordem vigente e, do outro, os oposicionistas que aspiram a transformá-lo (e eventualmente alcançá-lo). Entre estes, há certamente quem esteja verdadeiramente empenhado em mudar a ordem velha, viciosa e caduca, mas também poderá haver quem apenas finja estar para manter tudo na mesma, aliando-se aos da situação.

Ora, quando os situacionistas apelidam quem os critica ou contesta de “desordeiros”, este rótulo pode ter vários significados. Por um lado, reconhece-se que a ordem estabelecida está a ser posta em causa, o que é bom se essa ordem for (percebida como) injusta, nociva e prejudicial à comunidade, e mau se for (percebida) ad contrarium. No primeiro caso, a acusação é interpretada pelos cidadãos como uma “medalha” que recebem por defenderem uma ordem social melhor, no segundo ela é entendida como um “auto-de-fé” passado pelos todo-poderosos “inquisidores” incumbentes.
Por outro lado, pretende-se responsabilizar os activistas pelos custos da mudança, imputando-lhes todos os inconvenientes ou malefícios inerentes ao processo e ignorando ou desvalorizando as vantagens e benefícios que propõem e pretendem alcançar. Há aqui, portanto, uma perversa intenção de manipular os cidadãos e isolar os líderes contestatários, descredibilizando-os. Evidentemente que esta manobra só surte efeito entre os mais distraídos, ignorantes ou coniventes.
Irónico – ou talvez não, se a mudança ocorrer numa “cidade florida” – é quando os ditos e supostos “desordeiros” recorrem a flores e não a pedras ou paus, agindo com palavras e actos de preservação e afecto, e não de fúria e destruição. Mesmo assim, são vistos como adversários a estigmatizar e ofender, e não como parceiros com quem dialogar e aprender. Quem o faz, devia afixar na parede o cartaz Raiva, o Atirador de Flores de Banksy e reflectir sobre estas palavras de Gandhi: “Creio na não-violência como uma força superior e extremamente activa, onde não há espaço para cobardia ou fraqueza. A não-violência é própria dos fortes, não dos fracos”.
(1) Ler A Realidade é Real?, de Paul Watzlawick.
*O autor não segue as regras do novo acordo ortográfico.