Nasceu em Ponte de Sor, casou cedo com Luísa de Jesus, ela com 15 e ele com 17 anos. Mulher que o acompanha até hoje, tem Manuel Martins 82, partilhando desde a juventude a mesma árdua caminhada, num Alentejo então oprimido pela ditadura, unindo vontades para ultrapassar a miséria e alcançar um futuro melhor. Quatro filhos entretanto chegaram e só depois deles a democracia.
Muito antes da liberdade, Manuel iniciou a trabalhar no campo, aos 10 anos, de sol a sol, no que havia; fez searas de feijão, de milho, de tomate ou de abóboras, fez cestas em vime e verga de salgueiro, ceifou cereais, descansou no restolho de corpo atravessado no “mar de trigo” para que a dores nas costas o impedissem de dormir além da madrugada. Chegou a caminhar uma dezena de quilómetros para ganhar o sustento.
Quando o ganha-pão implicava caminho mais longo, dormia por lá a semana inteira, chegando a casa ao sábado à noite, isto se a ‘gavela’ não lhe roubasse a manhã de domingo, que o patrão podia querer que trabalhasse do nascer do sol até às 10h00. Matava caça, no outono apanhava cogumelos. Quando não havia emprego não havia sequer pão. Os sofrimentos que passou Manuel “não deseja a ninguém”. Hoje o corpo reclama em dores o trabalho penoso de uma vida inteira.

Mas foi aos sete anos que descobriu nele a vocação para trabalhar com vime. “O meu pai era cesteiro, os meus avós maternos e paternos eram cesteiros. Logo de pequenino apanhava as pontinhas que sobravam e começava a querer enrolar”, conta ao nosso jornal. Vivia então nas Barreiras, na casa do avô paterno, Diogo Martins, quem o criou até à idade de 17 anos – momento em que ficou órfão de pai -, enquanto os pais moravam em Foros de Arrão com os restantes seis irmãos (cinco rapazes e uma rapariga).
Certo dia o pai, António Cipriano, foi com o avô à caça enquanto o pequeno se esgueirou até à ribeira para colher verga de salgueiro. Queria “mostrar ao pai que sabia fazer cestinhas, mesmo de verga verde”. Ainda miúdo aprendeu só de olhar os outros e com a prática foi desenvolvendo a arte, que na verdade estava na família, que além de trabalhar nos cestos, vendia roupa de feiras em mercados e ainda trabalhava a lata, como latoeiros, arte que Manuel desenvolveu paralelamente também por observar os cunhados a trabalhar nas latas, homens que classifica como “dois belos funileiros”.
Além da cestinha em verga verde que fez, exclusivamente para mostrar ao pai que já dominava a arte, as suas duas primeiras cestas a sério, vendeu-as por 25 tostões cada uma e conseguiu cinco escudos. Conta que chegou a casa da bisavó Maria Esperança “todo contente com o primeiro dinheiro que ganhei”. Mas logo o sorriso lhe desapareceu da cara, quando a bisavó lhe disse que guardava os cinco escudos para comprar um tecido de riscado e costurar uma camisa, com dois pequenos bolsos a enfeitar a frente e abertura de botão. Afinal resultou em felicidade. “Para quando fores homem te lembrares que, com o primeiro dinheiro que ganhaste, a bisavó fez uma camisa… e se eu gostava daquela camisa! Andava feliz. A minha bisavó tinha umas mãos para a costura. Até à idade de 14 anos, quando morreu, só aquela velhinha mexia no meu fato… remendava. Usávamos fatos remendados, rotos é que não!”, recorda.







Memórias de tempos difíceis, em que Manuel chegou a estar um mês em casa da bisavó e não lhe pedir um pedaço de pão por saber que Maria Esperança não tinha para lho dar. “Um mês inteiro a chover, não havia dinheiro, não havia pão. Cozia-se duas panelas de comer por dia, para casa da minha tia e para casa da minha avó, uma couve cozida temperada com meio decilitro de azeite para nove ou 10 pessoas. À noite era outra vez a mesma dose; outro meio decilitro de azeite para temperar outra panela de couves. Couves e só couves, não havia mais nada. Durante o inverno era uma miséria!”, assegura.
Os olhos pregueados de rugas miram, com a ajuda de óculos, as peças de vários formatos e tamanhos dispostas na garagem onde nos recebeu, enquanto fala sobre a antiga técnica de entrelaçar pedaços de vime. As varetas verticais que formam a estrutura dos lados da peça costumam ser mais grossas que as varetas que nelas se entrelaçam, num jogo de maleabilidade e de flexibilidade, de forma a permitir que a peça nasça.
Atualmente ainda trabalha como cesteiro para avolumar a pequena reforma que tem de comerciante mas sabe que se tivesse envelhecido no Alentejo do Estado Novo “deixava de poder trabalhar, arranjava um alforje, punha às costas, com uma panela enfiada num braço e andava de porta em porta a pedir pão para comer. Era assim que se governavam as pessoas que deixavam de trabalhar. Não havia reformas. Agora as reformas são pequeninas mas já ninguém é obrigado a pedir esmola. Hoje não há pobres”, afirma comparando com os anos da sua infância e juventude.
Além disso “morreu muita gente” no Alentejo, na luta social por melhores condições de vida, “e até no Ribatejo. Conheci muitos, em Coruche, inclusive uma família de padeiros; pai, mãe e filho que desapareceram e nunca mais voltaram, até hoje… ainda lá está a casa, no Couço. Naquela altura o Estado dava 500 escudos a quem denunciasse outro que fosse revolucionário. Eram os bufos da PIDE”, a polícia política da ditadura de António de Oliveira Salazar.
Manuel chegou, também, a andar pelas ruas como afiador de facas, a amolar tesouras e a fazer remendos, e para isso nem precisava dos sons da flauta do amolador, porque toda a gente o conhecia. Foi assim no inicio de casado porque não havia facilidades nem dinheiro para pagar as contas e viu-se obrigado à profissão de faz tudo.
Então jovem, “fazia todo o serviço do campo” desde ceifar trigo a tirar cortiça, “cheguei a andar na azeitona com 57 pessoas a meu encargo. Mas nunca deixei os cestos, embora me tenha reformado da atividade de vendedor em mercados”, refere.

Na mente com os seus 82 anos ainda perdura a memória de um Alentejo coberto de trigo. Começava em Ponte de Sor a ceifar trigo de empreitada, na companhia da mulher e dos cunhados, e ia passando para Couço, Coruche, Samora Correia, Salvaterra, Benavente. Nesse sentido descendente porque “a ceifa fazia-se mais tarde. Ia acabar no Carregado. Sempre de empreitada, naquela altura era uma média de 800 escudos cada hectare”. Mas sempre ao vime a pensar na venda na Malveira.
Após a reforma, desde os 65 anos, que se dedica a fazer cestos, bancos, a empalhar garrafões, a construir cadeiras e até um cesto capaz de transportar água, sem verter uma única gota. Um segredo de artesão que não conta a ninguém. A matéria prima “só começa a dar em meados março, a verga de salgueiro e vime que vou buscar às ribeiras. Tirando isso, se quisesse fazer uma peça no outono teria de apanhar uma verga e cozê-la dentro de um bidão e assim larga a pele, mas fica mais amarelada”, garante.
Explica que para esta arte da cestaria “colhe-se a verga de salgueiro, descasca-se ou seja, tira-se a pele, põe-se a secar e depois de seca é que se demolha em água, pelo menos uma hora, e depois é que se trabalha a peça”.
Manuel molda o vime em cestas de piquenique – o trabalho que leva mais tempo, cerca de quatro horas -, cestas tipo marmita para levar os almoços, papeleiras, ceirões para as motorizadas, cestos para lenha que no passado “serviam para as mulheres irem às mercearias aviar-se, que antigamente o pessoal do campo aviava-se para uma semana completa, ia a mulher com um cesto e o homem com um talego. Ao cesto chamava-se uma giga”, indica. Outro tipo de cesta redonda, açafate, serve para roupa mas “noutros tempos teve a função de acartar hortaliça das hortas que as mulheres carregavam à cabeça”, e ainda outra concebida para costura, em tempos que as noivas costuravam o seu próprio enxoval. Atualmente é comprado para servir de fruteira.
Mesmo durante o trabalho rural “tínhamos duas horas de almoço e eu levava uma mão cheia de vime para o campo e dizia para a cozinheira o pôr a amaciar em água dentro de um recipiente de cortiça. Almoçava de repente e no resto do tempo fazia uma cesta e vendia logo”. Contabiliza dizendo que no inicio da sua vida adulta vendia as cestas a 15 escudos, no final da sua vida ativa a 500 escudos e hoje vende a 15 euros. Na verdade, os seus trabalhos variam de preços entre os 50 e os 15 euros. Confessa que fazer cestos é o que mais gosta. “Foi o que aprendi primeiro”, justifica.

Trabalha igualmente a cortiça transformando-a em bancos, tropeças e tarros. Uma das netas, Patrícia Nunes, diz que guarda cada uma das peças feitas pelo avô, e ela própria também se dedica a empalhar garrafas, nos seus tempos livres.
Enquanto recorda como se iniciou na arte, vai contando episódios da juventude. Lembra que a mãe, Maria das Dores Lourenço, que, na realidade, pensava chamar-se Maria Antónia porque desconhecia o seu próprio nome, não era pera doce. “A mãe era Antónia e a ela chamavam-lhe Maria, juntou-se com o meu pai a pensar chamar-se Maria Antónia, e assim continuou mesmo quando eu nasci”, sendo esse nome que consta do registo de nascimento bem como do Cartão de Cidadão de Manuel.
Malgrado as trocas, Maria era uma mulher rígida, como a vida que conhecia, sem lugar para afetos, “qualquer coisa batia”, situação que precipitou o casamento de Manuel muito jovem. No último dia de janeiro de 1958 juntou os trapinhos com a namorada e em 1960 levou Luísa de Jesus ao altar. Recorda que certo dia depois de arranjar uns utensílios de umas vizinhas, arrumou a ferramenta e deixou esquecido no chão um pequeno pedaço de solda que se perdeu para sempre, razão que levou a mãe a pegar num pau para lhe bater. Perante a agressão, a que não estava habituado na casa dos avós, Manuel concluiu que o melhor seria ter a sua própria casa.

Mas para a sua independência, a escola também foi pouca. “Só depois de ter 15 anos é que fui tirar a terceira classe. Já trabalhava na fábrica da cortiça, nas Barreiras, e pedi à minha avó para pedir à professora se me dava escola de noite, quando apareceu a escola para adultos. E a rapariguinha levou-me a exame e mais três. Ganhou 500 escudos de cada um porque pagámos a terceira classe”, afirma.
Aos 20 anos, Manuel “já tinha uma vidinha boa” mas foi de respiração ofegante, vá-se lá saber se do calor alentejano ou se por mais uma adversidade, recebeu a notícia que tinha de cumprir o serviço militar. Afinal, não foi à Guerra do Ultramar porque teve a sorte ter casado antes do alistamento. E na tropa acabou por conseguir o diploma de quarta-classe.
Contudo, sendo militar e com filhos e a mulher novamente grávida, apesar de se ter “safado” às balas em terras de África, conheceu muito pouco da famosa “calma” alentejana e o mealheiro que havia juntado “desapareceu todo” até 1963 quando saiu da tropa. “Foi começar de novo”, disse.
Certo é que a vida de um homem pode ficar, de repente, de pernas para o ar e a má sorte voltou a bater-lhe à porta. Desta vez estava em causa a saúde dos filhos; um deles contraiu febre tifoide e outro, com 20 meses, levou um coice de uma mula que lhe desfez o crânio. Vários tratamentos e cirurgias depois, ambos sobreviveram. No total tem quatro (dois rapazes e duas raparigas), o mais velho vive em Inglaterra e os restantes no concelho de Ponte de Sor.
No entanto, para salvar os filhos gastou o dinheiro que tinha e o que não tinha e a um novo recomeço foi obrigado. “Comecei do nada outra vez. O senhor Manuel David Ferreira, mais conhecido pelo senhor Manel Bom Dia, que tinha aqui um estabelecimento comercial, começou a abonar-me fazenda a prestações para vender. Fazia de caixeiro viajante, andava a vender de porta em porta, com uma carrinha”.
Essa é outra história só vencedora graças à sua exímia pontaria, ao gosto pela caça e ao tiro certeiro numa herdade, especificamente no Monte da Amieira. Valeram-lhe a compra da sua primeira carrinha por 18 contos e com máquina se fez à estrada, na vida de caixeiro viajante, toda as semanas ia comprar fazenda a Lisboa, vendendo em mercados da Nazaré até à Figueira da Foz. Hoje, a única feira em que mantém presença é nas Festas da sua cidade.
No passado, com um transporte motorizado deixou a égua de lado, porque “no tempo da miséria não tinha dinheiro para comprar ração para lhe dar. Era uma palhazeca de arroz e outra ruim e a égua emagrecia. Fui ter com o feitor, o homem era muito meu amigo, para lhe pedir um fardo de feno e o senhor Cleto ajudou-me também a comprar uma carrinha, deixando-me caçar na herdade durante uma época inteira. Com a caça fiz 10 contos”, o resto da dívida ficou a pagar a letras que diz ter liquidado ao fim de três meses.

No meio de toda esta azáfama, ainda encontrava tempo para ir até à taberna jogar à sueca, ou distraía-se a compor versos que poucos guardará na gaveta estando a maioria na lembrança, herdando a veia poética da mãe, que era analfabeta, e do avó paterno que, igualmente, “não sabia uma letra do tamanho de um boi”. Alguns poemas de Diogo Martins e de Maria das Dores Lourenço, Manuel também os memorizou e declamou para o nosso jornal, sem qualquer cábula a ajudar no dizer da composição.
A nossa conversa decorreu em tempo de cogumelos. Nessa manhã a mulher e um dos filhos fizeram-se ao campo para tentar a sorte na apanha. Manuel também conhece “toda a qualidade de cogumelos selvagens que são bons para comer”. Outra forma de conseguir algum dinheiro extra. Ensinaram-lhe homens de Coruche. “Nos Foros da Branca era onde ia levá-los. Ainda ninguém sabia aqui o que era um cogumelo já eu ia vendê-los e chegava a arranjar 100 contos por dia. Naquela altura rendia muito dinheiro, eram a cinco contos o quilo. Há o cenoura, o laranjinha, o tertulho, o calcinha, o língua de vaca, todos comestíveis. Venenosos depois há carradas, o problema é distingui-los”.
Na sua ampla vocação de artista – além de artesão e poeta – Manuel Martins também é dançarino, dando um pé à tradição no Rancho Folclórico da Casa do Povo de Ponte de Sor, cidade do Alto Alentejo à qual Manuel, apesar das vicissitudes, nunca virou as costas.

Ao ler esta entrevista recordo este grande ser humano que conheci desde criança e com quem tanto convivi cada vez que se encontrávamos aprendia algo novo com ele, que saudades do (ti Manuel Tendeiro) 🙏