Começaram por ser uma forma de evocar Camões e de reforçar a relação de Constância com a memória do poeta. Mas, vinte seis edições depois, as Pomonas Camonianas transformaram-se numa grande festa coletiva, feita pela gente da terra, em especial os mais novos, que a assumiu como uma grande celebração anual da identidade da própria vila.
Pelo 10 de Junho de cada ano o que acontece em Constância não é apenas um mercado quinhentista de flores e de frutos: é uma demonstração de criatividade, de empenho comunitário e de capacidade realizadora que contribui para elevar a autoestima dos constancienses e para trazer Camões e o seu tempo à realidade presente.

A ideia inicial
Em 1994, a então presidente da Associação Casa-Memória de Camões, Manuela de Azevedo – jornalista, camonista e amiga de Constância, apresentou à Câmara Municipal a ideia primordial que estaria na origem da realização das Pomonas Camonianas: promover pelo 10 de Junho, Dia de Camões, um mercado quinhentista de flores e de frutos referidos pelo poeta na sua obra, tal como o Jardim-Horto apresenta, em permanência, muitas das plantas que Camões menciona nos seus versos.
E, através de figurantes trajados ao modo da época, recriar o ambiente renascentista em que Camões viveu e, segundo assevera a tradição, por aqui passou. Tendo por inspiradora Pomona, a divindade romana dos pomares e dos jardins, que Camões também cantou, a atividade deveria designar-se Pomonas Camonianas. E assim foi, até hoje.
Recordo-me perfeitamente dos preparativos para essa primeira edição das Pomonas, em que tive o privilégio de participar ativamente. Foi organizada com muitas dificuldades e alguns receios.
As dificuldades são as de sempre, financeiras sobretudo, agravadas por nesse tempo, ainda não estando na moda as feiras medievais e afins que depois proliferaram por Portugal inteiro, existirem pouquíssimos recursos, em especial ao nível das infraestruturas para exposição (as bancas, as mesmas de hoje, foram concebidas com base na escassa informação disponível e executadas pelos carpinteiros da Câmara) e ao nível dos trajos.
Os receios tinham a ver com a forma como a comunidade, a comunicação social e a opinião pública iriam reagir a uma proposta cultural com tais características, sem precedentes na vila nem na região. Mas o que faltava em recursos abundava em entusiasmo e em confiança nas nossas capacidades – do município, da escola, da comunidade – para levar a ideia por diante.
Não foram fáceis os primeiros anos: a atividade, evidentemente, não tinha historial e era pouco conhecida; os jovens figurantes, alunos do 9.º ano da então Escola C+S de Constância, sentiam-se pouco à-vontade trajando de clérigos, de nobres, de povo, de Camões ele próprio; as carências eram muitas e as dúvidas mais ainda. Estávamos todos a aprender, fazendo caminho, descobrindo, criando, melhorando. As Pomonas foram, em rigor, uma criação coletiva da comunidade de Constância.

As Pomonas, 26 edições depois
O tempo que passou e a experiência acumulada foram moldando a festa, corrigindo aspetos menos conseguidos, introduzindo novidades, acertando o figurino – e envolvendo cada vez mais pessoas na sua preparação e realização. As escolas do concelho assumiram os aspetos essenciais relativos à evocação de Camões e do seu tempo, preparando os alunos e os adultos que recriam as figuras da época, ensaiando danças renascentistas, aperfeiçoando a declamação de poemas, organizando representações teatrais.
O que o visitante aprecia nos dias das Pomonas não foi improvisado na véspera: é o trabalho intenso e empenhado de todo um ano letivo.
E as Pomonas não são um mero mercado quinhentista ou um pretexto, encomendado a empresas da especialidade, para animar uma vila durante dois dias ou três: são a expressão do labor de uma comunidade inteira – alunos de todos os estabelecimentos de ensino do concelho, dos jardins de infância ao ensino secundário, educadoras, professores, funcionários, pais e encarregados de educação, associações, Câmara Municipal – em torno de uma figura grande da cultura portuguesa que é, também, uma marca essencial da identidade de Constância: Luís de Camões.

Atualmente várias das crianças e dos jovens alunos que se vestem ao jeito do século XVI para trazer a atmosfera da época de Camões ao nosso tempo são filhos dos primeiros que o fizeram, timidamente, nas primeiras edições das Pomonas há mais de 25 anos.
Para esta segunda geração de participantes, que cresceu a ouvir dos pais a sua própria experiência camoniana, as Pomonas fazem parte da sua vida escolar e da sua cultura local. E anseiam pelos dias do evento em que irão mostrar o seu jeito de viver Camões, o seu contributo para esta grande festa coletiva.
Muitas vezes me têm perguntado se Camões afinal esteve ou não esteve em Constância. É sabido que não foram ainda encontradas provas documentais inequívocas que testemunhem essa provável presença. Mas não me parece que isso seja o mais importante e costumo responder que o que importa não é saber se Camões esteve mas que Camões está! Está sempre, todo o ano, na sua Casa-Memória, no Jardim-Horto, no monumento que o evoca jovem, olhando o Zêzere a caminho da foz. E, sobretudo, no crer do povo.
Mas durante as Pomonas Camonianas é mais visível. E todos o sentimos mais nosso. Não por sermos donos dele que a Portugal pertence e ao mundo. Mas por fazer parte de nós, da nossa identidade. Constância só é Constância com Camões dentro de si.

POMONA, Divindade dos Frutos e dos Jardins
(o texto fundador)
Os dons que dá Pomona ali Natura
Produze, diferentes nos sabores,
Sem ter necessidade de cultura,
Que sem ela se dão muito melhores:
As cerejas, purpúreas na pintura,
As amoras, que o nome tem de amores,
O pomo que da pátria Pérsia veio,
Melhor tornado no terreno alheio.
[…]
Bem se enxerga nos pomos e boninas
Que competia Clóris com Pomona.
Luís de Camões, Os Lusíadas, IX, 58-62
Na Antiguidade, os povos davam uma enorme importância à religião que era considerada um modelo para a vida e ajudava a explicar e a influenciar o que a razão humana tinha dificuldade em entender. Gregos e Romanos construíram um enorme panteão, constituído por um número muito grande de divindades que contribuíam para dar sentido aos sentimentos das pessoas, aos acontecimentos do quotidiano, aos fenómenos naturais, à vida e à morte.
Particularmente representadas eram as forças da natureza, responsáveis por tudo o que envolve a vida dos homens, como o sol e a chuva, o vento e o mar, o céu e a terra.
Num mundo com características vincadamente rurais, fenómenos como a germinação das sementes, o crescimento das plantas e o amadurecimento dos frutos assumiam uma enorme importância. Por isso eram divinizados e prestava-se-lhes culto.
Pomona era a divindade que presidia à florescência das plantas e ao crescimento dos frutos. O seu nome tem a mesma origem etimológica de pomo (fruto carnudo) e de pomar. Era-lhe consagrado um bosque, chamado Pomonal, situado na estrada de Roma a Óstia, onde se lhe prestava culto. A importância de Pomona no sistema mitológico romano é atestada pelo facto de o seu culto ser confiado a um flâmine, um sacerdote especificamente destinado a essa tarefa. Não admira que assim fosse, pois o desabrochar das flores e o amadurar dos frutos, mais do que um espetáculo para os olhos e um prazer para o paladar, eram uma questão de sobrevivência para uma sociedade que dependia da generosidade da terra.
Camões, poeta maior do renascimento dos valores clássicos, evoca com frequência as divindades gregas e romanas e, de entre estas, Pomona. E refere-se, por outro lado, a uma imensa variedade de flores e de frutos que ela protegia.
São alguns desses frutos e dessas flores que são expostos para apreciação e para venda em Constância, sob a inspiração tutelar de Pomona e num ambiente que lembra o século em que Camões viveu e por aqui passou.
António Matias Coelho
Texto publicado originalmente por ocasião das I Pomonas Camonianas, em 1994
(Boletim Informativo da Câmara Municipal de Constância, n.º 26, p. 7)