A ideia de criar uma nova monografia surgiu para ser um documento de suporte pata pensar o desenvolvimento do concelho e das suas gentes, explica o historiador Paulo Falcão Tavares. Foto: mediotejo.net

Para que serve uma monografia? “Cada vez mais, para dar pistas claras do que deve ser feito no desenvolvimento regional, não só do concelho como também das pessoas – e tentar sobretudo uma coisa muito importante, que é fixar pessoas no concelho. Para isso é preciso ideias. Muitas vezes estão à vista, mas não as alcançamos. E às vezes as monografias e a escrita conseguem fazer-nos ver e acreditar mais nesses possíveis paradigmas. É justamente isso que esta nova monografia de Mação quer alcançar”, começa por explicar o historiador Paulo Falcão Tavares ao nosso jornal.

O desafio partiu do atual presidente da Câmara de Mação. “O Dr. Vasco Estrela tem feito muitíssimo em prol de todo o concelho e é um autarca de extraordinárias qualidades, [que tudo faz para] fixar pessoas no concelho, diz o investigador. Sabe que “sem uma monografia de qualidade não se pode trabalhar bem num projeto futuro, e Mação não tinha uma monografia atualizada, nem bem estruturada”.

A anterior “Monografia do Concelho de Mação” data de 1946, da autoria de António de Oliveira Matos. A nova vai ser publicada em 2024, com “muita coisa que nunca ninguém ouviu e que certamente vai fazer falta para um plano estratégico do próprio concelho”, diz Paulo Tavares. “Sem as fontes históricas é praticamente impossível trabalharmos, porque falamos da identidade, ou seja, trabalhamos o passado com vista ao futuro. O passado é a construção do nosso presente que nos dará depois o futuro, e isto não é uma teoria, é uma prática”, reforça.

A estrada medieval antiga rua da Amieira, em Mação. Créditos: mediotejo.net

“As monografias servem, cada vez mais, para dar uma pista clara do que deve ser feito no desenvolvimento regional, não só do concelho como também das pessoas. E tentar sobretudo uma coisa muito importante, que é fixar as pessoas no concelho. Para isso é preciso ideias. Muitas vezes estão à vista, mas não as alcançamos. Às vezes as monografias e a escrita conseguem fazer-nos ver e acreditar mais nesses possíveis paradigmas. E é justamente isso que a monografia quer alcançar”, explica o historiador ao nosso jornal.

Nesse contexto, muitas novidades históricas do concelho de Mação vão agora ser publicadas em livro, com a chancela e edição do município do Mação, imensas fotografias históricas, como por exemplo as chancelas ovais dos correios de Mação, da impressão do dinheiro maçaense (notas emitidas em 1921 pela Câmara Municipal), ou do primeiro automóvel e camioneta a entrarem no concelho.

Quanto ao tempo de realização da monografia, Paulo Falcão Tavares confessa ser “curto”, tendo em conta o que exige. “Requer ler tudo acerca do concelho. E não só o que foi escrito mas também o que se guarda em diferentes arquivos e museus”.

No entanto, esclarece, uma monografia “é um trabalho geral, não é uma redação em particular de todos os assuntos. Revela-se o perfil histórico, económico, espiritual e sociológico de uma povoação. Se precisaria de mais tempo? Talvez. Mas vai ser escrito aquilo que conservo como mais importante para a memória da vila e sobretudo para a dinamização das pessoas e dos seus interesses”.

O autor da nova monografia de Mação, Paulo Falcão Tavares, junto à torre do relógio na praça da vila. Foto: mediotejo.net

Paulo Falcão Tavares nasceu em 1963, em Abrantes. Licenciado em História pela Universidade Autónoma de Lisboa, Mestre em Gestão e Valorização do Património Histórico e Cultural, ramo Património Artístico e História da Arte, pela Universidade de Évora. Historiador, heraldista e gestor de património, é autor de dezenas de artigos e livros sobre História, Património Cultural e Heráldica. Presidente executivo e fundador de diversas instituições de cariz histórico e patrimonial, é membro de várias instituições científicas nacionais e estrangeiras e secretário-perpétuo da Academia Tubuciana de Abrantes. A Liga dos Combatentes concedeu-lhe a Medalha de Honra ao Mérito (grau ouro) e foi agraciado com inúmeras ordens honoríficas nacionais e estrangeiras. Delegado e presidente em Portugal das Ordens Dinásticas da Casa Real de Sabóia (Itália), é Cavaleiro Comendador da Ordem dos Santos Maurício e Lázaro (Casa Real de Sabóia), Presidente do Instituto Imperial São Pedro de Alcântara, e Lugar-tenente do Chefe da Casa Imperial do Brasil, S.A.I.R. Príncipe Dom Pedro Bourbon de Orleans e Bragança (Palácio do Grão-Pará, Petrópolis).

O concelho de Mação pertence ao distrito de Santarém e é o vértice de três regiões: Beira Baixa, Ribatejo e Alentejo. É conhecido pelos três A’s: boas Águas, bons Ares e bom Azeite. Além disso, toda a área do concelho constitui uma riquíssima zona paleontológica e arqueológica. No campo da arqueologia, há uma grande riqueza de vestígios da época romana, como o balneário romano em Ortiga, ou as termas em Vale do Junco.

A paisagem natural estende-se na beleza das montanhas, com cascatas que terminam em pequenas e acolhedoras piscinas naturais, rochedos implantados na crosta maciça das serras, à semelhança de castelos medievais… que Mação não tem.

“Mação tem dois períodos importantes: a Idade Média, a construção da matriz que vem dar apoio aos peregrinos e outras pessoas que chegavam ao território, e ainda a construção da torre do relógio, já na época moderna, dando conta de uma centralidade administrativa, a praça de Mação”, explica Paulo Falcão Tavares.

O período cronológico estudado versa “desde a descoberta do cavalo pré-histórico”, ou seja a primeira figura rupestre paleolítica descoberta há mais de 20 anos no Vale do Ocreza . Portanto, “são milhares de anos de história que têm de ser postos em prática”, frisa. “Tive uma ajuda, porque há muita publicação sobre o passado histórico de Mação, nomeadamente sobre o pré-histórico. Aliás, este município distingue-se exatamente pela publicação de inúmeros livros sobreHistória, e isso é muito relevante porque quer dizer que estão à procura da sua identidade”.

Para o autor a identidade é isso: “Sabermos quem somos e para onde vamos. Livros que podem parecer pouco importantes têm sempre qualquer coisa para ajudar a construir uma memória, e é isso que compete às monografias: reconstituir memórias”. Para tal, o historiador recolheu depoimentos, procurou factos, comprovou-os em forma documental, e conseguiu fotografias de época que irá incluir na obra.

Caracterizando as gentes de Mação, Paulo Falcão Tavares atribui-lhes “o conceito do homem-bom do passado, aquele que governava a vila e o concelho. São pessoas, muitas vezes, com uma identidade obscura mas que defendiam a sua terra e os seus bens com grande aptidão de gestão”.

Parte da história abordada no livro não passa ao lado das primeiras eleições republicanas. “Houve uma ‘chapelada’ nessas eleições e curiosamente encontro um neto de uma pessoa que participou nessa adulteração. Conta ele que os avós e os tios tinham votado várias vezes nas eleições republicanas de Mação, o que veio portanto corroborar o que está nos documentos e nas queixas que o povo tinha feito nessas eleições”.

A esse propósito relembra que, um dos grandes republicanos portugueses esteve em Mação para um comício onde ninguém marcou presença porque os maçaenses eram, na época, apoiantes da monarquia.

Garante que a Monografia irá apresentar “muitas coisas completamente novas para a memória da vila. Por exemplo, a questão da participação de Mação nas Exposições Universais. Não se pode falar da história de Mação sem falar na família Belo, porque ocuparam os cargos da presidência do concelho durante 60 ou 70 anos. Dominaram em absoluto a vila nesse tempo e foram produtores com muita capacidade interventiva, não só em Mação mas também fora e isso foi decisivo, porque as atividades industriais nos séculos XIX e XX foram decisivas para o crescimento da população” em Mação, explica.

O sector económico que mais contribuiu para o desenvolvimento de Mação foi outrora o sector secundário, a indústria, em particular a já extinta Fábrica Mirrado.

Quanto aos ilustres filhos da terra, com destaque na sociedade portuguesa, “temos a caracterização de algumas dezenas e temos três ou quatro figuras de referência mundial”. Cita alguns nomes: “o Bispo de Nankin, na China (século XVIII), D. Caetano Pires Pereira, nomeado Mandarim da China, natural do Carvoeiro, irei publicar o seu retrato original a cores, no livro. Foi um dos grandes diplomatas portugueses na China, cuja biografia está por realizar”.

Refere também o padre Joaquim da Silva Tavares, notando faltar musealizar a casa do cientista de renome mundial, em Cardigos. A este jesuíta e cientista se deve a primeira “criação” da lei biológica do equilíbrio das espécies, de 1926. “Decisivo no estudo das ciências naturais, tanto mais que é o fundador da revista Brotéria, dos jesuítas, que ainda hoje existe, com publicações científicas extraordinárias. Foi um vulto mundial, viveu em Paris e em Nova Iorque, em exílio devido às perseguições republicanas, e na sua área das ciências foi uma figura de proa, tendo sido convidado para várias academias internacionais, não só em Portugal, a Academia das Ciências, como por exemplo a de Paris ou outras. É uma figura que deveria ser mais trabalhada no concelho”, opina.

Menciona igualmente António Lino Neto, presidente da Assembleia Nacional “num tempo muito difícil”, considera. “Um homem que ajudou muito Mação quando era deputado da Nação, em Lisboa”. Recorda um grave conflito que a GNR teve com a população, que será descrito no livro. Também Abílio Tavares que teve 2371 dias como Governador Civil de Santarém, o mais longo mandato de Santarém. “Notável autarca do concelho, não obstante outros dois maçaenses que foram governadores civis de Coimbra e de Vila Real”.

Outra figura “muito importante”, no século XVII, foi o padre Bartholomeu Rodrigues Chorro “que publicou 26 edições conhecidas de uma única obra ‘As Curiosas Advertências’…, um grande best-seller de Portugal daquela época. Não conheço outra obra que tenha tido tantas edições, excetuando ‘Os Lusíadas'”. Morreu em Abrantes em 1659, onde foi sepultado.

Cardigos. Vista da torre da igreja. Foto: CM Mação

Lembra ainda que a ideia de se criar um monumento em Sagres, em homenagem ao Infante D. Henrique foi do maçaense Joaquim Manso, de Cardigos, ilustre jornalista.

Sem esquecer a família Mirrado, proprietária da maior fábrica de lanifícios de Mação, fundada no final do século XIX tendo laborado até ao século XX. “Ocupou milhares de pessoas durante décadas, inclusive teve um clube de futebol. Foi de facto muito importante porque fixou não só as pessoas como também exportou grande parte da sua produção”. Referindo uma “curiosidade” dá conta da popular cantora Tonicha ter levado ao Festival da Eurovisão um fato feito na fábrica Mirrado, em Mação.

Desde 1705 que Mação possuía fábricas de lanifícios, embora “não fossem fábricas bem estruturadas nem com a dimensão da Mirrado mas desde essa data que há produção efetiva de lanifícios. Desde o início da idade moderna, o Mação teve gente ligada aos lanifícios. Por exemplo tintureiros sempre houve no Mação, há documentação sobre isso. A ideia que se tem, que só em Arraiolos é que haviam tinturarias, na idade média, por causa dos tapetes é errada. Mação também teve mas ligadas aos têxteis, à produção de vestuário. Os tintureiros eram geralmente de religião judaica mas no Mação eram cristãos”.

O autor da nova monografia de Mação, Paulo Falcão Tavares, junto à torre do relógio na praça da vila. Créditos: mediotejo.net

Paulo Falcão Tavares confirma através de documentação que “não houve uma judiaria nem judeus em Mação”. Diz que um padre em 1750 refere essa verdade ao escrever “nunca na minha terra ouvi falar que houvesse algum judeu ou gente que tivesse sido perseguida ou indiciada pela Inquisição”.

Na prática da confirmação nota que Mação é a terra do porco, especificamente do presunto. “Quem come carne de porco não é judeu. Aliás é corroborado pela obra premiada em Paris, de Armando Fernandes que elaborou uma carta gastronómica do concelho em que refere justamente isso, ou seja, cá comia-se tudo aquilo que os judeus não podiam comer, portanto não havia comunidade judaica. Não encontrei nenhum documento nesse sentido”.

Neste estudo de arqueologia, história, biografias e tradições com os documentos à vista revela outra antiga atividade de Mação: a produção de calçado. “Como Mação tinha muito gado, sobretudo ovelhas e cabras, usavam as peles para a produção de calçado. Mação tem a tradição secular das peles brancas usadas geralmente para calçado.

Havia também outro produto característico do século XX que se perdeu, a questão da produção e feitura dos safões, uma espécie de calças que protegia a roupa desde a cintura até aos pés. Algo usado ainda hoje na lavoura no Alentejo e em Espanha. “Mação teve um último grande homem da produção de safões, o sr. Alexandre que os fazia com grande categoria, inclusive com bordados”, conta.

A história da indústria de Mação guarda ainda os desaparecidos capotes. “Castelo Branco teve no século XX uma casa de capotes, os quais eram todos produzidos no Mação. A lã era produzida e tecida em Mação e depois tratada pelos alfaiates. Os capotes daqui eram vendidos também em Abrantes, no Alentejo, iam até Alter do Chão. Semelhantes àqueles que ainda hoje se vendem no Alentejo, com design do século XX”.

O próprio historiador teve o seu primeiro capote, aos 17 anos, feito em Mação, no conhecido Gueifão, que diz guardar com estima. “Até podemos afirmar que Mação é uma terra de capotes. O modelo clássico e tradicional, pois as fotografias tiradas em Mação no final do século XIX, as pessoas vestem esses modelos de capotes. Temos seguramente 200 anos de capotes produzidos em Mação, ou seja, poderia criar uma pequena fábrica ou indústria de capotes porque era absolutamente integrado do ponto de vista histórico e identitário”, defende.

Conta que havia até quem distinguisse a pele da raposa de inverno e de verão porque “o sr. Alexandre tinha uma característica interessante: vendia também as peles fora do capote, ou seja quando uma pessoa se dirigia a ele para comprar um capote, perguntava sempre que pele queria, se uma mais barata ou mais cara, porque as peles das raposas tinham a ver com essa característica da cor” sazonal, explica.

Uma indústria “muito particular” que se perdeu. O último alfaiate de Mação havia morrido há cerca de um mês aquando desta entrevista no início de julho de 2023. “Os moldes dos capotes existem, mas ninguém seguiu esses passos. Uma lacuna que Mação devia de preencher. A vila deveria ter uma loja que vendesse capotes, mesmo que a lã não fosse produzida localmente – hoje é impossível -, mas pelo menos poderia cortá-los e poderia exportar made in Mação”. Considera, por isso “uma tradição válida com raiz histórica genuína. As profissões não morrem, nós é que deixamos morrer as profissões”, observa.

Fofas de Mação ‘Segredos de Mação’

Como não poderia deixar de ser, Paulo Falcão Tavares aborda também a gastronomia na monografia, incluindo as tradicionais cavacas de Mação. “As cavacas, nos anos 20 do século XX, eram vendidas nas seis melhores pastelarias de Lisboa, e quem as levava era Manuel da Silva Catarino, um grande empreendedor local, um homem que fez tanta coisa”. Quanto à antiguidade das cavacas do Mação, remonta à idade média. “Eram feitas sobretudo com mel que se produzia no território. O mel é um estabilizador, substituto antigo do açúcar, começou por ser o primeiro produto endógeno de Mação aplicado à doçaria, popular, neste caso porque não era doçaria conventual, em Mação nunca existiu nenhum convento”, esclarece.

As cavacas eram confecionadas, tendo em conta a sua durabilidade, para os almocreves levarem nas suas grandes viagens por campo e por barco, inclusivamente para Lisboa. “Felizmente hoje há uma pessoa no Mação que faz essas cavacas”, produto para o qual defende registo oficial e marketing adequado.

Mação era também um território de grande produção de mel. A comprová-lo, uma das localidades tem por topónimo Vale da Abelha. “Mação chegou, a ser a partir de 1430, o fornecedor de mel do mosteiro das Donas de Abrantes, o primeiro mosteiro de senhoras que houve em Abrantes. O Bispo da Guarda compra uma propriedade chamada Maxial, que fica no concelho de Mação, o mel é produzido nessa propriedade e é fornecido ao mosteiro de Abrantes. Mação passa assim a ser o primeiro fornecedor de mel do mosteiro abrantino que depois teve uma larga tradição na doçaria conventual”.

O historiador investigou, procurou e comprovou informação “em quase todos os arquivos onde existia informação relacionada com Mação”. Muita da informação encontrou-a “por mero acaso” no fundo de conventos e mosteiros, nomeadamente documentação do século XV referente à compra de propriedades no Mação. Fontes documentais que serão identificadas no livro, permitindo a comprovação por qualquer pessoa, embora o autor faça a transcrição de algumas partes desses documentos, alguns escritos em latim.

Explica que Mação “tem uma dificuldade de fontes muito grande, tem poucos documentos antigos escritos”, facto que se deve à sua independência administrativa tardia, uma vez que pertencia ao termo de Abrantes e depois a várias famílias. “Os documentos existentes são do século XVIII para diante, até porque os franceses, aquando das Invasões Francesas, queimaram alguns”, justifica.

Quanto ao turismo, referindo Envendos, Paulo Falcão Tavares afirma que “o primeiro turismo em Mação – no período cristão, excluindo o período romano – foi o termal, com a Ladeira de Envendos”, época em que era do conhecimento público que as águas sulfúreas eram boas para a saúde. Foi realizado até “uma espécie de estudo bacteriológico das águas que vieram a confirmar isso”, diz.

“No final do século XIX temos a família Viegas Facada, proprietária das termas que tentou implementar o turismo termal. Acontece que tinham pouquíssimas instalações e portanto algumas pessoas pernoitavam em barcos com tendas, para poderem usufruir das águas. Não pernoitavam com qualidade e o termalismo exige qualidade porque, normalmente, são pessoas doentes e não podem expor-se à chuva e ao frio.”

Azenha do Cavaco/Pego do Morena, após a aldeia de Caratão e já na freguesia de Envendos. Foto: mediotejo.net

Sendo certo que no século XX as termas tiveram continuidade mas com pouco acompanhamento estrutural. “É fundamental haver um restaurante e um hotel com qualidade. Ou seja, Mação sempre teve estalagens, desde a idade média e essa tradição manteve-se até muito tarde, mas nunca teve grande qualidade nessas casas de pensões ou hotéis. Precisa de um hotel de três ou quatro estrelas para fixar pessoas, não só para o termalismo mas para poderem usufruir do espaço, ainda por cima têm um sítio extraordinário que é o da barragem de Belver, na zona de Ortiga, entre outros”.

O historiador defende que Mação “abandone os bairrismos” e faça maior uso do Castelo de Belver, devido à proximidade, sendo um monumento “marcante, deveria ser mais publicitado”. A região é quem ganha. A mesma freguesia do concelho de Gavião que tem hoje o Museu das Mantas e Tapeçarias. Paulo Falcão Tavares garante serem mantas e tapeçarias genuinamente de Mação, mas “foram levadas para Belver numa transferência de património. Uma questão que tem de ser abordada, estudada e até devidamente identificada”.

A esse propósito refere que Mação teve, desde o século XVI, uma cor típica, a cor azul petróleo. Muito por causa do tingimento das lãs, que se fazia sobretudo em azul. Dá conta de um testamento de um padre do Mação, que foi cónego de São Tomé do referido século, no qual refere o azul do Mação. “É inequívoco! Ainda hoje é visível em algumas peças que têm no museu. Esta é a problemática do património, tem de ser estudado para percebermos qual é a sua origem. Belver também tinha gente que fazia tecidos mas não era uma zona de produção de lanifícios. Tinha sobretudo produção de sabão, azeite e vinho”.

A tradição do azul é uma história por contar. “No século XVIII, a Misericórdia tinha uma espécie de porteiro, a pessoa responsável pelas entradas e pela vigilância da instituição, e dessa época há testemunhos que a roupa desse homem era azul. O azul de Mação quase que deveria ser uma festa nacional. O brasão de Mação tem azul mas é nas ondas do rio Tejo”. Contudo, o grande ex-libris da terra são as uvas… ou, melhor dizendo, o vinho.

Confraria do Vinho da Chave Dourada. Foto: mediotejo.net

O vinho Chave Dourada é único no mundo, devido à sua forma de produção e pelas castas com que era produzido. “Não podemos falar do vinho Chave Dourada sem falar nas castas de uvas pré-filóxericas usadas no Mação: Galego de Monte-mor; bastardo e cachudo. Hoje faz-se o vinho da mesma forma que se fazia mas as suas castas já não são respeitadas na forma produtiva, apesar de serem brancos, o que é um grande prejuízo para o vinho Chave Dourada. Não podemos falar no verdadeiro vinho. O vinho tem de ter rigor histórico, senão perde a sua identidade e diferenciação, não pode ser um vinho qualquer”.

Além disso, o vinho conta com algo único no mundo: uma genealogia. Ou seja, foi passado de geração em geração por pessoas que estão identificadas na sua produção.

Por causa dessa singularidade, Paulo Falcão Tavares defende que o Chave Dourada poderia ser candidato a produto classificado como património da humanidade. “Provavelmente o único produto que Mação têm que poderia ter essa qualificação mundial. Isso mudaria por completo o paradigma do concelho. Poderiam até criar zonas de turismo enológico ou outros”.

Define por isso o momento, também ele único uma vez que, no âmbito do PRR, Mação tem 500 hectares para reorganizar a sua paisagem. “Este Plano de Recuperação e Resiliência vem permitir quase de forma gratuita a alteração do património produtivo, com vinha e olival. Era a altura certa para fazer essa reintrodução das castas autóctones. O hectare da vinha é caro mas tem a vantagem de conseguir dar produção anual aos vitivinicultores e conseguir fixar população porque a vinha exige muito trabalho. O concelho em vez de perder população poderia ganhar com a produção deste vinho especial e criar um produto mundial de renome. Mação ainda tem esse património natural fabuloso que são as vinhas antigas”.

O presunto da Marca Mação. Foto: mediotejo.net

Para o produto adquirir qualidade e sustentabilidade, segundo Paulo Falcão Tavares, o Município teria de apoiar a iniciativa porque levaria alguns anos “a ser concretizada”. Compara com o presunto, uma vez que Mação se intitula a catedral do presunto. “Pode e deve apostar na produção de presunto, como já teve, o presunto do Mação, no século XX, era produzido para as colónias portuguesas – como Angola e Moçambique – e também para o Brasil. Eram toneladas de presuntos que saíam daqui. António Mata, o grande industrial no século passado em 1910 foi a Nova Iorque saber das possibilidades de exportação do presunto”para os Estados Unidos.

Atualmente existem duas ou três empresas que produzem presunto “mas de uma forma diferente, mais rápida, em vez de terem 7 meses de maturação é aplicado um método elétrico para em poucos dias estar feito o mesmo produto. Claro que não é a mesma coisa!”, crítica. “O mercado hoje é exigente e consome o melhor”.

Mas é o vinho Chave Dourada que ocupará o maior capítulo do livro porque “pode ser a chave”, justifica. Com a capacidade de poder travar “o despovoamento ou o desânimo. É uma espécie de joia da coroa perdida”. Além disso, “a feitura do próprio vinho passou de geração em geração e vou apresentar uma genealogia desse vinho. Hoje é a conclusão de várias gerações produtoras”.

A documentação impressa mais antiga referente a estes vinhos são ditirambos. O primeiro documento no qual aparece o nome Chave Dourada é na poesia do século XVIII, de Curvo Semedo e de Dinis da Cruz e Silva. “No Palácio da Anunciada do Conde Rio Maior, em Lisboa, realizou-se uma reunião académica. O sogro do Conde Rio Maior era o Marquês de Pombal que vai assistir a essa reunião académica onde no meio das poesias celebra-se o vinho e diz-se claramente ‘quero um Chave Dourada’. Está impresso. Há um historial por trás disso. Quem leva o vinho Chave Dourada para Lisboa, para o meio da corte?”, interroga.

Provavelmente Curvo Semedo, um poeta clássico, também académico da Academia Tubuciana de Abrantes. “Poderia ser devido à proximidade geográfica. A sociedade desse tempo era pequeníssima.

Paulo Falcão Tavares descarta, desta forma, a possibilidade de o vinho ter sido levado pelo padre Figueiredo porque “nem sequer assistia a essas sessões académicas. Era idoso, do clero regular e vivia num convento”.

Os manuais do IVV – Instituto da Vinha e do Vinho, do século XX já não referem o vinho do Mação, apesar de continuar a produzir o vinho Chave Dourada. Mação é igualmente o único concelho fora do Alentejo que fazia vinho em talha de barro tal como se fazia no Alentejo. “Não se sabe bem a ponte produtiva do vinho da talha entre os romanos e o Alentejo, o facto é que Portugal, no Alentejo e Mação no Ribatejo, e a Croácia, são os únicos sítios do mundo onde se faz vinho de talha como os romanos faziam. Também faziam vinho em pipas de madeira, mas a tradição da talha de barro vem dos romanos. E os concelhos alentejanos estão com uma candidatura a património da humanidade por causa do vinho da talha, Mação deveria estar incluído. Tem essa tradição e vou apresentar documentos históricos arcaicos com a referenciação das talhas de barro do Mação”, avança.

Vasco Estrela, presidente da CM Mação, e António Louro, vice-presidente da CM Mação aquando da visita do primeiro-ministro, António Costa, à floresta do concelho em 2016. Foto arquivo: DR

O historiador defende que “no futuro, os produtos que vão dar dinheiro e sustentabilidade, e permitir fixar populações à terra, são os endógenos. Sendo que hoje Mação tem uma economia assente na floresta; os eucaliptos cortam-se de 9 em 9 anos, os pinheiros de 30 em 30 anos, ou seja as pessoas não conseguem viver da floresta, a não ser que tenham grandes áreas. Se não têm rendimento têm de sair. Há que inverter este curso. O ciclo do passado é o ciclo que temos de retomar e a prova está aí com a questão do ambiente”. A história deixou de ser um conto da carochinha, tem de ser prática e auxiliar as pessoas a poderem viver dignamente nas suas freguesias e concelhos.

Apesar de “não ser contra” o eucalipto, nota que apostar nesse tipo de economia é “favorecer o despovoamento e o enriquecimento das grandes empresas” ligadas à floresta nomeadamente ao negócio do papel.

O grande desafio do século XXI em Portugal será “a capacidade das terras do interior fixarem população porque o país é bipartido: litoral e interior. O interior se não conseguir fixar população vai a breve trecho desertificar-se. Referindo que a igualmente “importante” produção de queijos foi esquecida, no Mação, aponta como aposta as atividades referenciadas, como o mel, o vinho, o presunto ou termalismo. “Vale do Junco eram umas termas romanas, é muito importante apostar nisso”, opina.

Neste estudo histórico regional, pensado como uma contribuição para o conhecimento da vida antiga e moderna dos maçaenses, o que mais surpreendeu o historiador foi o facto de “um território tão pequeno ter produzido tanta gente sã. É notável! Em 500 anos provavelmente uma centena de pessoas, que saíram daqui, ocuparam boas e grandes posições”.

E reforça a ideia com novos exemplos: “Um governador de Meliapor, na Índia, outro que foi diplomata na Rússia, Vicente Durão, mestre de cerimónias do grande rei D. João V, mestre de cerimónias do Convento de Mafra e quem iniciou toda a pompa e circunstância, tendo aprendido em Paris e em Roma, como é que se dirigia uma orquestra daquele peso, não esquecer que Mafra tinha diversos carrilhões, uma coisa prolixa do ponto de vista da organização.

O padre António Pereira de Figueiredo, uma figura do mundo, um monumento da língua portuguesa. Pode-se dizer que está ao nível do padre António Vieira. Apesar de ser um latinista e um homem protegido pelo Marquês de Pombal, era muito mais do que isso, foi o primeiro primeiro português a traduzir a Bíblia integral, Antigo e Novo Testamento, coisa que nunca tinha sido feita, teve centenas de edições, ainda hoje se lê a ‘Vulgata Latina’ pelo padre Pereira de Figueiredo. Foi provavelmente o melhor latinista de todos os tempos em Portugal, publicou dezenas de obras extraordinárias que ainda hoje são referência”.

Também a questão de no século XIX terem sido levados muitos produtos de Mação para as Exposições Universais “é um marco. Devo dizer que, por exemplo Abrantes, para uma das primeiras exposições, em Londres ou Filadélfia, não levou ninguém e era uma grande vila em comparação com Mação. Isso é relevante. Nos períodos do Estado Novo, Mação atingiu a maior população de sempre e com muita indústria, tinha várias fábricas. A ulha por exemplo chegou a extrair-se no Carvoeiro e Envendos, com minas a céu aberto”, refere.

Menciona ainda o pêssego mira-olho, referenciado no século XVI em Mação, e produzido também em Abrantes e Proença-a-Nova. “Hoje se for à procura do pêssego mira-olho ninguém sabe o que é”, lamenta. “Perdeu-se a memória e quando se perde a memória de um povo, é muito difícil avançar. É nisso que estamos a trabalhar: consolidar a memória do Mação”.

Estação Arqueológica Romana de Vale de Junco. Créditos: Rotas de Mação

Uma obra de historiografia local, de levantamento, pesquisa e de investigação, que “dá muito trabalho. Porque escrever não é só repetição de fontes, é um trabalho de articulação de pensamento. Temos de agarrar nas fontes, descrevê-las e depois disso pensar”, dá conta.

Dá conta que para a Monografia de Mação, o historiador criou um fio condutor, com o levantamento histórico, social e económico, de equilíbrio. “Não é fácil criar um equilíbrio. Não é um trabalho académico, muito referenciado ao documento. Tem de haver pensamento senão utilizamos a inteligência artificial, que lê os documentos, são replicados e não é isso que se quer. A Monografia de Mação tem de ser popular no bom sentido, ou seja, tem de ser entendível por todos. Explicado com uma articulação ligeiramente alegre e viva”.

Quanto ao número de páginas do livro, não avança com um digito. “Não terá mil mas terá centenas de páginas, não sei quantas, e vai ter muitas fotografias, porque as fotografia são muito importantes para a comunicação”, diz, citando o exemplo de uma fotografia da família Mirrado, na qual se vê um negro, provavelmente descendente de escravos residentes no Mação.

Refira-se que Mação teve escravos africanos durante cerca de 500 anos. “Aquele miúdo documenta uma realidade histórica concreta. Houve costumes externos que vieram influenciar, sim! Encontrei uma família que no século XVI tinha um papagaio, um pássaro exótico vindo do Brasil. Significa que houve gente que esteve lá, nesse período, e trouxe um papagaio. Em Abrantes há casos de escravos chineses, que vieram de Macau e das Filipinas”.

Em jeito de conclusão assegura ser um livro “com cautelas. Porque é para o público em geral, não é para cientistas. E poderá catapultar as possibilidades de investimento e de estratégia que Mação já têm e poderá vir a ter”.

O autor da obra solicita a quem tiver fotos, documentos, “papéis velhos” ou relatos de situações de Mação, que envie mensagem ao mesmo, para paulofalcaotavares@gmail.com. “Todos serão devidamente citados na obra, pelo seu gentil empréstimo, pois esta obra é de todos e para todos”, assegura o historiador.

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A sua formação é jurídica mas, por sorte, o jornalismo caiu-lhe no colo há mais de 20 anos e nunca mais o largou. É normal ser do contra, talvez também por isso tenha um caminho feito ao contrário: iniciação no nacional, quem sabe terminar no regional. Começou na rádio TSF, depois passou para o Diário de Notícias, uma década mais tarde apostou na economia de Macau como ponte de Portugal para a China. Após uma vida inteira na capital, regressou em 2015 a Abrantes. Gosta de viver no campo, quer para a filha a qualidade de vida da ruralidade e se for possível dedicar-se a contar histórias.

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1 Comentário

  1. António José Cardoso realizou dissertação de Mestrado em Desenvolvimento de Produtos de Turismo Cultural, no Instituto Politécnico de Tomar…O vinho “Chave Dourada” e sua contextualização em Mação foi o seu objeto de estudo…Abraço

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