Convidámos os responsáveis das bibliotecas municipais do Médio Tejo a fazerem as suas recomendações neste espaço todas as semanas, de forma alternada. “Os Despojos do Dia”, de Kazuo Ishiguro, é a sugestão apresentada esta semana por Francisco Lopes, da Biblioteca Municipal António Botto, em Abrantes.

Passe pela biblioteca… e boas leituras!

A recente atribuição do Prémio Nobel da literatura ao escritor inglês de origem japonesa, Kazuo Ishiguro, é pretexto para sugerir a leitura do seu romance mais conhecido, já anteriormente distinguido com o Booker Prize, Os despojos do dia.

A primeira coisa a realçar é exatamente a exaltação da cultura e língua inglesas, por um autor originário de uma civilização tão diferente, com origem no outro lado do mundo. Ishiguro provoca o mesmo deslumbramento que qualquer dos grandes clássicos de língua inglesa, impressionando pela aparente facilidade da escrita, da estratégia narrativa, da subtileza da ironia, do drama subjacente sob camadas de múltiplos matizes sentimentais. Tudo isto chegou à língua portuguesa, em edição da Gradiva, através da excelente tradução de Fernanda Pinto Rodrigues, não deixando nunca esquecer que, quer na língua de origem quer na de chegada, não há literatura sem o perfeito domínio e exaltação da língua.

Os despojos do dia é certamente um dos mais invulgares livros de viagens que já se escreveram. Uma viagem onde se mistura o microcosmo de Darlington Hall, onde sempre viveu, o campo britânico e o rebuliço do mundo. O narrador, toda a vida mordomo de um influente Lord inglês e recentemente de um «cavalheiro» americano, é o viajante debutante, durante uma semana, pelo english countryside. Na realidade trata-se de uma viagem pelas suas memórias, uma viagem no tempo às reminiscências da sua vida sentimental e profissional.

Essa viagem decorre fisicamente no verão de 1956, mas emocionalmente desenrola-se sobretudo no pós primeira guerra mundial. Ela representa na vida de Mr. Stevens, o mordomo, a pausa que ele nunca teve, a ocasião sem a qual nunca teria pensado nisso. É também, neste sentido, uma viagem de autodescoberta, que lhe permite uma profunda reflexão sobre os requisitos necessários ao desempenho da profissão e, sobretudo, ser surpreendido com uma análise retrospetiva dos mesmos. Nunca antes tivera tempo para viver senão no presente, alcançando só agora surpreendentes e subtis perceções sentimentais, porque o sentido do dever o dotara de uma total inabilidade para lidar com elas.

O mordomo, graças à sua condição de omnipresença e quase não existência, é um dos homens mais bem informados da época do Tratado de Versalhes e dos acontecimentos de Nuremberga. Assistiu aos seus bastidores, conheceu as listas de convidados. Sabe, porque os serviu à mesa, que entre eles estavam nomes como Herr Ribbentrop, Lord Halifax ou Oswald Mosly, líder dos Camisas Negras da Aliança Fascista Britânica. Não pode, pois, suportar certos julgamentos da história e de fazedores de opinião que não sabem ou propositadamente omitem certos factos.

Num tempo em que, muitas vezes, os parlamentos e os governos se limitavam a ratificar as decisões tomadas nos bastidores das casas senhoriais britânicas, ele sabe que a menor falha na etiqueta ou no mais reluzente estado das pratas, podem afetar decisivamente a política externa. Por isso, servir «sua senhoria» é o mesmo que determinar o bom futuro de Inglaterra, da Europa e do mundo.

O mordomo exerce a profissão no palco dos grandes acontecimentos e sente que dá um contributo para o curso da história. Por isso, o seu sentido do dever impõe-lhe um autocontrolo de sentimentos de tipo militar que o obriga a viver «noutra dimensão». Impedindo-o de ver e sentir «as coisas da vida», aquelas que fazem dos outros homens e mulheres pessoas normais, capazes de rir, sofrer e amar. A sua dimensão talvez nem seja bem humana. Ao ponto de nunca se ter encontrado com o amor da sua vida pois, apesar de viverem na mesma casa, as linhas do dever e do amor nunca se encontram, por força desse dever que sempre lhes impõe percursos paralelos.

Mr. Stevens entende que «qualquer mordomo que tenha alguma aspiração à «dignidade de harmonia com a sua posição» […] não deverá jamais permitir-se estar «fora de serviço» na presença de outros […] um mordomo que se preze deve ser visto a habitar o seu papel absoluta e plenamente e não pode ser visto a despi-lo nem um minuto simplesmente para voltar a envergá-lo no seguinte, como se não fosse mais do que um fato de pantomina.»

É isto que obriga Mr. Stevens a viver nessa outra dimensão, a nunca se encontrar com o amor, e talvez a nem o compreender, pois a amada é antes de tudo a sua própria governanta e, logo, colega e subordinada.

O único devaneio de Mr. Stevens será a leitura de romances sentimentais. «Porque não haveria de fruir de uma maneira despreocupada de senhoras e cavalheiros que se apaixonam um pelo outro, muitas vezes por meio de frases muito elegantes?», pensa. Este seria de facto o seu único devaneio secreto se, descoberto por Miss Kenton, a governanta, não se justificasse com o facto de que, sendo essas histórias geralmente em bom inglês, poderiam sobretudo contribuir para o seu bom desempenho profissional, única justificação para as ler e, mesmo assim, quase nunca até ao fim.

E assim se passa uma vida em que Mr. Stevens é sempre um outro, alguém que está num plano que não o da sua própria vida. Esse plano é o do dever e talvez o tenha feito desperdiçá-la, mas como o saber antes desta possibilidade de análise retrospetiva que a viagem lhe proporciona. Ele esteve sempre de serviço, exceto durante as suas fantasiosas leituras, pois no seu entender «Há uma situação e só uma, em que um mordomo que preze a sua dignidade pode sentir a liberdade para se aliviar do peso do seu papel: quando se encontra absolutamente só.», um luxo demasiado raro na sua vida.

O livro de Kazuo Ishiguro é assim, sem dúvida, também uma obra-prima sobre o sentido do dever e as suas consequências sobre a condição humana.

Diretor da Biblioteca Municipal de Abrantes

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