Os responsáveis das bibliotecas do Médio Tejo fazem recomendações de leitura no nosso jornal todas as semanas. “O Teatro da Memória”, de Leonardo Sciascia, é a sugestão hoje apresentada por Amílcar Correia, da Biblioteca Municipal do Entroncamento. Passe pela biblioteca… e boas leituras!

Leonardo Sciascia (1921-1989), nascido na Sicília, foi escritor, ensaísta, jornalista e político. Figura de relevo e algo controversa do panorama social e político italiano, combateu vigorosamente a corrupção e o poder arbitrário.

A nossa sugestão de leitura, “O Teatro da Memória”, é uma novela de L. Sciascia inspirada num caso autêntico, que cativou a sociedade italiana de 1927 a 1931, ano em que foi tomada a decisão judicial definitiva.

O caso começa com a prisão de um homem apanhado a roubar um vaso de bronze num cemitério. O autor do delito é levado ao posto de polícia, onde não conseguem obter a sua identificação.

O prisioneiro, sem documentos, sem memória e com um comportamento turbulento, torna-se um problema para a polícia de Turim. Levado a julgamento, o “desmemoriado” é considerado inimputável e entregue ao manicómio de Collegno, por despacho do juiz do processo.

Aí vive, conciliado com o seu destino, sereno e feliz, com surpreendentes melhoras menos a memória que não recupera. Contudo, passado um ano, a instituição psiquiátrica começa a encará-lo como um problema, não estando disposta a sustentá-lo, talvez por muitos anos, agora que estava física e psiquicamente recuperado, salva a memória.

O “desmemoriado de Collegno”, como passou a ser conhecido, tinha a sua paz e tranquilidade ameaçada.

Na tentativa de se livrar do “homem sem memória”, um dos médicos, o Dr. Ferrio, fotografa-o e envia a foto para o semanário de maior difusão em Itália, “La Domenica del Corriere (do Corriere della Sera). A publicação é feita em 1927, na rúbrica “Quem viu?”, onde a personagem da foto é descrita como pessoa aparentemente culta e com uma idade estimada de quarenta e cinco anos.

Aparece muita gente afirmando reconhecê-lo, o que era hábito nesse tempo, a dez anos apenas do fim da Primeira Guerra, em que ainda apareciam soldados dados como desaparecidos, com muitos dos reaparecidos encontrados traumatizados e amnésicos, situações consequentes dos horrores que tinham vivido. Alguns, porém, aparecidos tardiamente, provinham de uma longa estadia em casa de uma namorada estrangeira que acabaram por deixar para trás. Outros terão refeito as suas vidas noutro lugar, nunca mais voltando aos seus. Aconteceu…

Voltando ao “desmemoriado de Collegno”, expressão que perdurou por muito tempo, quiçá talvez ainda nos dias de hoje, para designar pessoas que sofrem de “convenientes episódios de falta de memória”.

Como era hábito, apareciam sempre muitas pessoas tentando identificar o seu ente querido, perdido na guerra, nunca dado como morto. Entre as muitas pessoas que procuraram nele o seu familiar desaparecido, surge a família Canella, socialmente bem cotada e de posses, que encontra semelhanças com o seu ente querido, Giullio Canella, professor, desaparecido na guerra.

A família Canella, após as observações que fez e as trocas de conversas com o homem, fica convencida que encontrou Giullio Canella. A maior convicção é a da mulher do desaparecido professor Giullio, e, assim, os Canelli reconhecem e reclamam o “desmemoriado de Collegno” como o seu ente desaparecido, convencendo o administrador do manicómio a deixa-los levar para sua casa o suposto familiar.

O administrador, levado pela emoção do acontecimento, concorda com a partida do paciente para, mais tarde, refletir e concluir que a decisão de deixar partir o seu paciente deveria ter sido tomada pelo juiz que decretara o seu internamento. Assim, o desmemoriado, três dias depois, retorna ao hospício para grande contrariedade da suposta mulher, que viveu conjugalmente com ele esses três dias, convívio de que resultou o nascimento de um terceiro filho da senhora Canella e do suposto marido.

Após a realização de várias perícias, a polícia de Turim convence-se que o “desmemoriado de Collegno” seria um conhecido ladrão de seu nome Mário Bruneri, um tipógrafo turinês, cadastrado e procurado pela polícia. As impressões digitais do “desmemoriado de Collegno” seriam iguais às recolhidas em processo anteriores levantados a Bruneri.

Tendo presente que este sistema de identificação ainda não era considerado uma prova irrefutável, a contenda ou o conhecido “caso Canella vs Bruneri”, continuou a dirimir-se nos tribunais durante quatro anos, com a nação italiana dividida nas suas convicções.

A contenda estende-se aos Bruneri, não por vontade destes, porque a sua companheira e família não queriam manifestar-se como ligadas ao “desmemoriado”. Identificar Bruneri, seria condená-lo à prisão por casos pendentes com a justiça, ficando a família sem sustento.

Quando a polícia se inclina para Mário Bruneri como o ladrão do cemitério, a família de Bruneri é chamada a colaborar para a consistência das provas identitárias.

Este caso verídico, repescado pelo autor, é relatado num estilo de comédia dramática, ao jeito pirandelliano que, este caso, paradoxal e ambíguo, reflete.

Qual foi destino do “desmemoriado de Collegno”? É essa a resposta que encontrará na leitura desta novela. Quando, numa entrevista, o autor foi questionado sobre o motivo de ter escrito sobre tal caso, veio a resposta: “por puro divertimento”.

Boas leituras e, se for o caso, boas férias!

Amilcar Correia

Bibliotecário responsável pela Biblioteca Municipal do Entroncamento

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