Convidámos os responsáveis das bibliotecas municipais do Médio Tejo a fazerem as suas recomendações neste espaço de forma alternada, às segundas-feiras. “Eliete”, de Dulce Maria Cardoso, é a sugestão apresentada esta semana por Francisco Lopes, da Biblioteca Municipal António Botto, em Abrantes. Passe pela biblioteca… e boas leituras!

Eliete é o novo romance de Dulce Maria Cardoso, apresentado a 24 de janeiro de 2019, na Biblioteca Municipal António Botto, em Abrantes. Este romance, que terá uma segunda parte, subintitula-se A vida normal, e é isso que, desde logo, faz dele um caso sério de exercício narrativo a partir duma anti heroína.

Eliete é uma mulher como tantas outras, vulgar na beleza, na inteligência e em todos os aspetos da sua vidinha normal, evocando, salvo as distâncias de tempo e de lugar e a incomparável mestria dos seus autores, certos personagens de Zola ou Dickens.

A verdade é que Eliete nunca se sentiu assim tão mal com a vida nem ambicionou mais que a banalidade. Nunca conseguiu «querer com muita força» como lhe pedia a mãe, espetando-lhe o indicador na testa. «Nunca fora, nunca quisera ser ou nunca soubera ser o centro de uma conversa, muito menos o tema de uma conversa.»

São as circunstâncias da sua vida normal, no suave confronto de gerações com as filhas e a monotonia da relação com o marido, bem como as alterações de contexto social, num ambiente tecnológico subversor de paradigmas e relações, que a impelem a mudanças que nunca desejou e a querer uma tempestade que a torne causa e consequência do que se passa à sua volta.

Eliete faz uma viagem do 25 de abril à atualidade, com um Portugal que foge das aldeias para a cidade para fugir à miséria, mas fica ainda mais miserável. Vive, como tantas pessoas, numa família que tem os seus segredos, sabendo «que a verdade devia ser desprezada como qualquer outra minudência que amesquinhe a vida» e considerando a mentira como «o melhor cimento de qualquer relação», merecendo todos os que a evitam em nome de despropositados preconceitos morais, ficarem sós para sempre. Porque ela sabe que «Não é difícil encontrar quem se interesse por nós, quem goste de nós, o difícil é encontrar quem não desista de nós».

Este é também um livro sobre a heteronímia tecnológica em voga, praticada por quem se sente melhor atrás de uma máscara que lhe permita ser outra pessoa, ainda que intermitentemente e onde o registo exaustivo de tudo o que fazemos, numa infinita arrecadação virtual, está também a tornar-nos outros sem nos darmos conta disso. Onde «a nossa vivência familiar [… inclui] os fantasmas a que cada um [… tem] acesso», contribuindo para que, por mais que nos amemos e sejamos íntimos, continuemos sempre inacessíveis.

Aos poucos, porque os seres humanos sentem uma incontrolável necessidade de fantasiar, Eliete vai-se envolvendo neste mundo virtual que cedo percebe representar apenas a ilusão de que podemos escapar a uma “vida normal” e que as pessoas – ela própria incluída – ficam cada vez mais parecidas com os seus perfis do Facebook e o seu eu digital ganha cada vez mais terreno em relação ao real.

Eliete vai percebendo aos poucos que há pessoas que pensam «nas suas opiniões, gostos, inclinações e [até] desinteresses como leis quase gerais e quase universais», mas também que podemos descobrir como é ridículo culpar o passado de tudo, mesmo que cada geração sinta que a sua sobrevivência implica, quase sempre, fazer tábua rasa da anterior.

De alguma forma, este é um livro sobre a passagem de um «mundo onde só havia o bem e os milagres e o mal e as horas do inimigo, e entre uma coisa e outra o trabalho que santificava, a comida que alimentava e o sono que repousava» e o Portugal contemporâneo, no estertor da modernidade.

Diretor da Biblioteca Municipal de Abrantes

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