Os responsáveis das bibliotecas do Médio Tejo fazem recomendações de leitura no nosso jornal todas as semanas. “Cartas de Amor”, de Fernando Pessoa, é a sugestão hoje apresentada por Amílcar Correia, da Biblioteca Municipal do Entroncamento. Passe pela Biblioteca… e boas leituras!
Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
…
Álvaro de Campos

Pouco tempo após a morte de Pessoa, tornou-se público que o Poeta tinha guardadas, com os seus diversos escritos, umas cartas de amor endereçadas a uma tal Ofélia, nome, a que inicialmente, se pensou tratar de uma personagem ficcional, tão secretamente esta paixão decorreu em vida.
Carlos Queiroz, sobrinho de Ofélia Queiroz, amigo de Pessoa, achou por bem vir a público e declarar a veracidade do namoro, confirmando-o na revista Presença (nº 48/julho de 1936), onde publicou alguns extratos dessas cartas.
Perante um dos maiores poetas portugueses, muitos estranham, a começar por Carlos Queiroz, a escrita pueril e livre de rigores literários que o Poeta usava nessas cartas dirigidas a Ofélia. Uma escrita, em que o Poeta liberta o coração das formalidades da literatura. Cartas, onde Pessoa se expõe como qualquer apaixonado, como qualquer ser humano, com frases espontâneas, escritas como o coração lhas ditava…
“Quem namora por cartas e bilhetinhos está, devido ao seu estado de transcendência amorosa, isento de cumprir as formalidades do autor que escreve para um público anónimo”.
C.Q.
A correspondência divide-se por dois períodos: o primeiro durante 1920 e, depois de um interregno de quase nove anos, um segundo período de 1929 a 1930. Sabe-se que, entre 1920 e 1929, Ofélia, sem ter nunca deixado de amar o seu “Nininho”, namorou alguém, cuja identidade nunca foi conhecida.
O primeiro período começa quando Ofélia vai trabalhar para a empresa, em que um dos sócios era primo do Poeta, onde este tratava da correspondência da firma. Foi nessa condição de “colegas” da mesma empresa, que Pessoa começa a cortejar Ofélia, que se deixa envolver num romance com alguém mais maduro, e com grande presença no panorama literário português. O que é certo é que essa paixão vai perdurar, pelo menos em Ofélia, por toda a sua vida.
O segundo período do namoro foi despoletado pela célebre fotografia de Pessoa a beber um copo de vinho no “Abel”, na Rua dos Fanqueiros. Esta foto foi dada por Pessoa a Carlos Queiroz que a mostra a Ofélia, que pede ao sobrinho para lhe arranjar uma só para ela. É, assim, que a foto, com a conhecida frase – apanhado em flagrante “delitro”, chega a Ofélia vinda de Pessoa, pela mão de Carlos. Começou, deste modo, a segunda fase da do namoro e da correspondência trocada.
Este livro contém 48 cartas de Pessoa dirigidas a Ofélia, leitura que será sempre incompleta se não lermos as de Ofélia a Pessoa.
As cartas de Ofélia Queiroz para Fernando Pessoa só seriam publicadas pela sua sobrinha em 1996, seis anos depois da morte de Ofélia.
Embora com um valor literário insignificante, estas cartas revelam muita da vida pessoal do autor e pode-se estudar, que reflexo estes tempos de enamoramento tiveram na produtividade da obra de Pessoa.
Ficamos a conhecer, nas cartas de Pessoa, a opinião do autor sobre diversos assuntos, como o que pensava dos amigos, como se relacionava com a sua família e outras opiniões que de outro modo nunca teríamos conhecido e que muito ajudarão os estudiosos do Poeta.
O conteúdo das cartas é ternurento e mostra como um grande escritor pode, quando apaixonado, ser o mais comum dos apaixonados, no modo como expressa os seus ciúmes, carinho, mágoas, vida pessoal, tudo isto, muitas vezes de forma simples, mesmo patética, com nonsense, humor, mas sentida e sem filtros.
Este amor por Pessoa, perdurou, em Ofélia, até ao fim dos seus dias. Nunca mais ninguém ocupou o lugar que o seu “Nininho” conquistou no seu coração.
Acompanhou a carreira de Pessoa até à morte deste, em 1936, e só não foi ao hospital vê-lo, após o último internamento e onde veio a falecer, porque não soube do acontecido a tempo.
Ofélia, embora com Pessoa no coração, casa com um conhecido empresário de teatro, tem filhos, cumpre os seus deveres de esposa e mãe, e foi sempre respeitada nos seus sentimentos, mesmo pelo próprio marido, que também era um admirador de Pessoa.
No início deste livro, há um relato, feito por Ofélia, já em idade avançada, muito lúcido e sóbrio sobre o seu relacionamento com Pessoa, relato a que não ficaremos indiferentes, cada um à sua maneira.
Ofélia Queiroz foi, como até há pouco tempo se presumiu, a única paixão que se conheceu a Pessoa.
Recentemente, José Barreto, historiador, descobre dois rascunhos de cartas, ainda em posse da família do Poeta, e deslinda a célebre dúvida, que levara muitos estudiosos de Pessoa a pesquisas exaustivas de um outro amor na vida de Pessoa, a de uma tal senhora inglesa loira.
Eis um dos rascunhos, encontrados por José Barreto:
“A rapariga inglesa, tão loura, tão jovem, tão boa
Que queria casar comigo…
Que pena eu não ter casado com ela…
Teria sido feliz
Mas como é que eu sei se teria sido feliz?
Como é que eu sei qualquer coisa a respeito do que teria sido. Do que teria sido, que é o que nunca foi?”
— Excerto de um poema datado de junho de 1930, atribuído a Álvaro de Campos
Eu, por mim, prefiro pensar que Pessoa morreu com Ofélia no coração.
Boas Leituras.
Consultado:
– Cartas de amor de Fernando Pessoa – Organização, posfácio e notas de David Mourão Ferreira. Edições Ática, 1994.
– Cartas de Ofélia a Fernando Pessoa – Organização de Manuela Nogueira e Maria da Conceição Azevedo. Assírio e Alvim, 1996
https://observador.pt/especiais/a-ultima-paixao-de-fernando-pessoa-nao-foi-ofelia-foi-uma-inglesa-loira/ consultado em 28 de fevereiro de 2020.