“Ainda quer vir? Olhe que as cabras vão para os currais…. É da chuva!”. A perspetiva de fazer uma caminhada pela Serra D’aire, seguindo as cabras serranas e o olhar solitário de um jovem pastor, terá que ser colocada de parte. Ele bem que avisara que, em caso da chegada iminente do Outono, o rebanho teria de ficar protegido.
Sigo por uma estrada de terra batida, terminado o alcatrão, deixando para traz a aldeia de Maxieira, na freguesia de Fátima, em Ourém. O carro vai ao solavancos, ziguezagueando por entre os buracos sulcados pela chuva, contrastando com o relevo próprio da serra. Alguns quilómetros adiante encontra-se a pista, extensa e completamente desmatada, onde foi instalado o complexo de caprinos da Junta de Freguesia de Fátima. Um projeto estimulado pela Quercus, para a preservação dos habitats naturais e semi-naturais na Serra D’Aire e Candeeiros.
Aqui cresce desde 2010 um rebanho de cabras que, com a sua atuação sobre o mato da serra, preserva uma série de espécies de plantas autóctones e únicas da região, em risco de desaparecer. De caminho, o rebanho ajuda também a prevenir incêndios, mantendo vias de acesso e faixas de contenção limpas.
Ouvem-se os badalos e cresce a intensidade do vento a puxar chuva. A humidade entranha o cheiro dos animais no corpo. Sou recebida por um cão rasteiro de pelo branco, eventualmente convencido que se trata de algum membro do rebanho tresmalhado. “Eu bem lhe disse que estava a chover!”, comenta Luís Silva quando me recebe, também desanimado com o fim do Verão.
Sigo os passos deste jovem pastor, que faz recordar os versos do poema “Guardador de Rebanhos”, de Alberto Caeiro:
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Tem 24 anos, mora ali mesmo, numa casa anexa, com a mãe. Toda a vida foi pastor. Ainda bebé, já acompanhava o tio com um rebanho de ovelhas e chegou a orientar cerca de 400 animais. Depois veio a escola, um curso de cerâmica e outro de serralharia. O estágio e a ausência de perspetivas. Desempregado, recebeu então a proposta que lhe mudaria a vida. De Torres Novas, veio viver para Fátima.
Quando lhe perguntam se gosta de ser pastor, sorri. Os olhos brilham. Passa a conversa preocupado com a cabra prenha que mostra sinais de estar em sofrimento. O início do projeto foi difícil, os animais sofreram com a adaptação ao local, morreram alguns até que se conseguisse controlar a origem do problema. Vai explicando os sintomas, os cuidados a ter, fugindo-lhe de novo o olhar para a futura mamã, encolhida a um canto do curral sem se mexer. Por fim decide tomar uma atitude, vai buscar a progenitora e arrasta-a, agarrando-a pelo cornos, até uma divisão reservada, a que chama de “maternidade”. Assustada, a cabra foge. Mas acaba por voltar atrás sozinha, porventura sabendo que irá precisar de ajuda nas próximas horas.

Na serra é diferente. Luís faz-se acompanhar de três cães: o Farrusco, o Macaco e a Gira. O rebanho obedece sobretudo à matilha, mas em tempo de gestação é necessário ter cautela. Os cães “são animais de controlo de rebanho, mas podem morder as cabras e fazê-las abortar”, explica.
As estações exigem ritmos diferentes. Por norma, levanta-se pelas 6 horas mas na Primavera acorda às sete. Segue-se a ordenha, adianta-se algum trabalho. Depois do almoço, parte-se para a serra. Tem dias de fazer 15 quilómetros pelos montes, subindo e descendo os trilhos na peugada do rebanho. “Quando saio de casa, a primeira coisa que penso é onde vou com elas”, observa. “Quando têm leite temos que saber onde podem comer. Elas vêm para desmatar a serra, mas não podemos ir a todo lado”.
Nos montes, encontra muita gente. Pessoas a fazer desporto, a caminhar. Perguntam-lhe se podem tirar fotografias, se gosta daquele trabalho, sendo tão jovem. Luís diz que a tarefa pode ser “massacrante”, mas não se quer ir embora.
“Acho que é uma vida boa, esta de ser pastor. Tem-se mais saúde, é bonito.” Sozinho, pela serra, ouve “telefonia” e “os jogos da bola”. A solidão não o assusta. É como diz o povo: “Mais vale sozinho que mal acompanhado!”.
Já o quiseram levar para França este ano, mas Luís não quis ir embora. “Gosto disto… Assinei contrato e a Junta tem-me ajudado muito”, diz, reconhecido. “As cabras não são minhas, mas foram-me entregues a mim. Cuido delas como minhas”.
Talvez um dia ainda venha a ter o seu próprio rebanho. É um negócio que dá dinheiro, comenta, mas é preciso grandes investimentos iniciais e condições para se ter os animais. Neste momento, o rebanho da Serra D’aire tem cerca de 250 animais. O objetivo é atingir os quatrocentos.
Criar uma região do caprino
“Não é só alcatrão e passadeiras que interessam à sociedade”, comenta o presidente da junta de Fátima, Humberto Silva. Depois de cinco anos a investir no rebanho da Serra D’aire, o autarca tem novos planos e objetivos definidos para potenciar os animais que habitam na Maxieira. Uma quinta pedagógica ou fazer de Fátima um centro do caprino são alguns deles.
“Se as pessoas param na Mealhada e comem leitão, porque não hão-de parar na A1 para ir comer cabrito? Ou sopas de verdes?”, elabora. Criar um centro do cabrito é assim uma das alternativas que Humberto Silva apresenta para desenvolver o turismo além do foco na religião. “A cidade tem crescido muito rapidamente”, acrescenta Tomé Vieira, secretário da Junta de Freguesia, “mas as pessoas só conhecem o lado religioso. Temos todo um espaço rural que deve ser preservado e promovido”.
O rebanho, criado nos pastos da serra, foi o primeiro passo. A estratégia inseriu-se num conjunto de candidaturas de caráter ambiental, como a criação de faixas de contenção de incêndio ou de limpeza de mosaicos de parcelas para gestão de combustível. Ou seja, limpar o máximo possível de mato para prevenir a propagação das chamas. O rebanho veio para preservar os habitats naturais de plantas como a rosa albardeira, orquídeas autóctones e várias ervas aromáticas e medicinais, suplantadas pela agressividade do mato pós-incêndio que impedia o seu desenvolvimento.

Da existência dos animais criaram-se outros negócios. Os cerca de 200 litros de leite que os caprinos dão todos os dias vão para uma queijaria em Santarém, que com esta matéria-prima cria um queijo curado específico, vendido apenas na antiga loja da junta, “Rosa Albardeira” (no mercado de Fátima). A par deste negócio, a autarquia tem já licença para poder matar os animais, vendendo alguma carne em épocas como o Natal ou a Páscoa. No Natal de 2014 conseguiu lucrar cerca de 4 mil euros com a venda de machos.
Agora, o objetivo é que o rebanho continue a crescer e a tornar-se auto-suficiente, potenciando todo um conjunto de atividades à sua volta. Junto aos currais, está a nascer desde já uma pequena quinta pedagógica. Visitada por crianças e idosos, possui uma variedade de animais, oferecidos e comprados pela Junta, como porcos da índia, emas ou póneis, coelhos e galinhas.
A um canto, abrigada da chuva, a cabra prenha continua a aguardar a sua hora. Regresso à estrada que rasga a serra, que agora cheira a terra molhada, e recordo de novo os versos do poeta:
E se desejo às vezes,
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.