Quem anda muitos anos envolvido em política tem dificuldade em ficar alheio aos episódios mais recentes. Contar o que me vai na alma em menos de 4 mil caracteres é tarefa árdua.
Por estes dias o país está em suspenso. António Costa deu uma valente guinada à esquerda, não podia sobreviver depois do episódio do “poucochinho” com Seguro e ensaia uma fuga para a frente. Não pode voltar ao Largo do Rato sem ser Primeiro Ministro, caso contrário fica pendurado e não tem lugar de regresso, não tem profissão, não tem carreira. É licenciado em Direito mas não exerceu e não se lhe conhece profissão; teria de recomeçar como estagiário ou começar a trabalhar algures. Preferiu a fuga para a frente com guinada à esquerda.
Encontrou acolhimento numa esquerda radical que finge agora aceitar tudo: Europa, moeda única, NATO, acordos internacionais, tudo. Pura ilusão. O PCP nunca abandonará os seus dogmas. Nunca. É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que o PC ficar moderado. O BE quer Pasokizar o PS português, tê-lo como refém e capturar de vez o seu eleitorado mais encostado à esquerda.
Se a curto prazo Costa até pode ser Primeiro Ministro, a médio prazo e a longo prazo o PS pode perder a sua ala mais moderada para a sua direita. É normal que assim possa ser.
Mas no dia 4 de Outubro votámos contra vários programas distintos: o da PaF, o do PS, o do BE, o do PCP/PEV e todos os demais. Não se juntaram por um “bem maior” mas por um “mal menor”: derrotar a direita. Pois que o façam agora às claras. Mostrem do que são capazes e até lá podemos viver com um orçamento de gestão e um governo de gestão. Penso que Cavaco não deve dar posse a este grupo de interesses que se formou. E não tem de o fazer, respeitando na mesma a Constituição da República Portuguesa. Não mesmo.
Alterar as expetativas dos portugueses com esta magnitude, após as eleições, implica consultar os portugueses sobre isso. Ninguém deve temer e seria bom que PS, BE e PCP-PEV reduzissem a escrito os termos do seu acordo e o levassem a votos. Os portugueses passariam a ter de escolher entre duas coligações e demais adjacências partidárias. Seria limpinho, limpinho.
Porque assim soa a traição. As notícias de hoje dizem que os juros já sobem, a bolsa caiu e a banca afunda. A deconfiança externa adensa-se. Os ténues horizontes de esperança que Portugal abriu estão a fechar-se, por culpa única de Costa. O mesmo Costa que exigiu a demissão de Seguro por a sua vitória nas eleições europeias ter sido curta. O mesmo Costa que dizia em 2009 que os governos não devem ser formados por “jogos partidários”. O mesmo Costa que disse no Congresso do PS: “os portugueses conquistaram um direito a que não podem nem devem renunciar: o direito a que os governos não sejam formados pelos jogos partidários, mas que resultem da vontade expressa, maioritária, clara e inequívoca de todos os portugueses”.
Não podemos ter dois Costas distintos. Um que acena a tudo e a todos (como fez com Sampaio da Nóvoa e Maria de Belém, ou com a esquerda e a PaF), e que quer gerir o país como geriu a Câmara Municipal de Lisboa esquecendo que, se os arranjos autárquicos não alteram o DNA de um partido, tramóia a nível nacional sim, e de que maneira.
Eu ainda acredito que não haverá acordo à esquerda (ontem Costa foi comedido mas Catarina Martins alardeou o fim da coligação, como se fosse uma virgem tardia e que aos 30 precisa de contar ao mundo inteiro o que aconteceu, de tão contente está).
Mas se isso acontecer o melhor mesmo é que ao povo seja dado o direito de escolher. Assim terá de ser. Porque a leitura que faço das eleições de 4 de Outubro é outra e já o escrevi antes: “claramente quem votou no dia 04.10 disse à PaF: governem lá mas juntem o PS e a sua visão menos neoliberal ao processo, aliviem um pouco a pressão, apesar de termos compreendido que o ajustamento foi imperioso, até custou menos do que estávamos à espera e já vemos alguns indicadores ou sinais positivos”.
Creio que o povo deu um recado de não querer deitar fora todos os sacrifícios já feitos mas exigiu correções de rota, a procurar pela PaF com o PS. E a minha opinião não vale menos do que a dos mestres da esquerda que se arvoram agora detentores de providencial sabedoria popular e autoridade intelectual sobre os demais.
Aguardemos.