António Rosa vai a caminho dos 91 anos e tem nas mãos mais de sete décadas a moldar peças de olaria típica de Árgea, uma pequena aldeia no concelho de Torres Novas. Quisemos descobrir como eram os dias de oleiro, em que a matéria-prima se transformava na loiça vendida aos fregueses, e conseguimos o testemunho marcado pela saudade do último representante de uma tradição que corre o risco de ficar reduzida a cacos.
Árgea surge nos guias turísticos como uma terra de oleiros, mas pouco mais se sabe. Na aldeia continuam presentes as memórias dos dias em que muitos se dedicavam a este ofício milenar e a Rua da Indústria da Olaria relembra os tempos em que os fornos tinham chama. Os vivos lembram-se de uma dezena, os mortos, citados numa edição municipal que aborda o tema, “Árgea, História e Património” (2005), referiam o dobro. Hoje resta um, António Rosa, que aprendeu a arte com o pai, Manuel, e o irmão mais velho, José.

A irmã Albertina participava na criação das peças, pintando-as com a calda de barro branco recolhido em Pé de Cão, num processo que começava muito antes. O barro era cavado com enxadas nos pinhais das Quatro Estradas e transportado até à aldeia na carroça puxada pela mula. Uma vez regressados a casa, era tempo de o colocar nos barreiros (pequenos tanques) para ficar a curtir até passar ao engenho, o sincho, agora soterrado por objetos amontoados no canto de uma garagem. Nesta fase, a mula voltava a ter um papel importante, dando voltas e voltas para que o barro ficasse prensado, pelo menos até ao dia em que o filho do moleiro criou uma versão elétrica do equipamento.

António recorda quando amassava o barro à mão na casa do pai, retirando raízes e outras impurezas, para o transformar nos rolos que seriam abertos e divididos nas porções certas para cada objeto. Chegava o momento da criação, em que a matéria deixava de ser prima e passava a mãe, parindo peça a peça com a ajuda do oleiro. A roda exigia coordenação total entre os pés que a impulsionavam e as mãos que moldavam o barro recorrendo a uma simples cana. Fazia tudo a olho. Tachos, pratos, bebedouros, vasilhas, assadores, cinzeiros, artigos decorativos e potes iam ganhando forma conforme a procura dos fregueses e a inspiração do artesão, que também era músico.

Três dos sete irmãos, ele, Luís e José, tocavam na banda da SIRMA – Sociedade Instrutiva e Recreativa Musical Argense, coletividade que conta com 140 anos de existência. Terão sido muitas as vezes que o compasso da roda foi acompanhado pelo do saxofone, do trompete e do bombardino. Agora, o ritmo está a cargo do pássaro amarelo e o que sobra do laranja do barro na roda mistura-se com o cinzento do pó e as teias de aranha. Um cenário que não impede António de se sentar no lugar cativo. Assim que o corpo se aconchega, os pés começam o movimento e a roda gira. É mais forte do que ele.

Conversámos à sombra da fachada da casa na Rua das Amendoeiras, mandada construir com os lucros do ofício quando casou com Francelina e mais tarde recheada com os quatro filhos, que seguiram outras profissões. A oficina encontra-se no anexo. A parede e o teto escuros revelam o forno onde as peças eram colocadas em camadas depois de dois dias expostas ao sol e aos miúdos que, a caminho da escola, lhes faziam pontaria. O oleiro só parava depois de sete horas a controlar a temperatura até as peças cozidas ficarem incandescentes. No ar sentia-se o cheiro do pinho e do eucalipto e o toque final era dado com uns cavaquinhos atirados lá para dentro.

Uma parte da loiça estava pronta, outra ganhava os tons vibrantes típicos da olaria vidrada de Árgea. O zarcão assegurava o vermelho, o sulfato originava o verde e a calda de barro branco garantia o amarelo. Depois carregava-se a carroça e seguia-se para as lojas e feiras da região. A mula, a Ligeira, não fazia jus ao nome e chegou a seguir sozinha quando António se preparava para para partir. Conseguiu apanhá-la já longe numa valeta, com a loiça intacta. Mais tarde, seria um carro da autarquia a garantir o transporte.

Com o passar dos anos as necessidades dos fregueses mudaram, as vendas caíram e o corpo começou a pedir o descanso merecido. A roda deixou de rodar e o forno ficou frio. O que resta está destinado ao museu do azeite, projetado para o antigo lagar da Cooperativa Agrícola de Árgea. A associação, a mais antiga deste tipo no concelho, doou o edifício à Câmara Municipal de Torres Novas num protocolo assinado em abril de 2011, com uma cláusula que salvaguarda este traço identitário da aldeia através da criação de um núcleo dedicado à olaria. Quatro anos depois, o local está abandonado.

Segundo o executivo camarário, o imóvel foi registado em nome da câmara municipal no ano passado, estando prevista a sua recuperação e reconhecimento como polo museológico ligado ao azeite, onde a olaria terá um espaço de exposição e, possivelmente, formação. O projeto está em fase de orçamentação e existe a intenção de apresentar uma candidatura a fundos nacionais ou comunitários.
A tradição de Árgea tem morrido lentamente com os oleiros e, num mundo marcado pela pressa e a produção em série, vai-se perdendo uma arte humilde em que cada objeto tinha uma história. Esperemos que António Rosa não seja a última peça.