Oksana Pavlyshyna vive em Torres Novas com o marido e as duas filhas. Quando a guerra começou ficou tão afetada psicologicamente que nem conseguia trabalhar. Fotografia: mediotejo.net

Sentada num banco de jardim, Oksana Pavlyshyna fecha o sorriso e desvia o olhar. Pede desculpa. Ainda não consegue regressar ao dia em que começaram a cair bombas em Kiev sem que as lágrimas lhe escorram pelo rosto. Os olhos azuis perdem o brilho e as palavras que tenta proferir parecem ficar presas num nó que lhe embarga a voz. Engole o choro e respira fundo.

“O telefone tocou às cinco da manhã. Era o meu pai: ‘Oksana, a guerra começou’.”

Ela não queria acreditar. Esperou que o pai lhe desse mais pormenores. ‘Há misseis a atacar as cidades’, ouviu do outro lado da linha. Ao mesmo tempo, escutava as sirenes avisando novos ataques aéreos, como se estivessem a tocar em Portugal.

“Aquele som é horrível. Mesmo para quem está longe. Eu estava ao telefone e quando ouvia as sirenes tocar ficava a tremer, com o meu coração a bater muito, ficava em stress. Não sei como é que eles aguentam. Passou um ano, as sirenes continuam a ouvir-se a qualquer hora. Imagino como será dormir com esse toque, imagino as casas destruídas, as crianças pequenas na rua… é tudo muito assustador.”

Os dias seguintes ao telefonema do pai foram de angústia e desespero. Estar a mais de 4 mil quilómetros de distância da Ucrânia tinha pouco de apaziguador. Os seus estavam a ser atacados. O país onde nasceu estava a ser destruído.

Os estilhaços da guerra, mesmo não os sentindo na pele, sentia-os na alma e no coração. De tal maneira, que chegou a entrar numa espécie de transe, numa espiral de ansiedade que lhe apagou da memória o que viveu e como viveu as primeiras semanas da guerra na Ucrânia, em Torres Novas.

Oksana Pavlyshyna, em Torres Novas. Fotografia: mediotejo.net

“Não me lembro bem desses dias, fiquei em pânico”, conta, sem conseguir conter as lágrimas. “Ligava constantemente para a minha família, para saber como estavam. Se não atendiam, porque tinha faltado a luz ou por outra razão qualquer, ficava logo muito preocupada, não conseguia ficar calma até eles darem notícias de volta. Não conseguia trabalhar”, conta Oksana, num supetão de palavras que quase lhe tiram o fôlego.

Nessa altura, diz, foi fundamental o colo que recebeu da comunidade torrejana, sobretudo das colegas de trabalho. “Tenho tanto para lhes agradecer. Foram um apoio muito grande. Ainda são. Porque a cabeça ainda não está livre. Há imagens. Há histórias que ficam no pensamento.”

Construir uma vida em Torres Novas, por amor

Natural de Vinnytsia, na Ucrânia, Oksana chegou a Portugal em 2004 para escrever as primeiras páginas de uma história de amor ao lado do homem com quem tinha acabado de casar. Também ucraniano, o marido, camionista de profissão, já vivia em Torres Novas e Oksana, na altura com 22 anos, recém formada em engenharia eletrotécnica, juntou-se a ele.

O plano estava traçado. Chegavam para trabalhar e juntar dinheiro suficiente para um dia voltarem à Ucrânia, comprarem uma casa e aumentarem a família. Mas a vida trocou-lhes as voltas. Quase vinte anos depois, já com duas filhas, continuam a viver na cidade que os acolheu quando ainda sonhavam com um futuro na terra natal.

O primeiro trabalho que Oksana conseguiu em Portugal foi numa empresa de limpezas, que prestava serviço na Escola Prática de Polícia em Torres Novas. Depois disso, trabalhou numa fábrica de betão, num lar de idosos e numa casa particular como empregada doméstica. Até que, em 2020, concorreu para ser assistente de ação educativa na Câmara Municipal de Torres Novas, e ficou.

Atualmente, está colocada na Escola Manuel Figueiredo e diz que as crianças lhe preenchem o coração e a ajudam a esquecer o desgosto de não exercer engenharia.

“Estava de saída da Ucrânia quando recebi uma proposta de trabalho na minha área. Recusei. Queria estar com o meu marido e vir com ele para Portugal. Deixei para trás a profissão que eu gostava… depois, perdi essa ideia. A nossa vida está aqui, bem organizada e estável. Estamos bem e a nossa prioridade é o futuro das meninas!”, afirma.

Bem integrada na comunidade torrejana, Oksana admite que os primeiros tempos em Portugal não foram fáceis, sobretudo, por causa da língua, “muito difícil”. Tão difícil que ainda hoje não consegue explicar como aprendeu a falar português: “Aprendi uma palavra a cada dia. E ainda tenho de melhorar muito.”

Este “muito” parece-nos exagerado. Oksana acompanha facilmente a conversa. Tirando uma ou outra expressão, que a obriga a consultar um tradutor online, não se percebem grandes constrangimentos.

Mais difícil, nota, é estreitar a distância geográfica da família que deixou na Ucrânia: “Ficaram lá os meus pais, os meus sogros… todos. Tenho muitas saudades.”

Saudades essas que iam sendo compensadas com os abraços trocados todos os anos durante as férias de verão que passavam na Ucrânia. Sem falhar. Até ao dia em que as tropas russas invadiram o país. A fatídica madrugada de 24 de fevereiro de 2022.

Oksana foi um dos rostos mais visíveis no acolhimento aos refugiados ucranianos em Torres Novas

O sentimento de impotência do povo ucraniano face à invasão da gigante Rússia instalou-se rapidamente. Em março de 2022 começaram a chegar a Portugal os primeiros refugiados ucranianos e Torres Novas também lhes abriu as portas.

Okxana foi convidada a integrar a equipa de acolhimento aos refugiados constituída pela Câmara Municipal de Torres Novas. Aceitou de imediato. Seria esta a única forma que teria de “ajudar um pouco” aqueles que agora chegavam sem rumo.

Refugiados acolhidos em todos os concelhos do Médio Tejo

Começaram a chegar em março de 2022, depois de milhares de quilómetros de viagem, num quadro de emergência. Era preciso dar abrigo aos milhares de ucranianos que cruzavam as fronteiras fugindo da guerra iniciada com a Rússia, e a Comunidade Intermunicipal do Médio Tejo disponibilizou de imediato habitações nos vários concelhos da região, financiando também autocarros que partiram de Tomar, Torres Novas e Mação para ir resgatar refugiados à Polónia. Um ano depois, muitos seguiram para outras paragens, para junto de familiares ou conhecidos que já estavam em Portugal. Mas cerca de 600 refugiados permaneceram no Médio Tejo e, segundo dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, estão hoje distribuídos por todos os concelhos, com as comunidades maiores centradas em Ourém e no Entroncamento. A maioria são mulheres e crianças – os homens ficaram na Ucrânia, na frente de guerra. P.F.

“Eu vim para Portugal por iniciativa minha. Sabia para onde vinha e cheguei cá com o meu marido. Aquelas pessoas não. Vinham a fugir da guerra. Muitas mulheres sozinhas, muitas crianças e idosos. Não consigo dizer o que vi nos olhos deles. Desorientação, medo, angústia pelos familiares que lá deixaram. Qualquer ruído parecido com uma sirene e entravam em pânico. Muito stress. Muitos traumas”, descreve.

“Eu fiz tão pouco. Só ajudei na tradução. Fui só uma no meio de uma equipa muito especial. Quiseram agradecer-me, mas eu é que tenho de agradecer a forma como a Câmara Municipal recebeu os refugiados do meu país. Digo sempre que posso: muito obrigada.”

Oksana acabaria por ser o “braço direito” da equipa municipal e um dos rostos mais visíveis neste processo de acolhimento aos refugiados. Um trabalho que foi reconhecido publicamente pelo Município de Torres Novas, através de uma simbólica homenagem no dia em que a cidade torrejana assinalou 37 anos de elevação a concelho, a 8 de julho de 2022.

Oksana Pavlyshyna foi homenageada pela Câmara de Torres Novas, pelo apoio que deu aos refugiados ucranianos. Fotografia: mediotejo.net

“Eu fiz tão pouco. Só ajudei na tradução. Fui só uma no meio de uma equipa muito especial. Quiseram agradecer-me, mas eu é que tenho de agradecer a forma como a Câmara Municipal recebeu os refugiados do meu país. Digo sempre que posso: muito obrigada.”

Entre os refugiados, chegavam também os pais de Okxana, que se instalaram em sua casa, entre março e setembro, altura em que decidiram regressar à Ucrânia.

“A situação parecia mais calma e controlada. Quiseram regressar. É a terra deles. Está lá a casa deles. Eu compreendo. Mas, pouco depois, as sirenes voltaram a tocar todos os dias, a todas as horas. E claro que eu tenho muito medo. Putin não vai parar. As tropas não vão sair da Ucrânia tão cedo”, vaticina Oksana, lamentando uma guerra onde “vale tudo para conquistar o poder”.

“Os russos mataram o nosso povo, violaram as mulheres ucranianas, roubaram as nossas crianças. E ainda estão no nosso país. Não acredito que deixem a Ucrânia tão cedo. Como podemos continuar a viver em paz com essa ideia? Eu não consigo.”

Volta a respirar fundo. Olha à sua volta e enxuga as lágrimas. Está um dia bonito e o marido acabou de regressar de uma viagem de trabalho. Aguarda por Oksana no carro para, juntos, regressarem a casa e abraçarem as filhas. E só aí o sorriso de Oksana volta a iluminar-se.

A maior crise de refugiados na Europa desde a II Guerra Mundial

A ofensiva militar lançada em 24 de fevereiro de 2022 pela Rússia na Ucrânia causou até agora a fuga de mais de 14 milhões de pessoas – 6,5 milhões de deslocados internos e mais de oito milhões para países europeus –, de acordo com os mais recentes dados das Nações Unidas (ONU), que classificam esta crise de refugiados como a pior na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Neste momento, pelo menos 17,7 milhões de ucranianos precisam de ajuda humanitária e 9,3 milhões necessitam de ajuda alimentar e alojamento. A ONU apresentou como confirmados, desde o início da guerra, 7.155 civis mortos e 11.662 feridos, sublinhando que estes números estão muito aquém dos reais.

Carla Paixão

Natural de Torres Novas, licenciada em jornalismo, apaixonada pelas palavras e pela escrita, encontrou na profissão que abraçou mais do que um ofício, uma forma de estar na vida, um estado de espírito e uma missão. Gosta de ouvir e de contar histórias e cumpre-se sempre que as linhas que escreve contribuem para dar voz a quem não a tem. Por natureza, gosta de fazer perguntas e de questionar certezas absolutas. Quanto ao projeto mais importante da sua vida, não tem dúvidas, são os dois filhos, a quem espera deixar como legado os valores da verdade, da justiça e da liberdade.

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