À noite, da varanda do meu prédio, quando as estrelas pareciam caminhar no céu, vinha à minha imaginação, a pobreza e a exclusão social que limitam o ser humano e que se reflete, em última instância, na destruição da sua identidade e autoestima. Tempos difíceis que se avizinhavam.
Pois sim. Vamos lá abrir a audiência e olhar em frente, procurando outros horizontes que não limitem o torpor que, por vezes, acontece nestas miragens de volúpia e encontrar outras tarefas que não se tornem enfadonhas. A minha varanda é única!
O revisor pôs os óculos e armou-os na testa enquanto olhava de soslaio para o movimento da estação de caminho-de-ferro, ali tão perto. Não sei muito bem o quê mas pareceu-me que tirou de uma mala que levava a tiracolo vários utensílios para escrever e um formulário. Procurou a melhor luz, sentou-se e principiou, debruçado sobre o papel, a escrever com grande rapidez mas com um ar fatigado. Imagino que palavras relacionadas com os comboios.
Do alto da minha varanda contei duas horas que o revisor levou a escrever palavras, que não descortinei. O mais salutar da situação é que, ele, depois de todo o processo tirou os óculos e deixou que entrasse na sua pele castigada pelo sol uma luz branda, amortecida no verde da folhagem das árvores que envolvem a estação.
Alguns ruídos estridentes sopram mais espertos e agitam as almas das coisas. Lá do alto, o revisor observa o panorama. Muitas linhas, casas de moradores e tantas outras coisas. A brisa fresca encanava-se por entre as rampas. De repente, sem saber como, começou a falar alto na companhia de um moço que insistentemente pedia um bilhete à borla. Que vale hoje o comércio com os impostos, com as contribuições…somos nós que sustentamos toda esta malta. A pandemia levou as festas, onde muita gente gastava o nosso dinheiro, e nós aqui, a ganhar uma miséria para esses extraordinários comissários.
Coitado do revisor, alagado em suor, ter de passar aquela ponte ouvindo os passos dos homens e sentir as vibrações sonoras e poderosas, como se de um pesado tropel da cavalaria se tratasse. O espetáculo era instigante e ao mesmo tempo assustador – era assustador enfrentar aquela imensidade do mundo modificado. Estranhos seres humanos que fazem sinais com as mãos, em passos apressados, deixando um rasto de silêncio de mistério e solidão.
O revisor olha minuciosamente o comboio que será o dele. Com as mãos geladas e o coração apertado de medo, pula efusivamente para uma carruagem. Fecha a janela. O Sol encarquilhado e de um amarelo esvanecido entra pelas frinchas, desenhando corpos densos e sufocantes. Enquanto punha os óculos, enquanto arranjava os instrumentos de trabalho, aproveitou para arrumar uns livros na mochila que carregava aos ombros, e rasgar uns papéis escritos e uns bilhetes.
Foi com um suspiro de alívio que olhou as pessoas que iam entrando. Uma velha, uma menina e tantos outros, acomodavam-se para descansar. Uns junto ao corredor, outros junto aos bancos, fechavam os olhos. Por momentos o revisor pensou que estava enlouquecido. Fechou também os olhos e teve a sensação que estava rodeado de almas perdidas num mundo escuro e sombrio que mais parecia uma descrição do Inferno, onde as almas atormentadas gritavam de agonia.
Lá de fora vinha o cheiro do amor que iluminava o caminho cercado de árvores. Que bem que faria a cor, o perfume e o sabor das coisas ao mundo modificado. O revisor abriu os olhos e sentiu-se maravilhado pelo cenário que descortinou. Sentiu-se extasiado pelo silêncio e mistério que encontrou. O mundo parecia sem fim, e a terra do amor deixou-o só, diante de si mesmo, observando-se nos seus pensamentos. Nenhum movimento perturbou o seu prazer diabólico em saber a razão da sua existência
A angústia apoderou-se do revisor. Assim ficou sem coragem de cobrar bilhetes e fitar as pessoas nos olhos.