Leone Ginzburg, em Turim, 1934. Créditos: DR

Perto da vista, perto do coração – jornalismo por dentro
Os textos desta secção têm um propósito: contar histórias sobre jornalismo. Os tempos são de “abundância mediática”, mas o consumo ininterrupto de informação coexiste com um grande desconhecimento sobre quem são e como trabalham os jornalistas.

Leone Ginzburg, morto em 1944 aos 35 anos, professor de literatura, judeu russo naturalizado italiano, socialista, fundador da editora Einaudi, diretor do jornal clandestino L’Italia Libera. Segundo os documentos da prisão Regina Coeli, no bairro romano de Trastevere, perto da ponte Sisto que desde 1479 atravessa o Tibre, a causa da morte foi uma colecistite aguda decorrente de hemorragia da vesícula biliar. Omitiram o facto de ter sido provocada por múltiplos traumas internos. Morreu na parte alemã da prisão, depois dos guardas terem descoberto a verdadeira identidade do homem que até aí chamavam Leonida Gianturco.

Os seus últimos gestos conhecidos, relatados pelo historiador Claudio Pavone, também preso numa das derradeiras ofensivas para liquidar os intelectuais italianos membros da resistência antifascista: assobiou o Inno del Piave, uma canção patriótica cantada pelos soldados durante a II Guerra Mundial – Muti passaron quella notte i fanti/ Tacere bisognava, e andare avanti – gritou com dores, disse que depois da guerra seria preciso não confundir os nazis com os alemães e escreveu uma carta à mulher, a escritora Natalia Ginzburg, chamada no dia 5 de fevereiro para recolher o cadáver.

Leone e Natalia Ginzburg, em 1933. Créditos: DR

Segundo os factos, esta foi a última vez que o viu. Mas na sua obra-prima, Léxico Familiar (edição portuguesa da Relógio D’Água), uma autobiografia da sua família, os Levi, que viveram em Turim entre 1930 e 1950, período que marca a ascensão e queda do fascismo, ela recorda-o anos mais tarde, o rosto fixado no retrato pendurado numa parede da editora Einaudi, onde trabalhou a partir de 1954 e praticamente até morrer.

“Na última vez que o vi” – escreveu ela – “tinha o chapéu ligeiramente inclinado, os óculos poisados no nariz, o cabelo preto e espesso, as bochechas com covinhas profundas, as mãos femininas.”

Em As Pequenas Virtudes (edição Relógio D’Água), um livro de pequenos ensaios memorialísticos, há outro singelo apontamento, recordando o último Inverno que a família passou junta, em 1942, quando Leone Ginzburg foi impedido de dar aulas e colocado sob vigilância numa aldeia na região dos Abruzos.

Há muitas memórias felizes, como os passeios na neve com os três filhos pequenos, que deixavam os locais escandalizados – Que pecado fizeram estas criaturas? Volta para casa, signó – e uma triste: “O meu marido morreu em Roma na prisão de Regina Coeli, poucos meses depois de termos deixado a aldeia. Perante o horror da morte solitária, perante as alternativas cheias de angústia que precederam a sua morte, pergunto-me se isto nos aconteceu a nós, a nós que comprávamos laranjas na loja do Girò e passeávamos na neve”.

A crítica literária Cynthia Zarin escreveu na revista New Yorker que a prosa de Natalia Ginzburg mistura o absurdo de Beckett, a leveza de Chekhov e o espírito das últimas peças de Shakespeare, em que a tragédia acontece fora do palco. Seja a tragédia insuportável ou suportável, a vida continua.

Natalia Ginzburg. Créditos: DR

Noutro estilo, pensava o mesmo que Samuel Beckett, o dramaturgo irlandês que também viveu a experiência da II Guerra Mundial, incluindo como membro da resistência francesa. Quando lhe perguntaram se ia continuar a haver canções depois “destes tempos sombrios”, respondeu: “Sim, canções sobre os tempos sombrios.”

Escritoras como Natalia Ginzburg inspiram-nos para compreender o conceito de objetividade jornalística. Primeira regra: não se inventa nada. No prefácio de Léxico Familiar, escreveu: “Os lugares, pessoas e acontecimentos retratados neste livro são reais. Sempre que me sentia a escorregar para os meus velhos hábitos de novelista, corria a destruir qualquer invenção.”

Segunda regra: não se idealiza. Somos tão implacáveis com os detalhes que apenas podem sobreviver os pequenos heróis. Terceira regra: procurar com humor a ligação empática ao Outro. Quando o irmão Mario foi perseguido pela polícia na Itália ocupada e saltou de uma ponte, escapando pelo rio até à Suíça, Natalia conta a reação da mãe, Lídia Levi: “Com este frio atirou-se à água com o casaco vestido!”. Outro exemplo são as descrições da temporada que viveu em Inglaterra, entre a admiração e a perplexidade: “Em geral, os ingleses não mostram surpresa. Se alguém desmaia na rua, está tudo previsto. Passados poucos segundos, trazem-lhe uma cadeira, um copo de água e uma enfermeira de bata”.

Quarta regra, desta vez roubada à poeta Marianne Moore: saber que “os sentimentos mais profundos se revelam não no silêncio, mas na contenção”.

Seguindo esta informal cartilha, talvez o jornalismo seja capaz de apreender o impacto da história coletiva na vida dos indivíduos e contribuir para encher aquela muito pequena caixa das “coisas que nos ficam”: as piadas de família, o cheiro dos amantes e dos filhos bebés, as visões fugazes das casas e dos lugares que habitamos, o sabor das lágrimas no inverno e dos gelados no verão.

A objetividade jornalística exige alguma técnica e uma disciplina que assegure rigor e justiça no relato produzido, mas é sobretudo uma vocação. Ginzburg fala em vocação a propósito de literatura e da educação dos filhos. Na literatura, a vocação obriga a pôr de lado todas as coisas inúteis – as palavras que não existem verdadeiramente em nós mas que sabemos conjugar com astúcia, a vontade de seduzir a cantar – e atingir a beleza poética, “um conjunto de afeto carnal, de fantasia e de memória, de claridade e de obscuridade”.

A literatura exige tudo em simultâneo, ou o resultado é “pobre, precário e pouco vital”. Na educação dos filhos, a vocação aponta o caminho das “grandes virtudes”, a maior das quais é transmitir amor pela vida: “O amor pela vida gera amor pela vida”.

O jornalismo objetivamente conduzido, com paixão, sem traição, também transmite amor pela vida quando nos mostra o que acontece, com distância mas sem desprendimento. Em raros momentos de felicidade, o jornalismo consegue fazer como a literatura, isto é, cruzar os caminhos da história da superfície e da história do subterrâneo.

Se os jornalistas hoje pudessem seguir o conselho da correspondente de guerra norte-americana Martha Gellhorn – “ir a todo o lado, ver tudo e, por vezes, escrever sobre isso” – existiam mais inícios de reportagens que cruzam o visível e o intangível. Como a que Martha Gellhorn escreveu sobre a guerra civil espanhola, em Barcelona: “Estava um tempo ideal para bombardeamentos.”

Carla Baptista

Docente no Departamento de Ciências da Comunicação da NOVA FCSH, investigadora do ICNOVA na área da história dos media e jornalista freelancer, escreve todos os meses no mediotejo.net sobre jornalismo. Porque os tempos são de “abundância mediática”, mas o consumo ininterrupto de informação coexiste com um grande desconhecimento sobre quem são e como trabalham os jornalistas.

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