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“É proibida a entrada a quem não andar espantado de existir”, escreveu José Gomes Ferreira, em “Aventuras de João Sem Medo”. Li este pequeno grande livro faz talvez umas duas décadas. Regressei a ele este ano quando finalmente recuperei o espanto da existência. É coisa boa, vos garanto, e é assim que termino 2022, absolutamente espantada com as voltas e reviravoltas da minha existência.

Acho que toda a gente devia ler este livro. Aos jovens e graúdos muito bem faria viver, através da leitura, estas grandes aventuras. Fazem falta Joões, e claro, Joanas sem medo, neste nosso país muitas vezes acabrunhado, resignado e queixoso. 

Durante uns bons anos esqueci este livro tão querido. Passei, como muita gente, por coisas complicadas. Atravessei um longo tempo em que se me esfumou o espanto de existir e em que fiquei refém em Chora-que-logo-bebes, e tal qual os choraquelogobebenses vivi como os «infelizes chorincas que se lastimavam de manhã até à noite» e andava, como eles, de «monco caído, sempre constipados por causa da humidade, e a ouvirem com delícia canções de cemitério ganidas por cantores trajados de luto, ao som de instrumentos plangentes e monótonos».

“A árvore dos dez braços”, de Nuno Larceda (série de ilustrações para «As aventuras do João sem Medo»)

A minha existência também tinha um muro que me estava proibido (por mim própria) transpor porque eu não tinha qualquer espanto em existir, nem graça encontrava nisso. E durante muito tempo, abandonada ao medo, não dei o salto para me aventurar na floresta. Até ao dia em que me fartei e, decidi, qual João Sem Medo, deixar a minha Chora-que-logo-bebes.

A vida é realmente um espanto, mesmo quando não o sentimos. São interregnos de existência meio adormecida, que precedem despertares surpreendentes. E quando se acorda, como eu acordei, pensa-se ou pasma-se: com tudo o que aconteceu, eu podia não estar cá?!! Mas estou. Sorte ou destino, ou nem uma coisa, nem outra, a verdade é nascemos, morremos metaforicamente, renascemos, morremos de facto, e tudo isto é de uma enorme perplexidade.

Se reflectirmos sobre todas as coisas (se quisermos ficar um pouco loucos, recuemos à origem do universo) que tiveram de acontecer precisamente como aconteceram para que pudéssemos nascer, espanto é a emoção, talvez seguida de gratidão.

Pensem na evolução da vida. Na vossa árvore genealógica. Sei lá, na maratona de espermatozoides que vocês ganharam, e por aí adiante…. Em bom rigor, tanto espanto me causa a vida que muito tempo dediquei a estudar a evolução humana, para nela compreender que o acaso foi rei. Uma miríade espantosa de mutações e derivas genéticas trouxeram-nos até aqui.

E como não acredito em milagres, nem sou pessoa de fé para justificar a vida pela vontade das divindades, então acho mesmo que é um assombro que eu tenha nascido, vivido o que vivi, e estar aqui, em jeito de balanço, a partilhar o encanto de estar viva. É que na rotina dos dias, e não é preciso enfrentarmos dores, lutos ou desamores, facilmente esquecemos esta perplexidade fascinante.

Ao cabo do resto, como dizia a minha querida amiga Marie, portuguesa de França, a existência é uma coisa boa, mesmo que por vezes dolorosa, ainda que vivida com uma certa angústia em dados momentos. Eu, por mim, ando espantada com as contingências da minha vida, já quis viver, já quis morrer e aqui estou hoje a querer viver mais do que nunca. 

Os acasos de uma vida são incrivelmente difíceis de explicar. Às vezes penso nisso, procuro uma explicação, mas se calhar se a encontrar vai-se o espanto e isso, por hoje, eu não quero.

P.S. Ofereçam este ou outro livro no Natal. Boas Festas!

Sara Cura

Arqueóloga de formação, dedicou-se durante largos anos à investigação e ao Museu de Arte Pré-Histórica e do Sagrado no Vale do Tejo, em Mação. Atualmente exerce funções no Gabinete de Apoio à Investigação e Qualidade da Escola Superior de Comunicação Social, em Lisboa.

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