Sem um programa especialmente definido para o 4º centenário, a Misericórdia da Chamusca realizou no dia 23 de abril uma sessão solene na igreja da Misericórdia com a celebração da missa pelo Bispo de Santarém e um concerto de música sacra, isto numa data que coincidiu com os 400 anos do lançamento da primeira pedra para a construção da igreja da Misericórdia.
No dia 15 de maio atuou o coro da Golegã na igreja da Misericórdia e para 9 de junho (data ainda a confirmar) está previsto um concerto com o músico chamusquense José Cid.
Em junho realiza-se ainda na praça de touros uma corrida pelos 400 anos da instituição e, sem data ainda definida, haverá uma gala de encerramento das atividades.
Comecemos por uma caracterização geral da instituição em termos de valências, utentes, recursos humanos, etc. O que é hoje a Santa Casa da Misericórdia da Chamusca?
A nossa atividade principal é o lar, muito importante tendo em conta que é o período da vida em que as pessoas precisam de apoio e quando por vezes estão situação de exclusão social e vivem momentos mais difíceis. Por isso, entendemos que esta seria uma das atividades basilares, aquela que seria a pedra de toque do nosso serviço social e de serviço à comunidade.
Neste edifício onde funciona o lar, inaugurado em 1992, quantos utentes têm?
Temos aqui 50 camas. Estamos a projetar um crescimento para mais 15 camas, devido à necessidade de responder a quem nos procura. Temos tido muita procura e precisamos de dar resposta. Penso que, no concelho em que estamos, Chamusca, que foi fundamentalmente agrícola em termos de absorção de mão de obra, essas pessoas hoje são aquelas que fizeram uma travessia muito grande neste concelho, com rendimentos muito baixos na (possível) reforma. O concelho da Chamusca é peculiar nessa matéria e também porque ao longo do tempo as pessoas têm saído muito do concelho, têm procurado outros meios de subsistência e de outras regiões para viver, acabando por ficar uma população muito idosa. Portanto, nesta altura estamos nos 28, 29 % da população acima dos 65 anos. É necessário responder cada vez mais e construir mais respostas…

Há uma lista de espera?
Há uma lista de espera razoável. Depois temos outra questão muito importante para as Misericórdia, e sobretudo neste tempo, que é ter aqui economias de escala. Ou seja, se nós conseguirmos com pouco mais custos ter mais rendimentos, conseguimos absorver muitos dos prejuízos que todos os anos o lar regista. Assim seria também uma forma de responder a duas necessidades imperiosas, que é a resposta à comunidade com o aumento da sua capacidade e, por outro lado, ter a capacidade de amortizar muito dos seus custos, que são nesta altura muito difíceis de amortizar.
Têm acordos com a segurança social?
Sim, e temos uma relação muito interessante com a Segurança Social, também devido à importância que tem tido o Dr. Renato Bento, que tem sido para nós e, penso eu, para as Misericórdias e para as IPSS, uma pessoa extremamente importante neste processo de apoio social, porque ele e a própria equipa de trabalho tem respondido e tem tido a capacidade de responder, neste período difícil em que teve uma exigência muito grande. Há que louvar o trabalho da Segurança Social.
Em relação a este novo projeto de ampliação, foi apresentada alguma candidatura?
Sim, apresentámos uma candidatura e estamos nesta altura à espera da sua resposta. Pediram mais algumas informações que nós estamos a tentar dar e seria para nós extremamente importante podermos ter esta resposta positiva por parte do PRR. Seriam mais cinco quartos, retirando da parte administrativa, e depois uma construção por trás do edifício, com mais cinco quartos.
Neste edifício que valências funcionam?
Temos a valência de lar (50 camas, e de centro de dia são 16 utentes). Quanto ao apoio domiciliário, estamos a dar nesta altura apoio a 30 pessoas. Depois temos a creche, que tem, através de protocolo, 42 crianças. Nós pedimos um aumento para mais uma sala, porque também já estamos com cerca de 12 crianças em lista de espera. Aguardamos a resposta para breve.
O edifício da creche já está em obras?
Sim, é um edifício dos anos 90, a necessitar de intervenção, com a intenção também de melhoramento energético, uma área extremamente importante.
E quanto à Unidade de Cuidados Continuados?
A Unidade de Cuidados Continuados funciona perto do quartel dos Bombeiros, tem 25 camas em unidade de média duração e 22 camas de longa duração. Também fazemos um trabalho muito importante de apoio ao Serviço Nacional de Saúde.
Sabemos que também coordenam os apoios do Rendimento Social de Inserção…
Nesta altura estamos a gerir a Chamusca e Entroncamento. São valências que vão passar para o domínio das câmaras municipais. No caso da Golegã, onde também dávamos apoio, o município já assumiu esse serviço. Estávamos no total com cerca de 250 apoios, agora ficámos com 220 a 225 apoios. E depois temos o PIP – Projeto de Intervenção Precoce, em que apoiamos e fazemos o acompanhamento de crianças em situação vulnerável.
“Não há poupanças económicas quando se fala em vidas humanas”
Para todas estas valências, é necessária uma grande estrutura em termos de recursos humanos. Quantas pessoas trabalham na Misericórdia?
Em termos de postos de trabalho, estamos a falar em cerca de 130 pessoas. Somos um dos maiores empregadores do concelho. É uma atividade estruturante que tem a sua importância na sociedade, não só pelas respostas que dá, mas também pela importância económica que representa, não só em postos de trabalho como em consumo.

Em termos financeiros, como está a instituição nesta altura?
Atravessamos algumas dificuldades que se devem muito também pela necessidade que houve neste últimos dois anos de dar uma resposta no contexto da pandemia. Não pode haver poupanças económicas quando se fala em vidas humanas. Nós quisemos dar tudo o que havia de possível para a defesa dos nossos utentes e daí os custos terem disparado fortemente. Eu posso dizer que aquela rubrica de proteção individual e de investimento à Covid teve uma importância na nossa instituição de cerca de 200 mil euros.
É uma verba que não se consegue recuperar com a forma de financiamento que está a ser estruturada também com o Estado, através dos acordos de cooperação que foram assinados no final do ano passado. Pode ser que haja uma abertura para que se possa fazer o investimento a estas entidades de forma diferente, e que é fundamental. Nós já percebemos a importância que estas instituições têm na sociedade e é importante que não deixem de poder prestar este serviço à comunidade. Dessa forma é importante que se olhe para a forma de financiamento. Nesta altura, o Estado financia cerca de 1/3 do custo em lar, por exemplo. Achamos que é muito curto. Depois também depende de outra perspetiva, que é onde estas entidades estão a funcionar. Nós estamos na Chamusca, um concelho extremamente pobre, e portanto não há forma de os utentes nem as famílias poderem responder perante os dois terços que faltam para assumir o custo, que nós temos de suportar.
Qual seria a solução?
O ideal seria chegarmos pelo menos aos 50 por cento do custo em ERPI, conforme prevê o acordo de cooperação.
“As unidades de cuidados continuados estão a atravessar a pior fase da sua existência“
ERPI, ou Estrutura Residencial para Idosos, é a nova designação para os lares?
Sim, os lares eram vistos como os locais onde as pessoas iam terminar a sua vida, e não deve ser assim. Aqui de facto é apenas o início de outro ciclo em que as pessoas têm de viver de uma forma que pode ser diferente mas até pode ser melhor. Aqui temos de ter esse princípio, de dar todas as condições para as pessoas terem uma vida digna. O crescimento do lar vai também ao encontro destes objetivos de melhoria das condições.
Pelo que sabemos há problemas nas unidades de cuidados continuados…
Temos aí um problema gravíssimo para resolver. As unidades de cuidados continuados estão a atravessar a pior fase da sua existência por não haver financiamento para as suas atividades. Nós aqui podemos ter uma noção de que, até ao ano passado, tivemos nos últimos 10 anos um aumento de 3,6% no financiamento. Se tivermos a noção de que o ordenado mínimo nacional subiu acima dos 45%, se considerarmos o aumento da energia, da alimentação e da medicação nestes últimos 10 anos, percebemos que financeiramente não pode funcionar. É muito deficitário. Há nesta altura algumas entidades que têm em perigo a sua sustentabilidade por causa das unidades de cuidados continuados. Além dos outros casos que são gritantes, aqui sim, é premente que se olhe a curtíssimo prazo para as unidades de cuidados continuados e, sobretudo, haver uma definição clara do que é que o Estado pretende fazer às Unidades de Cuidados Continuados – se é mantê-las geridas por entidades privadas ou se as quer manter ao nível da cobertura da gestão pública. Acho que essa definição tem de ser feita o mais rápido possível com o senão de começarem a fechar, porque já há um estudo em curso para o encerramento destas unidades. Há aqui a necessidade imperiosa de fazer um “ato de contrição” e percebermos claramente o que é que queremos no futuro para estas entidades e para este serviço.
No caso, da Santa Casa a que preside, são dezenas de pessoas que estão em causa…
São cerca de 50 pessoas e também são cerca de 50 profissionais. Aqui há uma necessidade, nós vamos pensando inclusivamente em alternativas às unidades de cuidados continuados para, numa primeira fase pelo menos termos a certeza de que podemos manter os postos de trabalho. É preciso ser criativo para poder responder a outras alternativas enquanto não houver uma resposta muito clara sobre a forma de financiamento.
Qual é o orçamento anual da Santa Casa da Misericórdia da Chamusca?
Acima dos 2 milhões, 2 milhões e meio de euros.
E têm, portanto, valências que são deficitárias?
Sim, o caso da creche, por exemplo, começou agora a ficar equilibrada com a introdução do novo modelo. O lar dá bastante prejuízo e as unidades de cuidados continuados ainda dão mais prejuízo. E portanto há que gerir, por vezes temos de “inventar” receitas extraordinárias, que, sendo extraordinárias, não podemos contar com elas para a manutenção e a sustentabilidade da Misericórdia.
Em termos de património, no vosso caso é vasto. Não é uma mais valia para financiar as atividades?
Temos os blocos habitacionais, que precisam de intervenções. Temos de colocar sempre muito rendimento para a manutenção dos edifícios. A praça de touros também exige investimento anual, para manter o edifício, mas nestes últimos anos temos tido rendimento que suporta esses investimentos necessários. Temos o Cineteatro e o antigo lar, o edifício S. Francisco, que está, através de um contrato de comodato de 10 anos, entregue à Câmara Municipal. Temos o Casal do Crespo, uma propriedade que tem dado algum rendimento florestal. Temos mais três igrejas, a da Misericórdia, a de S. Pedro e da Srª do Pranto, três edifícios que requerem intervenções, porque é um património muito importante, inclusivamente na história sacra, e tem de ser preservado. Nesta altura estamos a tentar a classificação dos edifícios e das peças que temos para depois nos podermos candidatar a fundos para essa recuperação.
É uma instituição que apresenta desafios na sua gestão?
O maior desafio nesta altura é a sustentabilidade da instituição devido a todas estas necessidades e sobretudo a tentar amortizar os custos acrescidos que representaram estes dois últimos anos. Temos tido um apoio importantíssimo da Câmara Municipal, sobretudo agora nas obras da creche, em que a Câmara comparticipa com dois terços e o restante é financiado pelo programa Portugal 20.20. Portanto, uma palavra de agradecimento à relação importante que temos tido com a Câmara. Tem dado todo o apoio nas nossas atividades.
Há a ideia de que as Misericórdias têm muito dinheiro, mas a gestão diária é um desafio, certo?
Sim, há a ideia de que gerimos o jogo, e não há nada mais errado do que isso. A Misericórdia de Lisboa gere os jogos, mas nada tem a ver com as outras. Que fique bem claro que não é verdade aquilo que se diz que temos muito dinheiro. Aliás, temos todo este percurso deficitário em relação aos projetos que financiamos. Podemos dizer que atravessamos uma fase extremamente difícil da história das Misericórdias.
“Que fique bem claro que não é verdade aquilo que se diz que temos muito dinheiro“
A instituição, aos longo destes 400 anos, granjeou um peso significativo na economia e na sociedade da Chamusca…
Sim. Em momentos muito dramáticos da vida do país, desde a travessia das dificuldades financeiras no séc. XVII, houve períodos maus, como as invasões francesas, houve muitas pestes, a II Guerra Mundial, a pandemia no princípio do século passado, atravessámos aqui várias crises, inclusivamente financeiras, com acordos com a Inglaterra. Ao longo da história, demos apoio hospitalar aos necessitados, acolhemos crianças abandonadas e demos apoio a pessoas em dificuldade financeira extrema. Tem sido estruturante e muito marcante a nossa atividade em todos estes momentos. É um serviço que tem de ser adaptado às circunstâncias. Estas entidades têm conseguido adaptar-se às dificuldades ao longo destes tempos e portanto têm aqui um cariz de sobrevivência muito importante, e isto só prova a importância que tem na sociedade.
Falámos do passado e do presente, como é que perspetiva o futuro desta instituição?
A instituição tem necessidade de dar uma resposta positiva [à comunidade], como tem dado ao longo destes 400 anos. Vamo-nos preparando para as novas realidades e acho que, além da necessidade de se olhar muito seriamente para a forma de financiamento, a pouco e pouco o Estado terá de olhar para esta realidade e responder de forma positiva à importância e da mesma forma que ela é importante para a sociedade. Entendo que haja a curto prazo essa compreensão e a devida resposta financeira. A partir desse momento nós estamos preparados. Entendemos também que existe uma necessidade de interligação e isto tem acontecido com as várias entidades que existem no terreno. É nessa continuidade de serviços que é importante essa relação com quem trabalha no terreno. Sobretudo há que preparar e antever, não fazer intervenções paliativas mas antecipar, evitar bolhas de exclusão social e tratar de fazer intervenções precoces e não só já paliativas. É fundamental perceber as necessidades da sociedade, preparar as equipas de trabalho para essas necessidades e poder responder no mais curto espaço de tempo às novas realidades. A nível social é muito importante, sobretudo incluir a terceira idade e reconhecer a importância que podem ter na sociedade.
“O idoso é uma fonte de cultura muito importante e a sociedade não lhe está a dar a devida importância”
Quer dar exemplos?
Falo por exemplo no turismo. É das atividades importantes para a terceira idade. Colocá-los a proteger o bem que temos e que apresentamos aos turistas. É uma das possibilidades em que podemos evoluir, incluindo os idosos neste tipo de intervenções. Há outras áreas que podemos desenvolver, por exemplo, no relacionamento entre os idosos e as crianças, fazendo uma interligação entre uma cultura que já existe e uma cultura que está em crescimento. Esta interligação, até com grau científico, leva-nos a perceber como é que estas coisas podem ser feitas para o bem de todos. O idoso é uma fonte de cultura muito importante e a sociedade não lhe está a dar a devida importância. Há que poder assimilar toda essa cultura acumulada.
