Handala - o Cartoon Palestiniano que está sempre de frente para a realidade.. e nunca lhe vira a costas.

Sempre foi muito difícil para mim saber o que queria ser quando fosse grande. Quando era criança lembro-me que a profissão que queria ter era de Veterinário, porque gostava muito de animais. Gostava de muita coisa, queria fazer muita coisa e então sempre foi um desastre toda a minha orientação profissional.

Fui com a minha mãe a uma psicóloga no final do 9º ano para fazer testes de aptidão profissional e todas a perguntas tendiam para que a minha resposta se direcionasse para ser qualquer coisa como assistente social e, por isso, como já imaginava os resultados, manipulei e direcionei as respostas para outros resultados que não os óbvios. Fui talvez umas 10 sessões e lembro-me que na última a psicóloga estava um pouco confusa porque a profissão final que ela aconselhava era que eu fosse cantor.

Fiz aquela cara de alguém verdadeiramente surpreendido e saí dali com a certeza que: 1º), não queria ser assistente social e 2º), não fazia a mínima ideia do que queria ser e que curso escolher. (Uns anos mais tarde partilhei esta estória com a minha amiga e grande Pedo-Psiquiatra Margaria Crujo e ela disse-me que eu era do tipo que nunca podia ir ao psicólogo porque seria sempre eu manipular a conversa e acabava eu por analisar o psicólogo).

Para o 10º ano decidi então escolher Humanidades e um curso de Jornalismo no Liceu em Abrantes. Não durou muito o encanto, tive discussões incríveis com o professor de Jornalismo e Média, e tudo começou num teste em que ele perguntava se o jornalista podia ser isento.

Claro que respondi que não, impossível haver total isenção, impossível despir todas as peles de conhecimento, de cultura, religião, valores, etc, etc. Podia ser o máximo possível mas que o 100% não existia. Chumbei naturalmente e decidi escrever uma carta à Direção da Escola. O assunto foi branqueado e acabei por sair do curso desencantado com a vida mas sobretudo desencantado com aqueles jornalistas/professores que não aceitavam quão falíveis podiam ser os humanos.

Decidi mudar de curso no final do ano e regressei a Tramagal para o curso de Desporto, mas isso não interessa, interessa sim o facto de ter tido um professor que me marcou imenso e que apesar de termos discussões imensas, algumas delas bem fortes, acabou por me mostrar outra face da vida e da “religião”.

Este professor de Filosofia, o Professor Pedro Núncio, era um homem de Direita, Católico e um acérrimo Conservador, enquanto eu era apenas um jovem de esquerda, meio naïve mas com convições já bem fortes. Desde pequeno, sempre me deu prazer ver a coisas de mais de um ângulo, de mais de uma perspetiva, e o mesmo acontece até hoje.

Num dos exames, surpreendentemente tive um 16 (com ele ficávamos sempre entre o 8 e o 12) e o professor escreveu na sua carregada letra itálica por baixo da nota: “Perspectivas interessantes ainda que Sufistas”.

Ninguém da minha classe entendia o que o professor tinha escrito e a teoria mais aceite e generalizada era que ele tinha escrito: “Surfistas”. Perguntaram-me se tinha escrito coisas muito ‘à surfista’. Decidi ir confrontar o professor com aquilo que ele tinha escrito. Era Sufista mesmo.

Perguntei o que isso queria dizer e ele respondeu-me: exacto é isso mesmo, é essa atitude mesmo que deves usar para saberes mais sobre aquilo que pareces ser. Se fosse nos dias correntes, teria automaticamente puxado pelo telefone e procurado no Google o que era o Sufismo e quem eram os Sufistas. Fui de imediato à biblioteca da escola e não havia nada, mas nada. Até que depois de duas semanas de intensa procura, lá encontrei o Sufismo na minha casa, numa antiga enciclopédia Luso-Brasileira. Sufista é “Estar no mundo, mas não ser dele, livre da ambição, da cobiça, do orgulho intelectual, da cega obediência ao costume ou do respeitoso amor às pessoas de posição mais elevada”.

Na altura, e naquela biblioteca, não encontrei algo tão poético mas sem dúvida que me marcou imenso ter um movimento religioso tão semelhante ao meu ponto de vista sobre universo e sobre a vida. Conheci Rumi, o mestre mais místico do Sufismo, e entendi toda a extensão da filosofia do ser, do entender e do compreender além do que nos é apresentado.

Vivendo tendencialmente do lado B do mundo, entendi que muito do que vemos nos telejornais, nos programas de história ou ouvimos sair da boca de tantos comentadores é uma visão extremamente reduzida da extensão da diversidade da Humanidade. As mortes que vemos na televisão não são iguais em todo o lado. Há uma tendência para personificar a dor e o desastre.

Quantas vezes não se vê nas notícias depois de um grande acidente: “Não há portugueses entre as vítimas” e um coro de espectadores suspira de alívio. Ou, por exemplo, quando se viu agora nos recentes atentados terroristas em Paris: “Alegado português internado é, afinal, venezuelano de ascendência portuguesa”. Uffff, afinal é só descendente.

Depois passamos a um segundo nível e falamos do clash de civilizações, em que criteriosamente se fala do Ocidente, do Mundo Ocidental, do Oriente, do Médio Oriente, do Extremo Oriente, etc, etc, tudo com conotações que só entendi que eram profundamente eurocêntricas quando, numa paragem de autocarros nas Honduras, fiquei especado em frente de um mapa que me assustou imenso (ver mapa). Mas como é possível? Onde fica agora o Oriente? O que é o Médio Oriente? E nós? Passámos a ser o quê? Assustou-me, porque em 30 anos da minha vida nunca tinha visto o mapa do mundo na perspetiva dos outros.

E aceito que não é fácil, mas em muitas das vezes estou nos locais onde morrem as pessoas que não contam para meter bandeiras no Facebook, ou estou nas zonas do mundo onde se morre às dezenas ou centenas e ninguém dá as notícias, lá no tal Ocidente, que era de onde eu vinha. E então a perspetiva passa a ser outra. Sabendo que se morrerem 1400 pessoas em Gaza e 30 e tal em Israel o peso é quase o mesmo, porque o que se ouve em muitos meios é que, acima de tudo, temos de proteger a vida dos cidadãos de Israel, e eu pergunto: Porquê? E os que estão do outro lado? Porque a dor deles é menor? Ou menos importante? Porque o choro ou o sorriso de uma criança Síria vale menos que outra de um país do tal Ocidente?

Viver no lado B, ter uma visão sufista do mundo e da nossa essência só contribui para que a minha missão seja de saltar com os braços no ar e gritar para o meu Ocidente que os que aqui estão também contam, que os que aqui estão (aqueles que têm dado tanto petróleo, tanto gás natural, tanta roupa, brinquedos, café, chocolate, diamantes, etc, etc, ao tal Ocidente) também são gente e que em muitos casos morrem para que aí nesse Ocidente tenhamos o tal conforto de ter tudo com um estalar de dedos.

Deste lado, só queremos viver com a esperança de podermos simplesmente continuar a viver e ter a mesma esperança de dias melhores. No lado B só queremos a mesma dignidade.

PS: Deixo um abraço aos meus dois professores que “nos hojes” já não estão entre nós, mas as lutas e as aprendizagens foram boas e duras. Hoje estou aqui para provar que o quanto que se aborreceram comigo acabou por valer a pena.

PS2: e termino com um poema do Rumi e do Sufismo que tanto nos embala o barca da vida.

“ESTAS PRECES E GUERRAS SANTAS E JEJUNS”

Acidentes servem apenas para manifestar a secreta essência;

a qualidade essencial aquiesce, e acidentes passam.

Esta marca de ouro perdura não a pedra de toque,

mas somente o próprio ouro, genuíno e indubitável.

Estas preces e guerras santas e jejuns

não irão perdurar, somente as almas nobres perduram.

 

A união… eis aí os jardins do Paraíso

A separação… aí estão os tormentos do inferno.

O amor é eterno, o universo é as suas vestes

Despe o que tens vestido – essa é a chave do enigma.

 

Se puderes condenar o teu “eu” por um momento

A ciência de toda a expansão ser-te-á revelada.

Esta imagem invisível que o mundo inteiro busca

Admirar-se-á a si mesma no espelho do teu espírito.

 

Aquele que é ao mesmo tempo o Ser e o Nada

é também fonte de alegria e afeto

Teus olhos são indignos de O ver

quando da cabeça aos pés tu és Ele.

(Rumi)

Nasceu em Tramagal, Abrantes. É um colecionador de estórias de vidas e filantropo. Viveu e trabalhou em 4 continentes tendo estado envolvido em projectos em mais de 25 países. Hoje chefia uma missão médica humanitária na Serra Leoa. É um incansável lutador pela dignidade, sustentabilidade e liberdade. Escreve mensalmente no mediotejo.net

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