José Miguel Figueiredo enveredou pelo ramo da olaria, seguindo as pisadas do pai e do avô. Foto: José Paulo Marques

De boina na cabeça, como já o pai a usava, José Miguel recorda o passado e conta que começou na arte da olaria aos onze anos e meio por “vontade própria”. Os pais ambicionavam uma outra vida, mas o jovem determinado tinha outros planos. “Sempre fui ligado a isto e gosto disto. Acho que também é importante quando nós fazemos aquilo que realmente gostamos, que é o que eu tento fazer. É o ideal para nos sentirmos bem”, afirma.

Contrariando a vontade dos pais, José Miguel fez imperar a sua e cedo se dedicou ao negócio que atravessou gerações na família Figueiredo, mas não faltou tempo para brincar: “havia tempo para tudo um pouco”. Aos 12 anos deixou a escola e dedicou-se ao ofício que mantém até aos dias de hoje. “Isto surgiu porque já o meu bisavô fazia talhas. Na minha família é desde 1837, é o registo mais antigo que nós temos. Foi passado sempre de pais para filhos até hoje e surgiu naturalmente, porque eu nasci dentro de uma olaria, por assim dizer”, contou o empresário ao nosso jornal.

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Na olaria do pai, que José frequentava desde que se recorda, descobriu o gosto por uma peça específica – a talha. Trata-se de um pote de barro, que pode ter as mais diversas dimensões e finalidades, frequentemente associado ao fabrico de azeite e de vinho. “Fui sempre ligado àquilo, mas fui logo para a parte das talhas que era o que realmente gostava. Comecei lá com ele [o pai] com onze anos e depois fui andando sempre. A primeira talha que fiz sozinho tinha cerca de 13 anos”, recordou.

O processo de produção é frequentemente associado à roda de oleiro, mas José Miguel explica que a história do seu trabalho está ligada aos potes “feitos a rolo”. “A roda de oleiro apenas faz o fundo dos potes”, ressalva. Mas qual a diferença entre um oleiro “rodista” e o que se designa por “talheiro”? O empresário refere que no ramo da olaria existem dois tipos de profissionais: “os oleiros rodistas que são aqueles que fazem as peças à roda e nós, as pessoas que fazem estes potes grandes, foram sempre considerados ‘talheiros’. São as pessoas que fazem talhas”.

Na olaria que labora na freguesia de Asseiceira, uma das mais populosas do concelho, cada peça é única e produzida de forma artesanal. Não há dois potes nem duas taças exatamente iguais, cada peça apresenta as diferenças que o processo manual lhes confere.

No ar, sente-se o aroma a barro acabado de extrair e o pó, característico da atividade, deixam antever o cenário que vamos encontrar. Peças por terminar e outras já em processo de secagem, por toda a olaria vamos encontrando as mais diversificadas peças, mas todas com uma característica comum – todas são fabricadas em barro, num processo que José Miguel faz questão de manter artesanal. “Aprendi esta técnica com o meu pai e neste momento há muito pouca gente a fazer desta forma, se calhar três ou quatro pessoas em Portugal”, assegura.

“Aprendi esta técnica com o meu pai e neste momento há muito pouca gente a fazer desta forma, se calhar três ou quatro pessoas em Portugal”

José Miguel Figueiredo

Na empresa de José o negócio são as talhas, mas não são as únicas peças produzidas. “Nós dedicamo-nos às talhas, embora talhas com vários formatos e feitios. Também fazemos os vasos, as taças, as ânforas, mas tudo dentro da mesma técnica do rolo. Como é um trabalho manual, com a mesma técnica conseguimos fazer um número infindável de peças”.

No piso superior, deu-nos a conhecer o barro acabado de extrair e que serve para produzir as peças. Da freguesia de Asseiceira, o barro é extraído e transportado até à olaria, onde se dá o início do processo de mistura dos dois tipos de barro. “Temos dois lotes de barro diferente, porque nós gostamos de trabalhar com um barro mais gordo e outro mais fraco, isso é uma coisa que à mão conseguimos ver”, explicou o oleiro.

Depois de misturado com a pá e adicionada a água, o barro é colocado numa das poucas máquinas visíveis no espaço que, trabalhando em sequência, enviam o barro para a “fieira extrusora”, um dos mais importantes e escassos auxiliares de todo o processo.

As “fieiras”, assim designadas, são as primeiras máquinas que as cerâmicas tiveram. Na olaria de José Miguel, a fieira trata-se já de uma ferramenta histórica, datada dos anos 50, que prepara o barro para posteriormente ser trabalhado. “Esta máquina veio revolucionar a cerâmica”, afirmou José. No passado, o processo era “muito rudimentar”. Na Asseiceira, o oleiro recorda-se que “toda a gente usava uma ‘atafona’, que não era mais do que um género de um depósito de 200 litros, com um ferro ao meio e depois andava ali um animal à volta que ia passando o barro”.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, mas também as necessidades. A procura aumentou e com ela a necessidade de “apetrechar” as olarias com os mais recentes equipamentos. Importantes para suavizar todo o processo de produção que o oleiro afirma ser “muito trabalhoso”, as máquinas da olaria de José Miguel foram uma importante tecnologia para aumentar a capacidade de produção. “Esta máquina tem cerca de 70 anos de trabalho e ainda hoje trabalha no dia a dia. Já foi reparada muita vez, já estava na idade de ir para a reforma, mas ainda vai trabalhando por enquanto”, brincou.

Quem passa pelo exterior do edifício está longe de imaginar a dimensão das instalações. Uns metros mais à frente, o oleiro dá-nos a conhecer a forma de “produção em rolo”, utilizada há diversos anos e que não difere muito do que se fazia antigamente. A roda do oleiro é usada para fazer a base dos potes, mas tudo o resto é a rolo, motivo pelo qual cada peça se mantém única.

O fabrico das talhas, além de manual, é um processo demorado. Realizado em diversas camadas, o pote de 1,30 metros chega a demorar cerca de um mês até estar finalizado. “Quando fazemos a boca do pote já está o fundo quase seco. Temos de ir esperando que o barro vá secando, para ter resistência e ir suportando o resto. Porque se não fosse assim, as peças iam-se desmontando por não terem consistência”, explica.

Mas não é qualquer tipo de barro que permite este processo. “Tem de ser um barro próprio com características próprias (…), não é todo o tipo de barro que aguenta estas diferenças. E nós aqui temos muito barro felizmente, temos é pouca gente para o trabalhar”, aponta José.

“Nós aqui temos muito barro felizmente, temos é pouca gente para o trabalhar”.

José Miguel Figueiredo

Os fornos a lenha deixaram de ser pequenos fornos domésticos e adquiriram maiores dimensões. O empresário conta que na “Talhas, Herança e Tradição – Olaria, Lda” o cenário não é diferente. Embora tenha sido pensada a ideia de um forno a gás, os custos revelaram-se “incomportáveis” e, por isso, o processo de cozedura das peças é feito num grande forno a lenha.

Moldadas as peças e após secarem numa estufa ou ar livre, a última etapa do processo de produção das peças em barro acontece no forno que atinge temperaturas de 900 graus no seu interior. O projeto para o equipamento foi pensado pelo empresário da Asseiceira. “Era um forno de gás que foi transformado para lenha. Foi um projeto meu para ir conseguindo fazer os potes. Se funcionasse com gás, neste momento, era incomportável”.

Tudo começa numa “pequena fogueira”, explicou José Miguel ao mediotejo.net. “Tem o princípio dos antigos fornos romanos. Tem uma caldeira em baixo, onde o lume é feito. Depois sobe e coze as peças dentro”. O espaço no interior do equipamento é preenchido ao máximo para permitir uma maior rentabilização do custo. Durante cerca de 15 horas diretas é colocada lenha, num total que perfaz uma tonelada e meia.

Nem sempre o negócio foi comportável. Entre 2006 e 2012, José Miguel dedicou-se à jardinagem por “não haver trabalho nesta área”. A procura era reduzida e os custos de produção não justificavam a atividade, pelo que o oleiro “não conseguia suportar estas despesas todas”. Anos mais tarde e com o “bichinho” da olaria sempre presente, o empresário transformou o forno a lenha “para conseguir manter isto até hoje”.

Questionado sobre a valorização da atividade em Portugal, José Miguel Figueiredo não esconde a tristeza. Afirmando tratar-se de uma arte desvalorizada, o empresário aponta a falta de apoios, nomeadamente de incentivos à contratação de mão de obra. “Deviam haver apoios diferentes, se calhar através do Centro de Emprego ou outras entidades que fomentassem isto, porque eu coloco aqui uma pessoa e durante um ano, não dá rentabilidade. Ao final de um ano é que essa pessoa consegue fazer qualquer coisa”, referiu.

Além disso, o setor atravessa uma falta de mão de obra, sendo uma prioridade “encontrar pessoas que realmente gostem disto”. A mudança das mentalidades tem sido um aspeto fulcral para a procura de emprego na área da olaria, conta José. “As pessoas começam a ver que não podemos ser todos doutores e que estamos todos no mesmo nível, quer seja um doutor, um oleiro ou um pedreiro. Cada um com a sua função e todos fazem falta na sociedade”.

“Não podemos ser todos doutores (…), estamos todos no mesmo nível, quer seja um doutor, um oleiro ou um pedreiro. Cada um com a sua função e todos fazem falta na sociedade”.

José Miguel Figueiredo

Trata-se de uma “questão de mentalidade”, acrescenta. Olhando para trás e 40 anos volvidos desde que ingressou na área, o empresário recorda as palavras da mãe: “não te metas nisso (…), já viste que é um trabalho duro”. A explicação, para José, talvez seja o facto de “as pessoas quererem uma vida mais fácil”.

No futuro, avizinham-se algumas dificuldades. A profissão parece ter os dias contados. José Miguel afirma haver um trabalho de preservação da memória, mas “só isso não chega”. “Perde-se muito o saber fazer. Nós agora fizemos um livro sobre a técnica disto tudo (…) e isso foi bom porque é um testemunho que fica, mas só isso não chega. Tem de haver um saber fazer, porque a teoria é uma coisa e meter a mão na massa ou a prática é outra totalmente diferente”, lamenta.

Para os jovens e futuros oleiros, o empresário da Asseiceira deixa uma mensagem: “Em primeiro lugar, é preciso gostar e isso é nesta área ou em qualquer outra. E desde que a pessoa goste, tenha interesse e motivação, a coisa flui normalmente. Claro que o essencial para isto é logo o barro e nós aqui temos um barro de excelente qualidade, porque não é qualquer tipo de barro que dá para fazer peças destas”.

Além do trabalho desenvolvido na olaria, José Miguel é também proprietário de uma loja onde comercializa “tudo o que é o artesanato português ligado ao barro”. Quem passar junto à Estrada Nacional 110, na Asseiceira, encontra a “Talhas, Herança e Tradição, Lda.”, onde pode ficar a conhecer alguns dos produtos produzidos pelo oleiro. Além disso, são também comercializadas plantas, flores, sementes e fertilizantes.

Dividindo-se “entre uma coisa e outra”, o empresário fala em dias que são “praticamente iguais”, mas sublinha que “quando gostamos daquilo que se faz nem damos pelo tempo passar”. Hoje, José Miguel Figueiredo não esconde a felicidade pela profissão a que se dedicou de alma e coração. “Se eu não gostasse disto, não estava cá, tinha seguido uma outra área. Espero continuar até que possa”, afirma sorridente.

Asseiceira: uma terra de barro e de tradições

Fértil em barro, a freguesia rural tem uma história ligada à olaria. Considerada uma das mais antigas indústrias, a oficina de oleiro atingiu o seu auge no período neolítico, quando as civilizações passaram a recorrer ao barro como principal matéria prima para confecionar objetos e, assim, revolucionaram a forma de armazenamento dos produtos.

Conhecida como a terra do barro, José Miguel recorda que, na freguesia de Asseiceira existiu um grande número de cerâmicas que se dedicavam à produção do tijolo. “Falamos de uma indústria que já tem pelo menos três séculos de existência nesta freguesia”, aponta.

“Na Asseiceira existiram muitas olarias ao longo dos últimos dois séculos. O registo que nós temos é desde 1830 e tal para cá (…), para trás possivelmente já havia oleiros”, começou por explicar José Miguel. “Isto é uma terra de barro, onde houve sempre olarias e cerâmicas. Centenas de pessoas dedicaram-se a isso. (…) Eu sei que há cerca de 40 anos ainda havia aí uns 4, 5 ou 6 sítios a fazer talhas e hoje não há ninguém, somos nós”, lamenta.

“Há cerca de 40 anos ainda havia aí uns 4, 5 ou 6 sítios a fazer talhas e hoje não há ninguém, somos nós”.

José Miguel Figueiredo

Apesar de estar em extinção em quase todo o território, na Asseiceira, o fenómeno intensifica-se. Onde antes chegaram a ser mais de trinta talheiros, hoje restam um ou dois, entre os quais José Miguel Figueiredo. A procura diversificou-se e levou à necessidade de aumentar a oferta. Onde se vendiam talhas, passaram a vender-se cântaros, alguidares, panelas, púcaros para a extração de resina, entre outros, para permitir a continuidade da tradição.

A tradição de “pesgagem” da talha

A técnica de produção de vinho em grandes vasilhas de barro remonta ao período romano. De geração em geração, o processo foi passando e ainda hoje é utilizado nas mais diversas regiões portuguesas, na qual se destaca o Alentejo.

No processo ancestral de produção de vinho, a talha adquire uma dupla função: a de produzir e a de armazenar o vinho. As uvas são colocadas dentro das talhas e a fermentação ocorre de uma forma espontânea, sendo posteriormente armazenado no mesmo recipiente de barro onde foi produzido – a talha.

Mas para permitir este modo de produção ancestral de vinho, a talha atravessa um processo de “impermeabilização”, de que José Miguel Figueiredo é ainda um dos últimos exemplos a observar. “O pesgar da talha é um processo que se faz há cerca de 2000 anos. Começou a ser feito pelos romanos e não é mais do que impermeabilizar o pote para ele poder receber vinho, ou seja, para fazer a fermentação do vinho”.

Tratando-se de um barro bruto, que não é filtrado, não é adequado para a produção vinícola por “perder muito líquido”. A estrutura porosa da talha impõe a necessidade de impermeabilizar o seu interior, a que se dá o nome de “pesgagem” da talha. A técnica ancestral e que ainda hoje resiste, passa por untar o interior do pote de barro com uma mistura composta por resina de pinheiro, cera de abelha e azeite.

A mistura, também conhecida como “pez”, é fervida num tacho e adquire uma consistência semelhante a uma calda. Para a sua aplicação, o interior da talha é “fortemente aquecido”, a que se segue a aplicação do pez. “Depois rola-se o pote, despeja-se o resto e o pote fica uma espécie de vidrado”, acrescenta.

A aposta pelo tradicional é cada vez maior e no ramo vinícola a tendência não é exceção. “As pessoas agora voltam a isto cada vez mais, cada vez há mais gente que procura os potes para a fermentação de vinho, porque o interesse não é guardar o vinho, é mesmo fermentar aqui o vinho”, afirma.

“Cada vez há mais gente que procura os potes para a fermentação de vinho (…). O interesse não é guardar o vinho, é mesmo fermentar aqui o vinho”.

José Miguel Figueiredo

O orgulho no olhar do oleiro que fez da sua profissão vida é notório. “Manter viva a tradição”, é esse o desejo do empresário que, tão cedo, não faz menção de abandonar a história “da minha família e da terra onde nasci”, concluiu José Miguel Figueiredo.


Jéssica Filipe

Atualmente a frequentar o Mestrado em Jornalismo na Universidade da Beira Interior. Apaixonada pelas letras e pela escrita, cedo descobri no Jornalismo a minha grande paixão.

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