Desde agosto de 2022, José Eduardo Correia, médico cardiologista e internista aposentado, escolheu a aldeia de Mouriscas, concelho de Abrantes, para viver. Cumprindo com a vontade de ter uma casinha de campo, um cão e quintal para uma horta, numa zona do Interior do país, o médico natural de Elvas chegou a esta localidade do concelho de Abrantes por via de amigos, que são parte da sua vizinhança.
Também necessitado de medicação regular, foi numa das deslocações à farmácia local que se apercebeu da dificuldade que a população está a passar para aceder a cuidados primários de saúde, à prescrição de receitas médicas para aquisição de medicamentos e a dificuldade de acesso a exames complementares de diagnóstico.
Mouriscas é uma das freguesias de Abrantes que se debate com a falta de médico de família há largos meses na sua extensão de saúde, situação que se tem arrastado, a par de outros casos no concelho, como o da freguesia de Rio de Moinhos – esta sem médico de família desde 2021. A solução da falta de médicos nos centros de saúde e especialmente nas extensões de saúde das freguesias rurais tem passado por contratar prestadores de serviços que fazem algumas horas de atendimento semanais aqui e acolá, havendo essa possibilidade, e com marcação de consultas com um, dois ou três meses de antecedência para garantir vaga.
Noutros casos, os utentes são encaminhados para as Unidades de Saúde Familiar de Abrantes ou do Rossio ao Sul do Tejo, consoante a freguesia a que pertencem e se conseguiram ou não migrar os seus ficheiros para estas unidades de saúde, ou então são os clínicos destas que se deslocam a fazer atendimentos pontuais, à semana, nas extensões de saúde das freguesias, caso do que sucede com Bemposta.
Também existe a possibilidade de consulta de recurso, mas com fila de espera e sem garantia de atendimento ou vaga para consulta.
Confrontado com o panorama de Mouriscas, e não conhecendo responsáveis locais nem a totalidade do território onde reside nos últimos meses, o médico deixou mensagem na farmácia para que a junta de freguesia ou algum responsável da autarquia o contactasse pois estaria disponível para ajudar, gratuitamente, a comunidade mourisquense no acesso a cuidados e acompanhamento da situação de saúde.

José Eduardo Correia, cardiologista e internista, aposentado desde 2009/2010 da Função Pública, tem 74 anos. Foi diretor do Hospital do Espírito Santo, em Évora, durante três anos, além de ter sido diretor de serviço e chefe de serviço muitos anos. Chegou a ser presidente da secção regional da Ordem dos Médicos.
Passou por múltiplos hospitais, incluindo o Hospital de Santa Maria, em Lisboa, e foi por Lisboa que permaneceu até decidir vir viver para Mouriscas. Nos últimos anos trabalhou numa IPSS e chegou a ser médico nos Serviços Sociais da Câmara Municipal de Lisboa.
Filho de professores primários, é natural de Elvas e tem seis irmãos, alguns a residir fora do país. Fez o liceu em Santarém e depois o curso de Medicina em Lisboa, tendo terminado o mesmo no pós-revolução do 25 de Abril, em julho de 1974. Concluiu a especialidade de Cardiologia em 1982 e a especialidade de Medicina Interna em 1985 no Hospital de Santa Maria. Chegou a fazer Serviço Médico à Periferia, tendo passado por diversas zonas do país, incluindo Leiria – numa estratégia implementada que levou jovens médicos a prestarem serviço no Interior do país, num dos passos que estiveram na base da criação do SNS e que melhoraram significativamente o acesso à saúde e os índices da mesma.
O facto de ser divorciado e ter perdido os seus dois filhos, que não deixaram descendência, justifica o médico que explica o desapego que lhe permitiu sair da capital e aventurar-se a fixar residência noutro ponto do país que desconhecia.
Na rede social Facebook, o médico vai desabafando sobre diversos temas de âmbito nacional, um dos quais, o estado do Serviço Nacional de Saúde versus seguradoras e hospitais privados, a falta de médicos de família e não captação de médicos para o Interior, e o modelo de gestão e acesso aos cuidados primários e meios de diagnóstico nos centros de saúde.
Vai escrevendo “Cartas da aldeia” e ali deu conta de ter sabido da saída da anterior médica de família que estaria a atender uma vez por semana, mas que desde o último trimestre de 2022 deixou a extensão de saúde. Tal como manifestou a sua disponibilidade em dar consultas gratuitas e ajudar quem necessitasse e não tivesse forma de se deslocar.
Em março, nessa publicação, deu conta de estar “disponível para ir uma vez por semana, sem qualquer pagamento, resolver e orientar os problemas mais urgentes”, o que terá comunicado ao presidente de junta que “ficou entusiasmado” e que comunicou à vereadora da Câmara Municipal de Abrantes, que por sua vez comunicou ao ACES Médio Tejo, apesar de ter desde logo referido que seria “muito difícil”.

José Eduardo Correia diz notar uma “população muito envelhecida, muito carente, diferente na maneira de ser e estar do meu Alentejo, mas fundamentalmente acho que é o Interior mesmo esquecido, que as pessoas conhecem de livros”.
“Vou aviar os medicamentos regulares à farmácia, e a responsável apercebeu-se que eu era médico. E disse-me que Mouriscas não tinha médico há uns meses. E eu a assistir a esta população com carências, e sabendo da dificuldade de transportes para Abrantes – eu próprio estive uma semana sem carro e não foi fácil, cheguei a andar de táxi e é caro. A camioneta vai uma vez e volta à noite… como é que é, se uma pessoa estiver doente?”
Alertado pelas circunstâncias, reagiu. “E eu, posto isto, ofereci-me. Disse que não me importava de, uma tarde por semana e de graça, vir prestar auxílio à população. E ainda pensei que isto fosse coisa que se tratasse de um dia para o outro; eu só pretendia ajudar em termos de receitas, meios complementares de diagnóstico, encaminhar os doentes para especialistas de outras áreas… Percebi que é uma zona muito carenciada”, conta.
Apesar de ter notado o entusiasmo dos responsáveis políticos locais, o médico diz ter ficado em espera, aguardando uma resposta. Mas o tempo foi passando, e José Eduardo Correia deixou andar. Até que é chamado a uma reunião no lar da ACATIM, em Mouriscas, com o presidente da junta, a vereadora Raquel Olhicas, entre outras pessoas presentes. Na altura foi informado que não havia ainda comunicação por parte da ARS LVT sobre como poderia fazer consultas e em que termos.
A 9 de maio, em reunião de executivo da Câmara Municipal de Abrantes, o vereador Vasco Damas (eleito pelo ALTERNATIVAcom) questionou o presidente de Câmara, o socialista Manuel Jorge Valamatos, e a vereadora Raquel Olhicas, se teriam conhecimento de uma publicação no Facebook, escrita por José Eduardo Correia e que estaria a circular naquela rede social, e se lhes merecia algum comentário.
Os eleitos socialistas referiram desconhecer de que se tratava. Já em abril Vasco Damas havia questionado sobre uma proposta de um médico aposentado de Mouriscas, referindo-se a José Eduardo Correia, não tendo sido abordada a sua situação naquela altura.
José Eduardo Correia disse ter-se sentido “melindrado” com a postura dos responsáveis autárquicos em reunião pública, a ser transmitida em direto, referindo que independentemente de terem ou não visto a sua publicação no Facebook, “tinham conhecimento pessoalmente” da sua proposta para fazer atendimento pro bono.
“Se assumissem que sabiam da minha oferta, e se se mostrassem interessados e que iriam lutar por isso… ou então que justificassem que não poderia ser, e invocassem as razões que impedem aceitar a minha proposta. Mas disseram apenas que não sabiam da publicação”, manifestando descontentamento perante esse momento.
Sentindo-se no meio de guerras “político-partidárias”, recorreu às redes sociais a 11 de maio, referindo que retirava a sua oferta de trabalhar gratuitamente e atender a população da freguesia, tendo também demonstrado o seu descontentamento aos responsáveis políticos locais.
“Eu só queria dar algumas consultas e ajudar as pessoas”, disse, apontando a burocracia e falta de visão dos dirigentes e entidades responsáveis pela saúde a nível local e regional.

“A mim não me afetam, mas sim aos doentes. É uma desconsideração total pela população desta aldeia, que não tem médico. Não pensam nas pessoas, no sofrimento, não sabem o que custa estar doente. Por isso é que o Interior está tão mal… porque é muito mais bonito que Lisboa e está-se aqui muito bem. Agora, sem Educação, sem médico e sem transportes como deve ser… Vivia-se aqui muito melhor e daqui até ia para o emprego, a uma hora de Lisboa, se existissem condições para tal”, nota.
Entretanto, a Câmara Municipal de Abrantes, através da vereadora Raquel Olhicas, indicou que a solução para permitir que José Eduardo Correia possa dar consultas e fazer uma tarde de atendimento por semana, poderá ser por via do projeto Bata Branca, que resulta numa parceria com a ARS LVT.
Em cima da mesa estaria também a possibilidade de essa prestação de cuidados primários à população ser feita a partir da ACATIM, segundo José Eduardo Correia.
O médico diz continuar a aguardar informação da parte da autarquia, para saber quais as condições e proposta final, para avaliar a viabilidade da sua aceitação ou não.
Em declarações ao mediotejo.net, a vereadora Raquel Olhicas sublinha que a Câmara Municipal “não tem nas suas competências a contratação de médicos, dependendo sempre da ARS LVT”.
Em causa está o facto de José Eduardo Correia ter 74 anos, ser cardiologista e não ter a especialidade de Medicina Geral e Familiar.
“Não pode, ao abrigo da legislação, fazer prestação de serviço através de uma empresa, porque pela idade já não pode integrar o quadro clínico de pessoal do ACES do Médio Tejo. Neste caso, as empresas é que contratam estes clínicos já aposentados”, começa por explicar, indicando que se este tivesse a especialidade de Medicina Geral e Familiar poderia trabalhar em regime de prestação de serviços para o SNS.
“Em cima da mesa temos a proposta do projeto Bata Branca, um projeto em que a ARS LVT articula com uma IPSS, que preste cuidados a idosos, e celebra-se um contrato através da IPSS e depois diretamente com o médico. Há um pagamento deste serviço, diretamente à IPSS, e depois é feito pagamento ao médico”, detalha.

A autarquia diz ter “manifestado esse interesse”, bem como o médico, nessa reunião que decorreu na ACATIM, a IPSS que deverá acolher o projeto se for aprovado pelas entidades competentes.
Raquel Olhicas disse também que o ACES Médio Tejo foi contactado, tendo sido cedidos dados de identificação e curriculares à ARS LVT. Ainda assim, é necessário um parecer da Administração Central do Sistema de Saúde, I.P. (ACSS, I.P.) que também se pronuncia sobre esta possibilidade.
“São estes trâmites legais que lentificam um bocadinho o processo. Mas as coisas têm que se fazer de acordo com normativos legais, sempre”, sublinha Raquel Olhicas.
“Não podemos emprestar os gabinetes e infraestruturas a um médico que faça clínica privada, independentemente de receber ou não receber, independentemente de ser gratuito para a população. Há trâmites legais. Já transmiti ao próprio médico… mesmo que estivesse no centro de saúde, cujas instalações são da junta de freguesia, quem assume a responsabilidade em caso de acidente e onde está o seguro? Além de que todos os espaços onde os médicos exercem têm que ser acreditados pela Entidade Reguladora da Saúde, e não poderia ser licenciado um gabinete na junta de freguesia, onde o médico também propôs instalar-se”, reconhece.
Daí que surgiu a sugestão de o médico se instalar na ACATIM e fazer a partir dali as consultas. Raquel Olhicas refere que se aguarda a normalização do projeto Bata Branca. “Estou em contacto permanente com o Dr. José Eduardo Correia, falamos todas as semanas”, afirmou, dando conta que são “os procedimentos legais que nos impedem de ir para o terreno”.
Raquel Olhicas alerta ainda que, noutros moldes, o médico “só poderia passar receitas, porque estaria a exercer medicina privada e tal não permite passar exames complementares de diagnóstico contemplados no SNS, o que iria trazer ainda mais problemas”.
Quanto às publicações no Facebook do cardiologista aposentado, a vereadora reitera que a autarquia não tinha conhecimento de que José Eduardo Correia estaria a manifestar-se publicamente.
Apesar de tudo, a vereadora não deixa de reconhecer a atitude “meritória” do médico e que a “a intenção é louvável”, uma vez que pretende “fazer consultas gratuitas” e em causa está o atendimento de quatro horas, numa tarde, por semana.
Um plano de saúde global onde o doente está no centro do sistema e tem liberdade de escolha
José Eduardo Correia recebeu-nos em sua casa por estes dias, numa tarde solarenga, onde nos fez um pequeno retrato da vida que está a construir em Mouriscas. Durante a entrevista, após esclarecimento da situação a nível local, explicou ao nosso jornal a estratégia que defende para a saúde no país.
Puxando de uma folha, fez o esquema com recurso a uma caneta azul e com uma letra de médico bastante percetível, e disse traçar o “plano de saúde global onde o doente está no centro do sistema”, sendo esta “a base”.
Este plano aplica-se para consultas e exames complementares e ainda para atendimento na velhice, com hospitais de proximidade e medicina em casa/domiciliária.

O cardiologista defende que a terminologia do médico de família deveria passar a ser médico assistente, e que este último poderia ter a especialidade ou não. “Pode ser de medicina geral e familiar ou um dentista. É o que o doente escolher. A premissa é «todos podemos ver todos»”, refere, defendendo a liberdade de escolha do utente.
“Como há número de médicos suficiente para o número de doentes, porque não há-de ser o doente a escolher o seu médico?”, questiona, referindo que esta tese é defendida também por um economista e muitos especialistas.
José Eduardo Correia defende que a política se pode manter, com “um serviço universal e tendencialmente gratuito, conforme a Constituição”, mas aqui existiria este seguro nacional e universal pago pelo Estado, num estilo de ADSE alargado a toda a população e não só à Função Pública.
O médico entende que isto seria uma forma de fixar médicos no Interior do país, porque teriam utentes, uma vez que havendo necessidade, além de existir opção de escolha também espoletaria o aumento da oferta.
O cardiologista refere-se ainda ao facto de hoje existir um lobby dos grandes grupos de saúde privados e seguradoras, que são mais aliciantes e que por isso ‘roubam’ os médicos hospitalares e não só.
“Hoje já não podemos raciocinar como há 20 anos quanto aos médicos de família. Não é apelativo, tanto que os concursos ficam vazios. Com a solução que apresento, como em todos os profissionais de outras áreas, posso escolher o médico que me aprouver e se não gostar, posso trocar para outro”, indica.
“Eu quis ser médico de família, e no fundo, sinto-me um João Semana. E quando criaram a especialidade, subverteram e encheram de burocracia e muitos se retiraram para outros organismos públicos e cargos, porque eram maltratados”, aponta.

Acreditando na boa fé dos regulamentos de incentivos que estão a ser promovidos pelas autarquias no Interior do país para cativar e incentivar à fixação de médicos de Medicina Geral e Familiar, José Eduardo Correia defende que uma reestruturação a fundo “só pode ser feita pelo próprio Estado”, mas há falta de vontade política para tal, até porque muitos dos responsáveis têm ligação ao lobby e ao poder económico-financeiro.
“Há médicos que cheguem e sobram para levar por diante esta base em prol do diagnóstico e terâpeutica. Tem é de acabar o monopólio”, frisa.
Outro ponto defendido pelo médico prende-se com a velhice e o combate da desumanidade e falta de dignidade a que muitas vezes diz assistir no fim de vida das pessoas idosas. Passaria por permitir que as pessoas possam estar em casa, da pequena doença à doença terminal.
“O médico faria o acompanhamento, e estariam nos hospitais de proximidade e dali então para os distritais ou centrais. Foi este o escalonamento que fizemos, um grupo de especialistas, com a então Ministra Ana Jorge no âmbito da referenciação entre hospitais. Mas alguém meteu o estudo na gaveta”, comentou.
Referindo ser defensor de políticas de saúde, e não de qualquer política partidária, diz não ter dúvidas que se assiste a uma “falência” do sistema e que se não se atuar rapidamente, não haverá possibilidade de inverter a situação e que poderá chegar-se ao exemplo dos Estados Unidos, em que tudo está entregue a privados e seguradoras.
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Muito bem Joana
Jornalismo independente e de qualidade , que falta a muitos meios de comunicação social, penso, que por falta principalmente de independência face aos poderes que citou
Parabéns
Não é o primeiro caso. Conheço outro de um Urologisto do CHMT que há meses quando se reformou, colocou-se à disposição para continuar a trabalhar na sua especialidade para continuar a acompanhar os seus doentes de forma gratuita, mas disse-me que estava à espera que a Direcção Geral do Orçamento desse a respectiva autorização. Coisa que até há pouco tempo não aconteceu. Muito estranho mesmo quando há tanta falta de especialistas.
Parece-me que o Sr.Dr. José Correia vive noutro planeta. Há regras instituidas e aprovadas com a “sua” ajuda e que devem ser respeitadas. Tendo-se aposentado, chegou ao fim da linha na Função Pública, numa função privada poderia eventualmente seguir trabalhando mas mesmo assim com alguma dificuldade. Não podendo utilizar instalações públicas e pretendendo continuar a trabalhar resta-lhe oferecer os seus serviços profissionais e instalações à sua custa mas sem publicidade, de modo anónimo qual delinquente, pois mesmo assim está sujeito a investigação e a ser punido por actividade clandestina. Na actualidade também pode utilizar os recursos de que dispôe duma maneira mais desmaterializada, sem instalação fisica, respondendo via domicilio e posteriormente seguimento em teleconsulta e telechamada. Enfim modernices que a um “tal João Semana” não passaria pela cabeça.