"O rapto de Europa", Ticiano (1562)

You may write me down in history
With your bitter, twisted lies,
You may trod me in the very dirt
But still, like dust, I’ll rise
Still I rise.
– Maya Angelou

Quando muito jovem decidi dedicar-me ao estudo da Pré-História escolhi como área de especialização a tecnologia lítica, vulgo estudo dos artefactos de pedra talhada. Por essa altura conhecia já um arqueólogo que muito me ensinou ao longo da minha carreira. Disse-me ele então: “Sabes que o meu mentor não considera que mulheres tenham competência para fazer tecnologia lítica porque ele acha que as mulheres na pré-história não talhavam a pedra”. Ao que eu retorqui: “E tu concordas com isso?” A resposta que me ressoa até hoje: “Não concordo com a parte de elas não talharem na pré-história porque que não temos como saber com toda a certeza. Mas isso não é um problema porque tu não és mulher.” E riu-se. E eu engoli a dupla discriminação, por ser mulher e por não ser mulher devido à minha orientação sexual. Incrível, não é? O triste é que aceitei esta misoginia explícita (não menos grave pelo tom de brincadeira), para poder aceder ao conhecimento que, desta forma, me foi apresentado como prerrogativa masculina.

Na Albânia existe uma antiga tradição, hoje em dia residual, a que os antropólogos chamam de “Virgens prometidas”, as “burrneshat,” ou à letra “mulheres homens”. Para poderem ter privilégios somente dados a homens estas mulheres fazem um juramento de celibato para o resto da vida, adoptam um nome e comportamentos ditos masculinos e juntam-se em fraternidades. São mulheres que, para serem livres, têm de deixar de o ser. 

Quando li sobre as “Virgens prometidas” pensei na minha vida (todas em algum, ou vários momentos, sofremos discriminação, subtil ou declarada, branda ou violenta), e como sou arqueóloga pensei no passado e no devir do tempo (não vejo o mundo de outra forma, é-me natural este olhar que procura a origem).

Podemos traçar a origem da discriminação? Porquê? E quando surge declaradamente a misoginia, esse empedernido preconceito, pai de todos os demais?

Buscar padrões de organização social e ideologia na Pré-história é particularmente difícil, mais ainda pensar neles sem os nossos referentes contemporâneos. Ainda assim é possível, mas a Pré-História está a este respeito ainda impregnada de mitos originários. Estes persistem e fundamentam muito do que se continua a chamar “natureza humana”, particularmente as capacidades e responsabilidades atribuídas aos sexos sobre os quais se constroem culturalmente os géneros. Quantas vezes já não ouvimos: “é assim porque sempre foi assim, é a organização natural das coisas.” Lamento dizer, mas não, não é.

Estes mitos resultam fundamentalmente de duas circunstâncias: o nascimento da disciplina no século XIX com um olhar exclusivamente androcêntrico, e pela observação etnocêntrica e analogia directa de comunidades ditas primitivas que se encontravam num preciso momento histórico intransponível para a pré-história (em vias de desaparecimento ou destruturação devido ao colonialismo). Lamentavelmente, o olhar androcêntrico resiste e domina, mesmo apesar de um crescente número de mulheres na arqueologia e de a Arqueologia Feminista ter já décadas de investigação.

Talvez a origem da discriminação tenha raízes na divisão sexual do trabalho que radica na necessidade de controlo dos recursos alimentares e da reprodução social. Passo a explicar.

As comunidades de caçadores recolectores enfrentam a contradição de que quanto maior é a produção mais se compromete a reprodução social. Há várias formas de assegurar o equilíbrio do ciclo reprodutivo animal e vegetal, também diferentes maneiras de gerir a reprodução dos grupos, sendo a mais eficaz o exercício do controlo sobre a fecundidade feminina. Uma forma observada entograficamente (o que não significa que tenha sido assim na Pré-História) de efectivar este controlo é através da divisão sexual do trabalho que permite desvalorizar as mulheres através da desvalorização do seu contributo produtivo. Ora o controlo de um grupo é tão mais eficaz quanto mais este grupo for diminuído e excluído.

Controlar a fecundidade em comunidades pré-científicas implicaria sólidos mecanismos ideológicos que justifiquem e recordem a divisão e a desvalorização. Fácil de entender, não é? Foi exatamente assim? Não sabemos, mas esta é uma ideia que rompe com interpretações e preconceitos antigos.

Mas e a misoginia? Bem, nela podemos falar sem qualquer dúvida a partir das civilizações pré-clássicas e clássicas (refiro-me ao mundo ocidental e médio oriente) cuja maior parte dos textos, sagrados ou seculares, são declaradamente misóginos. É a mulher confinada ao gineceu na Grécia democrática, a mulher sujeita a uma lei diferente na Roma antiga e a mulher como fonte de todo o pecado e alvo de profundo ódio nas religiões monoteístas que se seguiram e dominaram por completo a organização social e política durante séculos (algumas até hoje).

Mesmo na França revolucionária e laica da Igualdade, Fraternidade e Liberdade, vemos Maire Gouze, conhecida por Olympe de Gouges, ser guilhotinada por se opor ao patriarcado e ter escrito a Declaração dos direitos da mulher e da cidadã. Uns séculos mais tarde, as sufragistas foram atacadas, presas e assassinadas por as suas propostas atentarem contra a ordem natural das coisas, por desafiarem a natureza humana. E ainda, no século XXI, mulheres discriminadas, assediadas, abusadas, violadas, mutiladas e assassinadas, só por serem mulheres. Basta pensar no movimento #MeToo, na tragédia da semana passada semana em Plymouth ou no inferno em que vivem as mulheres afegãs.

Gostaria de ver o meu país prontamente disponível para acolher mulheres e crianças que consigam fugir da barbárie e ódio a que vão estar sujeitas pelo regime talibã, mas duvido. E sinto-me impotente.

Tantas lições nos deu a História e, ainda assim, não aprendemos a olhar com a devida gravidade para o misógino elefante na sala.

Patrícia Fonseca

Sou diretora do jornal mediotejo.net e da revista Ponto, e diretora editorial da Médio Tejo Edições / Origami Livros. Sou jornalista profissional desde 1995 e tenho a felicidade de ter corrido mundo a fazer o que mais gosto, testemunhando momentos cruciais da história mundial. Fui grande-repórter da revista Visão e algumas da reportagens que escrevi foram premiadas a nível nacional e internacional. Mas a maior recompensa desta profissão será sempre a promessa contida em cada texto: a possibilidade de questionar, inquietar, surpreender, emocionar e, quem sabe, fazer a diferença. Cresci no Tramagal, terra onde aprendi as primeiras letras e os valores da fraternidade e da liberdade. Mantenho-me apaixonada pelo processo de descoberta, investigação e escrita de uma boa história. Gosto de plantar árvores e flores, sou mãe a dobrar e escrevi quatro livros.

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