Por estes dias, em que práticas sagradas e profanas se misturam, a tradição de pedir o bolinho ainda resiste no dia de Todos os Santos, pelo menos nas zonas rurais, enquanto as grandes cidades optam, cada vez mais, por celebrar o Halloween, na véspera do feriado.
Estrangeirismos à parte, sagrado mantém-se o costume de comer broas no dia de Todos os Santos. Se a pandemia, em 2020, impediu os miúdos de andarem de porta em porta a pedir “bolinhos em louvor de todos os santinhos” ou “pão por Deus”, o ano classificado de ‘horribilis’ não foi malvado para o negócio das broas, pelo menos na região do Médio Tejo, numa tradição que se mantém bem vincada no Centro e Sul do País.
Para a ‘Casa dos Bolos’, em Ribeira Ruiva, Torres Novas, o negócio correu bem. “Porque fornecemos superfícies comerciais. Aumentámos as vendas. Não havia feiras mas como as pessoas estavam em casa, iam ao supermercado comprar”, revela Domingos Bilro ao mediotejo.net.

Este ano, com o cenário pandémico mais amigável ao peditório porta a porta, grupos de crianças, certamente “mascaradas” mas sem as fantasias da tal tradição estrangeira, podem voltar a pedir o bolinho e receber caramelos, rebuçados, chocolates e bolachas ao invés das tradicionais broas de erva-doce e canela que outrora passavam de mão em mão.
Contudo, a tradição de comer broas nesta altura do ano permanece de pedra e cal. Por isso, os doceiros continuam a confecioná-las. A azáfama e o volume de trabalho que por esta época aumenta consideravelmente, serve para alavancar o negócio mas também para manter viva a tradição e arriscar novas experiências. É exemplo a casa de Helena Inácio que na verdade aposta em força nas broas durante os 365 dias do ano.

“Vendem-se todo o ano! Mas não são todas. Os clientes preferem as broas de fruta, erva-doce e canela e mel e noz. Na altura dos Santos vendem-se as chamadas broas fervidas; café, mel e noz e amêndoa. Têm uma forma de confeção diferente, as primeiras são mais secas. As fervidas, a partir de novembro praticamente deixam de ser fabricadas, só por encomenda”, diz.
Com a chegada do outono e da aproximação do feriado de Todos os Santos chega também muito trabalho na familiar fábrica da ‘Casa dos Bolos’ em Ribeira Ruiva. A broa gosta de frio e com os termómetros a baixar, apetece tudo o que é quente e doce. Na semana dos Santos e dos Finados, o trabalho quadruplica. “Ainda agora, a feira de frutos secos [de Torres Novas] foi a melhor que fiz em 19 anos”, garante referindo-se à edição de 2021.

A base das broas é sempre a mesma: azeite, erva doce, canela, cravinho e o sal, mas a variedade é vasta: ferraduras, bolos de cabeça (ou bolo de noiva), broas de frutos, de erva-doce, canela, mel e noz, mel e milho, anis com passas de uva, chocolate, canela e amêndoa, café entre outras. Embora a especialidade da casa sejam os pasteis de feijão, concorrentes no concurso 7 Maravilhas da doçaria portuguesa, conseguindo um quarto lugar no distrito de Santarém.
Domingos Bilro, marido de Helena Inácio, que corre as feiras de Norte a Sul do país, trouxe, este ano, 10 variedades de broas à Feira Nacional de Doçaria Tradicional de Abrantes mas já chegou a trazer 24.
A casa de Helena Inácio vende para cafés, para o mercado de Torres Novas e para os Intermarché da região. Domingos, que conhece as preferências dos gulosos de todo o país, salienta que as broas só fazem sucesso entre o Centro e o Sul. Para Norte é um doce desconhecido e não tem grande procura.

“Somos os únicos que andamos nas feiras com este produto, a nível nacional. Ando nas feiras há 19 anos. Ninguém me faz concorrência. Fabricamos e tenho a vantagem do produto ser nosso”, explica ao mediotejo.net.
O grande sucesso de vendas verifica-se de Abrantes para baixo “ou para o lado”, aponta a sorrir. “Faço mais o Alentejo: Borba, Estremoz, Alcáçovas. Fiz durante 10 anos a feira da agricultura que há 3 anos troquei pelo Pinhal Novo porque a feira era muito cansativa. Também deixei de fazer Rio Maior e também no Norte as pessoas não apreciam as broas”, confirma.
Desde pequena que o mundo da doçaria despertava interesse em Helena que “aprendeu alguns segredos com a mãe e com a avó”. Acabou por herdar receitas “de pessoas amigas” e dedicar-se aos bolos, divulgando o melhor que se faz no concelho.

Na verdade, Helena Inácio e uma amiga montaram um negócio de doçaria há mais de 35 anos. Helena arriscou o investimento, na sequência de uma situação de desemprego. Com o sucesso da iniciativa procuraram-se as receitas típicas da região e o negócio foi crescendo. Passado algum tempo, Helena Inácio prosseguiu sozinha. Atualmente conta com a ajuda da filha e de mais duas empregadas.

Na época dos Santos “o negócio aperta muito. Fornecemos as grandes superfícies em Torres Novas. A Helena faz a distribuição à quinta-feira pelas lojas de Entroncamento, Tomar e Torres Novas e depois temos venda no mercado semanal em Torres Novas”. Na banca encontramos ainda os arrepiados de Almoster, um bolo de amêndoa muito procurado, que Domingos tem “orgulho” em mostrar ao país, por ser uma especialidade ribatejana.
No seu permanente contacto com o público, Domingos diz haver quem queira descobrir os segredos das broas e pergunte pelas receitas. Helena “não tem problemas em partilhar as receitas, mas depois as mãos não são as mesmas. A sabedoria também está nas mãos. Não é chegar ali e pôr a mão na massa. Fazer doces obedece a determinada prática e a junção dos ingredientes não é suficiente” para que o produto resulte bem, assegura.

O negócio das broas terá continuidade se a filha de Helena Inácio quiser pegar no saber e der vida a estes sabores típicos da gastronomia portuguesa. “Senão morre aqui a tradição. Além disso, a Helena ganhou nome de doceira no mercado, ver o negócio terminar é triste. Enquanto eu e a minha mulher pudermos…” as broas não vão faltar no dia de Todos os Santos.