A segunda edição dos Caminhos da Água arrancou numa sexta-feira 13 e o misticismo adensou-se este sábado, dia 14, no Parque Ambiental de Santa Margarida, em Constância, com o primeiro momento em que as criaturas do Bestiário Tradicional Português andaram à solta. Aqui, miúdos e graúdos ficaram a conhecer o Benzilhão, mas outros encontros vão surgir até domingo em Constância e em Mação com este curandeiro de capuz e o Homem do Saco.
Os mais velhos certamente recordarão a Maria Gancha que vivia no fundo do poço ou do Homem do Saco que levava os meninos. Ambos estão entre as cerca de 40 criaturas fantásticas do imaginário popular reunidas no livro “Bestiário Tradicional Português”, lançado em 2016 com a chancela da Edições Escafandro, sobre as personagens místicas que marcaram as gerações portuguesas mais antigas e ganharam vida com os atores do “Bestiário à Solta – Histórias do Bestiário Tradicional Português”.

Os tempos mudaram, os “papões” também e a memória parecia condenada a desvanecer-se, até ser preservada através dos textos de Nuno Matos Valente e das ilustrações de Natacha Costa Pereira. O trabalho de pesquisa juntou os registos deixados por Leite de Vasconcelos, Consiglieri Pedroso, Alexandre Parafita, Alexandre Herculano, Júlio Dinis ou Teófilo Braga às fontes orais e muitas criaturas ganharam corpo pela primeira vez.
Caso se sinta nervoso por estas personagens místicas estarem de volta, não gostará muito de saber que duas delas andam pelos Caminhos da Água este fim-de-semana. O Benzilhão foi o primeiro a ser visto no Parque Ambiental de Santa Margarida este sábado de manhã e nós estivemos lá juntamente com as famílias, que chegaram a dar um “pulinho” de medo. À tarde seguia até ao Jardim 25 de Abril, em Montalvo, enquanto o Homem do Saco andava pela Praia Fluvial de Cardigos, em Mação.

O público de que fizemos parte teve miúdos e graúdos e entre eles estava Sérgio Oliveira, presidente da Câmara Municipal de Constância, que nos revelou que o Homem do Saco fez parte das histórias contadas pela avó materna. O autarca afiançou-nos que o receio diminuiu quando cresceu, até desaparecer por completo, e que o “reencontro” não trouxe amarguras, sobretudo por ser motivado pelos Caminhos da Água, que contribuem para a dinamização do concelho com espetáculos nas três freguesias.
Na de Santa Margarida da Coutada, a flauta anunciou a chegada do estranho homem de capuz, bastão na mão e um grande livro às costas no qual se destacava o “B”. Aproximou-se do grupo com promessas de o livrar “de todos os males” e seguiu para as “pedras mágicas” ali perto. “Um, dois, três foi a conta que Deus fez. Está fechado em cima, está fechado em baixo”, “Um, dois, três foi a conta que Deus fez. Está fechado em cima, está fechado em baixo”… O local estava protegido e vimos então a cara do Benzilhão que se apresenta como Ezequiel.

Um curandeiro neto de curandeiro que partilha com os mais novos a história do grande “Bestiário”, o livro em que o avô tomava nota das mezinhas e rezas utilizadas para curar maleitas, como o “cobrão”, e das criaturas com quem se cruzava, como a Velha da Égua Branca. Descobrimos mais tarde que o seu nome verdadeiro é Tobias Monteiro, um dos atores que dão vida a quatro figuras místicas do Bestiário Tradicional Português e com quem falámos.
Ao Benzilhão juntam-se o Homem do Saco, interpretado por Estevão Antunes, a Tia Miséria (ou “Tia Mimi”), interpretada por Paula Só, e a Maria da Gancha, interpretada por Ana Lúcia Palminha, responsável pela coordenação do projeto apresentado pela primeira vez no Festival Rádio Faneca, em Ílhavo, e que tem como ponto de partida o livro onde estão reunidas as “criaturas, monstros, seres” que muitos tratam por “bestas”.

Seres que, segundo o Benzilhão, andam à solta depois de serem forçados a abandonar os rios e os mares debilitados pela poluição e as árvores queimadas pelo fogo, temáticas atuais que não ficam esquecidas nos quatro monólogos de cerca de 25 escritos por Joana Berto e que “acabam por recordar ao público [de todas as idades] um pouco do imaginário popular” e a “importância destas figuras na nossa tradição”, muitas vezes criadas para ajudar a destrinçar o certo do errado.
E quem ateou o fogo? O curandeiro Ezequiel defende o “Cavalo do Pensamento”, injustamente acusado, e pede para usarmos a imaginação “com muita força” para que este apareça. Olhos bem fechados, pedido feito e ouve-se um relincho. É ele e traz um longo recado no qual se destaca “Não procureis por entre os monstros / Quem vos tenha feito mal / O mais certo é que o mostrengo / Pareça gente normal”.

A mensagem regressa este domingo para estimular a curiosidade das crianças e “recuperar a memória” dos adultos, que deixam de ser acompanhantes quando se deparam com contos da infância. O Benzilhão leva-a à Praia do Carvoeiro, em Mação, às 10h30 e às 12h00, e o Homem do Saco, cuja história envolve outras figuras místicas, vai assustar os mais incautos junto do Painel de Neptuno, no parque de merendas da vila de Constância.
Ao que sabemos, a Tia Miséria e a Maria Gancha não andam pela região… por agora, nem durante os Caminhos da Água, que terminam a 22 de julho. Os quatro vão percorrer o país e regressam ao Médio Tejo no mês de agosto, durante o Festival Bons Sons, em Cem Soldos. No entanto, até lá, todo o cuidado é pouco, pois fomos avisados de que estas criaturas conseguem disfarçar-se de humanos e nunca se sabe se, neste momento, uma delas estará mesmo ao seu lado…