Festas da Nossa Senhora da Boa Viagem, em Constância. Fotografia: José Paulo Marques / mediotejo.net

Apenas a doença impediu, por uma vez, António de Oliveira Lopes de subir o rio Tejo até Constância, por altura da romaria da Nossa Senhora da Boa Viagem. Encontrava-se na Suíça, como emigrante, e por lá ficou até restabelecer a saúde. Tirando esse ano de má memória, rumou todas as segundas-feiras de Páscoa a Constância. Apesar dos 75 anos, e já reformado, este ano novamente se fez ao caminho desde Linhaceira, em Tomar, onde atualmente reside.

Filho de pescadores, e usando os trajes tradicionais dos marítimos, afirma não saber se foi “arranjado dentro do barco”. O pai e a mãe pescavam e António também pescou. Depois, foi para “o estrangeiro”, procurar vida melhor. Contudo, não falta a esta procissão, porque “tem amor à terra” e mais uma vez subiu o Tejo desde o cais de Tancos numa embarcação com dois homens, ele incluído.

De sorriso escancarado e maneiras dóceis, simplifica e diz que a vida de pescador no rio não era difícil. “Só no inverno, por causa do frio, era mais duro”, diz. Por isso, as memórias não o afastam da alegria de participar nesta romaria em honra da Nossa Senhora da Boa Viagem, a padroeira local.

Festas da Nossa Senhora da Boa Viagem, em Constância. Créditos: Luís Ribeiro

A devoção a Nossa Senhora da Boa Viagem em Constância está associada ao intenso tráfego fluvial de mercadorias que se fez durante séculos entre o porto desta vila e a capital do país. Dos perigos da navegação nasceu o apego dos marítimos à Mãe de Deus e a confiança na sua protetora intervenção. A Festa e a bênção dos barcos, em segunda-feira de Páscoa, são os momentos culminantes de uma devoção que será pelo menos bicentenária.

Até aos meados do século XX, apesar de algumas vicissitudes da vida e do mundo, a Festa manteve a sua grandiosidade de sempre, refletindo a prosperidade económica da vila, que vinha da relação com os rios, de onde tirava o seu sustento e o sentido da sua existência.

Remonta a 1788 o primeiro documento escrito que confirma a devoção à Senhora da Boa Viagem em Constância. Graças aos trabalhos de pesquisa do historiador António Matias Coelho, descobriu-se esse documento histórico que refere a devoção há 230 anos. Trata-se de uma provisão da rainha D. Maria I que foi transcrita e contextualizada num artigo que o investigador publicou em 1994 no Boletim Informativo da Câmara Municipal de Constância.

Numa altura em que a vila ainda se chamava Punhete, há mais de dois séculos, era um porto fluvial estratégico (confluência dos rios Zêzere e Tejo), com uma importância crucial para o tráfego de mercadorias entre o interior e Lisboa. “Da navegação vieram também os perigos e os receios, as aflições e a necessidade de proteção que gerou a devoção à Senhora da Boa Viagem e a Festa em cada Páscoa, para abençoar os barcos e agradecer o amparo da Senhora”, explica António Matias Coelho.

E, mesmo já com poucos barcos e cada vez menos gente ligada aos rios, o ritual repete-se todos os anos. Agradece-se as graças recebidas e renova-se o pedido de proteção até à Páscoa seguinte, numa “das manifestações religiosas e culturais provavelmente mais antigas de todo o Ribatejo”.

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Passado o tempo dos marítimos e do transporte fluvial, a Festa entrou em declínio, como as atividades que a geraram e mantiveram, e só não desapareceu porque a paróquia decidiu assumir a sua organização, substituindo os festeiros que já não havia, e porque eram muito fundas as raízes que a devoção tinha criado na cultura local.

Este ano, navegaram em Constância, pelos rios Tejo e Zêzere, 57 embarcações (17 canoas) engalanadas, todas provenientes de municípios ribeirinhos para a tradicional festa dos marítimos, com o pedido de proteção à Santa e recebendo a bênção dos barcos.

À Festa rendeu-se também ao rei automóvel, institucionalizando, a partir dos anos 1960, a bênção das viaturas que todos os anos se faz na Praça Alexandre Herculano. A secular tradição realizou-se no âmbito das Festas do Concelho, em dia de feriado municipal.

António reconhece que a Festa é também um momento de encontros que exaltam a amizade e proporcionam o convívio, cumprindo uma tradição secular. “Gosto e tenho amor por Constância”, reforça.

Reconhece que o Tejo não é o mesmo. “Não há água… mas hoje não é o caso”, nota. Refira-se que para as embarcações poderem navegar, o Município de Constância dirigiu um pedido à EDP Distribuição no sentido de libertar água no rio Zêzere e no rio Tejo, acumulada na Barragem de Castelo de Bode e na barragem de Belver, respetivamente.

“Desviam a água para outro lado… para dizer a verdade, a Espanha desvia o rio”, opina o ex-pescador. Não obstante, “peixe há algum, como a fataça… lampreia é que é pouca!”.

Conta que às vezes ainda lança a rede mas diz “já não ter idade” para isso. Contudo, enquanto puder garante que marcará presença nas Festas da Nossa Senhora da Boa Viagem, cuja imagem é transportada até às margens do rio tal como são transportadas as imagens de outros santos.

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Como referido, o culto à padroeira dos pescadores tem pelo menos dois séculos, data dos primeiros registos desta romaria. Mas nas Festas de Constância há toda uma envolvência popular na parte pagã do arraial, com as ruas coloridas com flores de papel, com temas alusivos aos rios, à pesca ou à coletividade responsável pela decoração da rua. É o caso das notas de música que se veem na zona decorada pela Associação Filarmónica Montalvense, ou os carrilhões feitos em flores da CICO. Juntam-se ainda as tasquinhas e a gastronomia típica, dinamizadas por associações concelhias, o desporto, os concertos e o folclore.

Nos últimos 20 anos, a Festa vive uma nova fase da sua história, iniciada quando a Câmara Municipal decidiu intervir com o objetivo de a revitalizar e revalorizar, associando-lhe um vasto conjunto de atividades culturais, recreativas e de lazer que constituem as Festas do Concelho de Constância.

Maria Júlia veio, mais uma vez, até Constância, numa viagem que é habitual em conjunto com o Rancho Folclórico de Alpiarça. Familiar de pescadores, “sempre conheceu a vida dos rios”, principalmente do Tejo, conta ao nosso jornal.

Aquando desta entrevista junto ao Zêzere, Maria Júlia tinha acabado de pôr a roupa do Rancho a corar. Depois de molhada nas águas frias do rio, ensaboadas com sabão azul e branco, ficaram estendidas ao sol para que a nossa estrela faça a magia do branqueamento.

Para a mulher de 73 anos, que já foi pescadora, a vida “não era dura… era tão boazinha!”, ironiza. “Era passar fome de rapa e andar descalça, e sem roupa passar frio, era muito bom!”. Não tem saudades dificuldades passadas. “Não quero esse tempo! Tenho saudades de ser mais nova mas do que passei não tenho saudades nenhumas”, assegura.

Maria Júlia, que veste três saias e uns culotes mantendo os trajes das suas familiares avieiros, incluindo a mãe, tal como o pai, que chegou ao Ribatejo vinda de Vieira de Leiria, recorda ter vivo em casas de madeira assentes em palafitas à beira do Tejo em Praia do Ribatejo. Diz que ainda há quem viva da pesca, “mas vê-se poucos pescadores ainda a trabalhar nessa arte”.

Nas margens do Tejo e do Zêzere, milhares de pessoas concentram-se para ver a chegada das embarcações e saudar a procissão que chega junto dos barcos de pesca e alguns de recreio, como as canoas que dão colorido aos rios, intensificado pela luz do sol.

As bênçãos nos rios são três. Uma primeira no Zêzere, onde o padre que preside a cerimónia religiosa entra numa embarcação acompanhado pelo presidente da Câmara; outra bênção no Tejo, na confluência dos dois rios, ou seja, na foz do Zêzere; e uma terceira no cais de Constância, um pouco abaixo da Casa-Memória de Camões. O povo acumula-se, distribuído, ao longo das margens dos dois rios para ver a procissão passar em terra e as embarcações a navegarem, fazendo o mesmo trajeto na água.

Em terra, os pescadores transportam os andores, tal como escuteiros e até os vereadores da Câmara Municipal não recusam a missão, de novo até à igreja matriz, situada num dos pontos mais altos da vila de Constância, passando novamente pelas ruas enfeitadas com as flores de papel, algumas bastante estreitas e inclinadas, e pela Praça Alexandre Herculano, onde se realiza a bênção das viaturas.

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Também o Rancho Folclórico da Casa do Povo de Almeirim, secção da velha guarda, marcou presença nas Festas de Constância com uma embarcação. “Todos os anos! Há mais de 20 anos que vimos cá sempre com um barco característico dos pescadores que existiam nas margens do Tejo desde Almeirim até à zona de Valada do Ribatejo. O nosso grupo folclórico tem um barco, de descendentes de avieiros que em tempos vieram de zona de Vieira de Leiria e da Praia do Pedrogão e que se fixaram, ao longo dos anos, nas margens do Tejo, no concelho de Almeirim”, explicou por sua vez José Manuel, de 74 anos, residente em Almeirim e elemento do Rancho há 63 anos “ininterruptamente”, faz questão de sublinhar.

Para José Manuel, é muito importante manter as tradições. “Nós costumamos ir a Constância com os nossos trajes tradicionais de Almeirim, que é o traje de festa, e temos uma certa familiaridade com as gentes e os pescadores, daí a razão de participarmos todos os anos. Alguns colegas nossos são descendentes desses pescadores”, explica.

Festas da Nossa Senhora da Boa Viagem, em Constância. Créditos: José Paulo Marques

As cerimónias do Dia do Concelho arrancaram pela manhã de segunda-feira de Páscoa com o hastear das bandeiras no exterior do edifício da Câmara Municipal de Constância, ao som da Banda Filarmónica Montalvense e com os bombeiros de Constância em desfile. As comemorações incluíram a distinção dos trabalhadores municipais com 10, 20 e 30 anos de serviço sendo a cerimónia presidida pelo presidente da Câmara Municipal, Sérgio Oliveira, e pelo presidente da Assembleia Municipal, António Luís Mendes.

No seu discurso oficial, Sérgio Oliveira começou por notar que “num mundo em constante mudança, o poder local enfrenta um conjunto de desafios”. Referindo a pandemia, a guerra da Ucrânia e a crise inflacionista, disse que “só em matéria de energia”, gás e eletricidade, a despesa corrente aumentou “mais de 300 mil euros”, o que, “aliado ao aumento dos salários, representou um acréscimo total na despesa corrente de sensivelmente de 500 mil euros”, disse, lembrando que o Município de Constância está dependente “em mais de 70% do Orçamento Geral do Estado”. Admitiu, por isso, que “vivemos tempos muito exigentes do ponto de vista financeiro”.

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Defendeu por isso que a administração central “proceda ao reforço da transferências financeiras para as autarquias locais, não só para acomodar o aumento generalizado de despesas mas também para que os municípios tenham a capacidade para realizar investimento e executar os projetos quer no âmbito do PRR, quer do novo quadro comunitário de apoio que aí vem”.

Apesar das dificuldades notadas, o edil considerou que o concelho de Constância “continua a afirmar-se como uma terra atrativa, competitiva, para viver, investir e visitar”. Referiu a construção da praia fluvial no Zêzere em 2022, falou em dinamismo e na rede de fibra ótica e rede móvel em Santa Margarida da Coutada, que “permite hoje que jovens casais da área metropolitana de Lisboa ligados ao mundo da informática e às energias renováveis se tenham vindo a fixar naquela que é a freguesia mais envelhecida e que mais população tem vindo a perder”.

Sérgio Oliveira falou igualmente da nova central de biomassa da celulose Caima. “Representa um dos maiores investimentos privados das últimas décadas no nosso território”, permitindo ao concelho de Constância ser “um dos primeiros que tem uma celulose que ficará isenta de combustíveis fósseis”.

ÁUDIO | PRESIDENTE DA CÂMARA MUNICIPAL DE CONSTÂNCIA, SÉRGIO OLIVEIRA

Referiu ainda a empreitada para a construção da nova Loja do Cidadão, estimada em 1milhão e 400 mil euros, da candidatura ao próximo quadro comunitário de apoio do Museu dos Rios e das Artes Marítimas, da requalificação do cemitério de Constância, do parque infantil da Portela, e da ampliação da zona industrial de Montalvo.

“Num município como o nosso, fazer obras sem fundos comunitários torna-se bastante difícil. Infelizmente assistimos a mais um atraso na entrada em vigor do novo quadro comunitário de apoio”, lamentou o presidente, dando conta de que a Câmara Municipal de Constância tem “um candidatura submetida há vários meses no âmbito do PRR para a melhoria das condições para pessoas com mobilidade reduzida com vista a intervencionar na rua dos Fundadores da Sociedade Recreativa Portelense sem que tenha existido qualquer tipo de resposta até à presente data”.

Quando ao ciclo urbano da água, critica também “a obrigatoriedade” dos municípios estarem agregados. “A agregação ou não é uma decisão de cada município, colocá-la como condição de acesso a fundos comunitários é, na nossa opinião, ferir e desrespeitar a autonomia das autarquias locais”, defendendo a sua eliminação no próximo quadro comunitário.

Festas da Nossa Senhora da Boa Viagem, em Constância. Sérgio Oliveira. Créditos: José Paulo Marques

Abordou ainda o tema da habitação adiantando que a Câmara “pretende aproveitar a perspectiva que existe de apoios para a construção de habitação com rendas acessíveis, não só para reabilitar imóveis devolutos dando vida aos núcleos centrais das aldeias e lugares, mas também estudar a possibilidade de fazer um loteamento municipal na aldeia de Santa Margarida. É uma matéria ainda pouco clara, pelo que não será um projeto já para amanhã”.

A Saúde também foi área não esquecida por Sérgio Oliveira, tal como a nova travessia sobre o Tejo, a revisão do PDM e a dificuldade em recrutar trabalhadores para o Município, designadamente em profissões especializadas como carpinteiro ou eletricista, mas também na área das engenharias.

Após o discurso do presidente, quatro trabalhadores municipais foram agraciados com medalhas de 10, 20 e 30 anos de serviço. Foram eles Sónia Careca, Luís Correia, Elsa Lopes e Isabel Magano.

As cerimónias oficiais do Dia do Concelho contaram com vários convidados, nomeadamente o deputado João Moura e o comandante da Brigada Mecanizada, brigadeiro-general Sebastião Joaquim Rebouta Macedo.

A sua formação é jurídica mas, por sorte, o jornalismo caiu-lhe no colo há mais de 20 anos e nunca mais o largou. É normal ser do contra, talvez também por isso tenha um caminho feito ao contrário: iniciação no nacional, quem sabe terminar no regional. Começou na rádio TSF, depois passou para o Diário de Notícias, uma década mais tarde apostou na economia de Macau como ponte de Portugal para a China. Após uma vida inteira na capital, regressou em 2015 a Abrantes. Gosta de viver no campo, quer para a filha a qualidade de vida da ruralidade e se for possível dedicar-se a contar histórias.

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