“São as minhas segundas filhas. Digo isto porque esta arte é criação, é como um filho que estamos a gerar”, diz orgulhosamente Maria da Conceição, mais conhecida por todos na vila de Constância por Mariazinha. Um diminutivo que, tal como nas bonequinhas, representa o carinho que as pessoas nutrem por si desde pequena.
“Bonequinhas é a maneira carinhosa com que os nossos antepassados as chamavam, representando a satisfação das meninas que brincavam com elas”, conta-nos.
Sem memória de quando começaram a ser feitas, lembra-se bem do porquê de se fazerem. “Estas bonecas eram as que as nossas avós faziam antigamente, era a boneca de brincar das meninas pobres. Não havia tecidos, então faziam-se com restos de lençóis velhinhos que já não serviam para mais nada, tingiam-se para dar uma cor bonita e garrida e engomavam-se para dar um aspeto de novo”, lembra Mariazinha.

Não só para brincar, a bonequinha de Constância era também um sustento para as famílias pobres da vila. Enquanto os homens, os marítimos, iam pelo rio Tejo transportar as mais diversas mercadorias, as mulheres, que ficavam em terra, faziam estas bonequinhas de perna de cana para depois serem vendidas nas feiras francas.
“Em determinadas épocas do ano os quinquilheiros passavam com as carroças e as senhoras guardavam as bonecas que iam fazendo ao longo do ano numas arcas para depois lhes venderem, e eles levavam-nas para as feiras francas de todo o país”, relembra.
É entre incontáveis tecidos de todas as cores, padrões e feitios que Mariazinha partilha estes pedaços de história que mantém vivos na sua memória. Estamos na sua casa, mais precisamente na cozinha, uma pequena divisão com uma mesa centrada e sobre a qual estão dispersos os diversos utensílios e materiais para criar uma bonequinha de Constância. “É uma desorganização organizada”, diz entre risos.
Ao nosso redor, dezenas de bonequinhas já prontas decoram o espaço, e o tímido raio de sol que entra pela janela dá ainda mais destaque e brilho às suas cores garridas e faces rosadas – características indispensáveis de uma boneca tradicional.
“Onde demoro mais tempo é a conjugar tecidos, a ver as cores que vou meter nas bonecas”, confessa Mariazinha, enquanto nos mostra alguns dos tecidos: uns com flores, outros às riscas, outros lisos, com brilhantes, com renda.
São garantidamente mais de 1.000 as bonecas que já lhe passaram pelas mãos desde que agarrou nesta arte que perpetua o passado constanciense, há mais de três décadas.
“Quando passava antigamente na rua via à janela os tecidos a enxugar com as tintas, desde criança que sempre vi fazerem as bonequinhas, mas nunca fiz. Comecei a fazê-las depois de o meu marido falecer, por necessidade. A Câmara abriu na altura um curso com o Centro de Emprego e inscrevi-me. Foi aí que começou”, explica.
E de todas bonecas feitas até hoje, garante: “Nenhuma é igual!” Isso mesmo podemos comprovar pelos quatro cantos da casa, onde desde a cozinha à sala de jantar e à sala de estar – onde tem a sua máquina de costura – são centenas as bonequinhas expostas em cima das mesas, todas com o seu fato único e exuberante. “Só falta irem dormir comigo”, diz-nos Mariazinha, esboçando um sorriso.
O amor com que fala das suas criações é nítido e presente a cada memória que nos conta. O mesmo amor que a leva ainda hoje a fazer das bonecas a sua vida, num trabalho minucioso e de extrema dedicação.
“Uma boneca do início ao fim demora mais ou menos umas oito a dez horas. Leva muito muito tempo, porque isto é tudo muito minucioso, muito pequenino. Para as decorar, conjugar os tecidos, é um pouquinho de estilismo e por isso demora-se bastante. (…) A gente em tudo o que faz na vida temos que ter concentração e imaginação e isto requer gosto e sensibilidade. Eu imagino mais ou menos só um esboço e depois começo a ter uma ideia. É como os estilistas, que têm uma ideia e vão depois compondo”, admite, revelando que o segredo para uma boneca bem feita está somente no gosto pelo que se faz e numa pitada de paciência.

Mas para fazer uma bonequinha a rigor não basta cumprir com a sua traça original – ter o cabelo de lã de ovelha, as canas que se apanham no campo para fazer a estrutura base, os braços recortados de antigos postais que se enviavam e as rosáceas rosadas que saiam do papel crepom molhado em água. É preciso ter um propósito. E o de Mariazinha está bem presente em cada nova boneca que faz: “As minhas bonecas contam e pretendem transmitir a vivência que outrora houve em Constância.”
E os exemplos são visíveis: desde as damas do antigo Palácio de bolsa na mão às criadas das casas senhoriais, da bonequinha do tresmalhe que retrata a arte de se fazer redes de pesca às bonecas rurais que retratam os afazeres das lavadeiras, de ir buscar água no cântaro e de acarretar a lenha, os costumes e ofícios que outrora se viam em Constância estão dignamente retratados em delicados pormenores.
Numa articulação entre tradição e inovação, Mariazinha vai mais longe e tem também retratadas algumas figuras da vila, como antigos marítimos de Constância, e imagens globalmente conhecidas, como a do menino Jesus.
“Gosto de ser autêntica e este é o trabalho mais genuíno de artesanato que há a todos os níveis”, expressa, soltando um lamento por esta ser uma arte em vias de extinção.
“É uma arte muito bonita e que acabou… acabou. É uma coisa que não se vende, porque a vida está cara… Já não se vê ninguém fazer. Eu ainda estou até hoje, porque apesar de se vender pouco, eu gosto. Acho que isto é um trabalho maravilhoso de reciclagem: as canas iam-se buscar à natureza, as penas eram aproveitadas quanto matavam alguma galinha, o tecido era já dos lençóis velhinhos… do desperdício fazem-se coisas maravilhosas”.
Hoje fundamentalmente com uma função decorativa, a bonequinha tradicional de Constância é, como diz Mariazinha, uma “boneca de saudade”, que marcou presença regular nas feiras de artesanato, como foi o caso na 31ª Mostra Nacional de Artesanato, inserida nas Festas de Constância 2022, quando a ouvimos.

Aquela, disse Mariazinha, seria a última feira em que marcaria presença acompanhada pelas suas bonequinhas, uma vez que o seu estado de saúde já não o permite.
“Eu amo o que faço!”, diz-nos com a voz embargada. A perder a visão, desistir não está nos planos de Mariazinha, que vai continuar a fazer as bonequinhas no aconchego da sua cozinha até que a vida assim lho permita. Com o coração apertado, diz-nos que “ainda tinha muitas coisas significativas para fazer sobre Constância”.
Antes de sairmos do mundo encantado das bonequinhas tradicionais de Constância, apreciamos ainda os versos que Mariazinha escreveu para definir a sua arte:
A minha bonequinha é linda
e tem grande elegância.
Representa com eloquência
a bela vila de Constância.
Linda bonequinha,
de Constância és tradição.
Boneca tão gentil,
que bela recordação.