Sobram dedos de uma mão para contar os latoeiros no distrito de Portalegre. São três, segundo as contas de Manuel Infante: um em Nisa, outro em Arronches e ele próprio, em Gavião. Há 50 anos se andássemos por terras do Alto Alentejo e do vizinho Médio Tejo encontraríamos artesãos que trabalhavam as folhas de zinco, transformando-as em utensílios. Depois chegou o plástico e a arte quase morreu. Agora volta a renascer pelas mãos dos quase extintos mestres que ainda conseguem dobrar as folhas zincadas. Baldes, almotolias, candeeiros de cemitério, candeias, bilhas de azeite, ferradas para ordenhas, cafeteiras para salamandras, tabuleiros para retalhar azeitonas e malas de motas mostram que Manuel, afinal, tem lata de sobra.
Manuel Salvador Infante, aos 73 anos, vive no meio das latas. Não nasceu em berço de lata nem no meio delas mas ainda hoje desenha no brilho da chapa zincada o seu sonho de menino. “Gosto de lidar com as latas”, garante ao mediotejo.net. Faz tudo o que lhe pedem desde que lhe mostrem o desenho. Ninguém na sua família conhecia a arte da latoaria. O pai era agricultor de uma família de agricultores com 10 filhos e nenhum, exceto Manuel, inclinado para o martelo e para a bigorna. A primeira bigorna, com cerca de 60 anos, ainda permanece na sua oficina.
Aprendeu a ler e a escrever o básico, essencial para uma profissão onde é preciso tirar medidas e fazer contas. De régua e compasso, a prática mostrou ao artesão que “uma bilha de um litro mede 14 na régua, dois litros já são 20 cm” que depois aplica no diâmetro do compasso, explica.

Encontramos Manuel Infante na sua oficina, em Gavião, na Hipólito Camilo, rua adornada com arcos para iluminação natalícia criada e elaborada pelo artista com o apoio dos residentes daquela rua da vila. “Os vizinhos compraram os materiais e eu dei a mão de obra” refere mostrando o presépio que construir à sua porta. “Todos os anos é igual. Montamos as luzes e o presépio” entrando no espírito do Natal.
Dentro de portas um pequeno pátio acolhe uma mesa comprida ao centro, onde Manuel desenha as peças na chapa zincada. Trabalha com duas qualidades, “uma opaca e uma iluminada”, diz.
Assim tem de ser para alguns trabalhos como os cântaros que antigamente guardavam o leite ou o azeite e agora, por vezes, guardam memórias como objeto decorativo, ou as cafeteiras do famoso ‘café das velhas’. Se for em folha opaca ganha verdete e não pode ser”, explica.
As chapas chegam de Ponte de Sor, inteiras, de um metro, “há lisas, em cobre marteladas para fazer os alambiques da aguardente”, essas placas de metal vêm de Castelo Branco. Manuel estava de volta de uma ferrada para ordenha. “Vai para Castelo de Vide. É só para enfeitar”, explica.

Mal entrámos e larga tudo para ir buscar os objetos que engrossam a lista de encomendas. Balde, cafeteira, mala de mota, francela para queijo, lanterna, regador, enxofradeira para curar as vinhas, fole para defumar colmeias e até um pequeno regador que fez a partir de uma lata de salsichas, para o neto Paulo de dois anos.
“Não há nenhuma peça que não faça, desde que a veja com os meus olhos…” salienta orgulhoso, mesmo depois de mais de 20 anos sem pegar na arte a sério. Após o interregno “para muitas peças tive de voltar a puxar pela cabeça, algumas via na televisão” refere mostrando uma lanterna inspirada numa de Paris, aquando da transmissão de notícias sobre os ataques terroristas no Bataclan.
Isto porque o artista não dedicou uma vida inteira à latoaria. “Aos 14 anos comecei a trabalhar nisto. Aprendi com o mestre Artur que tinha uma oficina em Gavião. Ia ver para aprender. Era muito curioso!” afirma. Agora não tem a quem passar a arte, nem mesmo aos dois filhos ou às duas filhas. “Gostava que alguém aprendesse o ofício”, refere.
Certa vez “o diretor da Escola de Gavião pediu que fosse uns dias à escola para ensinar a arte aos alunos, mas não valeu a pena. Apareceu dois ou três. Ninguém quer aprender. Querem é computadores e telemóveis, mais nada”.
Contrariamente a Manuel que em criança percebeu ser a arte da lata que o fazia feliz. Então pediu ao pai para lhe comprar uma tesoura, um martelo e uma bigorna, aquela que após 60 anos ainda adorna a oficina. É uma arte que implica técnica de recorte e soldadura de estanho.
Manuel demora cerca de duas horas para fazer uma ferrada “que leva umas 14 peças” e uma hora para um cafeteira, cuja composição “leva cinco peças”. Os preços variam entre os 15 e os 25 euros. “Uma peça de 30 euros dá trabalho, é preciso ter paciência e três ou quatro horas pelo menos… nem paga o material”, sublinha.

Manuel Salvador Infante nasceu em Póvoa da Atalaia, no concelho de Fundão. O pai trabalhava em Sarnadas, por cima de Vila Velha de Rodão. Aos seis anos veio morar para Gavião. “Havia muita gente a trabalhar nisto. Depois o negócio começou a falir com a chegada do plástico e tive de desistir porque já não dava para viver” conta. Teria mais de 30 anos quando concorreu para os Bombeiros de Gavião onde ficou a trabalhar como motorista durante 33 anos e ia fazendo um objetos em lata a quem lhe pedia.
Nos Bombeiros de Gavião recorda fazer os primeiros socorros. À conta disso tem duas afilhadas que ajudou ao nascimento dentro da ambulância, uma a caminho de Portalegre e outra na viagem até Abrantes. “Já são adultas, mulheres com 18 e 27 anos”, vinca.
Quando se reformou, há cerca de sete, precisava de uma ocupação para se entreter e, ao mesmo tempo, manter-se ativo. Como o dinheiro da reforma “não é muito e a latoaria voltou a ter procura decidi dedicar-me novamente à arte”, diz e agora passa as tarde na oficina. “Tenho muitas encomendas e financeiramente sempre é um suplemento para dar 5 ou 10 euros aos netos”, refere.

Os seus clientes são sobretudo agricultores da região, embora faça peças para outras zonas do País. Nos momentos sem encomendas Manuel dedica-se a criar peças que a imaginação lhe dita ou a fazer os artigos mais pedidos para ter em ‘stock’. Desistiu de percorrer Portugal nas feiras de artesanato. Atualmente só faz a de Gavião. “Já fiz a feira de Castelo Branco e a de Abrantes. Mas é sempre dois ou três dias… não compensa!”.
Na de Castelo Branco esteve há três anos “porque me vieram buscar com uma grande carrinha para levar o material, necessário também para trabalhar ao vivo”. Entretanto, outros convites chegaram, nomeadamente da Guarda para fazer a feira de artesanato no próximo verão, com direito a alojamento e tudo. Mais próximo do evento decidirá. No ano passado, em Gavião, na Mostra de Artesanato e Gastronomia, chegou a juntar entre 10 a 15 pessoas para verem como se trabalha a lata, uma profissão da qual, assegura, “é possível viver” atualmente.
Na demonstração que fez para o mediotejo.net, ao lado das ferramentas do ofício – tesouras de corte direito, de rodear, de bicos, martelo, bigorna e ferro de soldar – um pequeno circulo de metal do qual saiu a ideia de um funil. Manuel vê os pedaços de chapa e imagina logo a peça a construir, também numa lógica de rentabilizar sem desperdiçar o material.
Após abandonar a profissão de latoeiro, e antes de entrar para os bombeiros de Gavião, Manuel lembra que trabalhou em Setúbal, numa empresa a fazer peças de chumbo para caixões. Ele e os colegas, talvez para desmontar a ideia e aliviar um trabalho algo mórbido, batizaram as peças de ‘São Martulhos’. “Fiz milhares deles para encaixotar os defuntos”, recorda.

Passava a semana em Setúbal e regressava a casa para o fim-de-semana com mais dois colegas da Ponte de Sor, um de Vale do Arco e outro de Gavião. “Não arranjava trabalho aqui e através de um anúncio num jornal fui prestar provas” e por lá ficou durante quatro anos. “Não ganhava mal mas vi que não era vida estar fora da família”. Por sorte, abriu concurso para os bombeiros.
Por ora, pretende manter a tradição “enquanto puder” no tal pátio de Gavião, onde mantém a oficina embalado pelo canto de um canário amarelo, o fiel companheiro. O que gostava mesmo “era ter um aprendiz” mas teme que também nenhum dos oito netos queira aprender. O mais velho, com 15 anos rendeu-se ao Turismo, e ao curso de hotelaria.
“Prefere servir às mesas e não quer aprender” o ofício, lamenta o artífice. Quem sabe se salve a arte através do pequeno Paulo, o outro companheiro de oficina.







*Entrevista publicada em dezembro de 2018, republicada em julho de 2022