A noite faz-se fria, não se vê gente na rua. Na terra, Penhascoso, recolheram cedo na noite de Carnaval. Mas, honrando os usos e costumes de há umas quantas décadas, sabemos que um grupo de destemidos vai acabar por aparecer para cumprir a tradição. Esta noite, que antecede o dia do Entrudo, as carroças, reboques e alfaias agrícolas que se cuidem… porque ao largo principal (muito provavelmente) vão acabar por ir parar. O mediotejo.net não quis ficar de fora, e foi descobrir o que é preciso para se ser um ladrão de carroças à maneira.
Cerca das 22h00 chegamos a Penhascoso. Sabemos que o ponto de encontro é ali ao lado, no largo junto à praceta improvisada dos táxis Rafael. Por ali já se vê uma espécie de mascote a dar a dica: um peluche confortavelmente sentado numa carroça antiga, de guarda-chuva aberto prevenindo-se da eventual chuva que apregoaram nas previsões do tempo para o Carnaval deste ano.
No café da terra via-se o programa da RTP1 que abordava a poluição no Tejo, que contava com a presença do guardião do rio, Arlindo, e do autarca da Câmara de Mação, Vasco Estrela, e outros tantos representantes da população em geral. Atentos ao programa, mas de olho no relógio, comentavam a atualidade. Entretanto, é hora e sair e começar a reunir no largo.
E a reunião vai-se fazendo, gradualmente, e vão chegando maioritariamente jovens rapazes, cerca de 20 elementos, que se mostravam já de aquecimento feito para a folia, encorajados para a aventura que se seguia. A jantarada foi na casa do M. que este ano foi o anfitrião.
Junto à fogueira, conversamos com João (nome fictício), filho da terra, e que, na casa dos vinte anos, contou ter crescido a ouvir falar nas peripécias por altura do Carnaval. Por outro lado, Vítor (nome fictício) lembrou que as histórias das idas às carroças fazia parte das histórias ao serão com os avós; vem de propósito de Carvoeiro, “do outro extremo do concelho”, para poder ajudar na manutenção desta “judiaria” tradicional.

“A tradição já vem desde o tempo dos nossos avós, cumpria-se um pouco por todo o concelho. E, hoje em dia, a malta nova reúne-se aqui na freguesia do Penhascoso para tirarmos as carroças e metê-las no centro da praça, como se fazia antigamente”, contou ao mediotejo.net um dos jovens, devidamente mascarado, cumprindo com o seu espírito do Entrudo.
João, sendo de Penhascoso, assume que a sua aldeia “é das poucas, talvez a única, onde esta iniciativa se consegue manter”. O jovem já frequenta estas lides desde os seus 15 ou 16 anos, e afirma que todos têm “muito orgulho em continuar a tradição, porque já é algo que vem do tempo dos nossos pais, que ouvimos histórias dos nossos colegas mais velhos”, notando, ainda assim, que existem “diferenças entre o que havia antes e o que há agora”.
Entretanto, e matando a curiosidade, explicam o processo e a estratégia, que exige astúcia, mas que é sempre baseada nos costumes antigos, em que, disseram, se chegava até a trocar os burros dos vizinhos, ou mesmo as rodas das carroças, estando umas como novas e outras mais gastas.
E isso sucedia entre vizinhança escolhida a dedo, acertando mesmo naqueles que não se davam bem, e provocando zaragatas sem fim. “Os donos depois andavam à guerra, para saber de quem eram as rodas das carroças e para trocar os burros”, explicou Vítor.
O risco de uma brincadeira que nem sempre correu bem

O certo é que, reunidos por ali, começam a surgir recordações, no caso dos mais velhos, que lembram quando, sendo a carroça o meio de deslocação privilegiado das pessoas, estas chegavam a ficar de guarda, noite dentro, de espingarda ou caçadeira em punho. E havia tiros para o ar. “Alguns até os cães punham presos às carroças, para não as levarmos”, contou um dos antigos ladrões de carroças.
Hoje, dizem que “tentam sempre ser cuidadosos e não fazer muito ruído, e tentamos não estragar nada”, mas… “há sempre uma outra situação mais polémica, em que acaba por se partir uma flor, ou desaparece alguma peça”, assumiu João.
As carroças caíram em desuso. Isto não veio facilitar o trabalho das gerações mais jovens. Agora, exigem-se mais braços, e mais força, para conseguir carregar até ao largo reboques, carroças adaptadas como tal, atrelados e alfaias, tornando-se muito mais pesados e de difícil manuseamento estrada fora. Mas isso não os assusta.
“A malta que se junta aqui só se preocupa para trazer as coisas para o largo, e vamos à casa das pessoas e estamos a mexer naquilo que não é nosso… tem de se fazer com cuidado, temos de ser um bocado habilidosos para nos movimentarmos em sítios que não conhecemos bem, e onde estamos às escuras”, disse Vítor.
Mas nada disso impede que se cumpra a tradição. “As próprias pessoas já se riem, e para muitas, se chegar o dia de Carnaval e não virem aqui o arraial montado na praça, não é Carnaval”.
E o segredo para se ser um competente ladrão de carroças? “Em primeiro lugar é preciso ter os passos leves, a gente ao entrar nas propriedades dos outros e não se ouvir, e ter força! E também já irmos um bocadinho aquecidos, depois do jantar, porque o Entrudo começa também no petisco (…) e depois pela noite dentro é que vamos fazendo as traquinices”, enumerou Vítor.
Ponto assente é que neste trabalho de equipa “é sempre a malta da aldeia, nascida e criada aqui, que nos dirige”, deu a entender o jovem, reconhecendo que a estratégia tem de ser bem delineada, e a rota já é conhecida por todos.
Carroças, alfaias e reboques enchem o largo madrugada fora

Conversas à parte, convidam-nos a vir ver a teoria posta em prática. Pela noite dentro, alguns encapuçados, outros mascarados, uns só agasalhados, vão-se dividindo por grupos, dirigindo-se para as ruas e propriedades circundantes.
Logo ali abaixo, depois de passarmos a igreja, houve quem facilitasse o trabalho. Os habitantes já se mostram cooperantes, e deixam alfaias e carroças antigas prontas a levar. Num ou outro caso, até madeira para a fogueira no largo deixaram, não vão os moços passar frio. Até aqui tudo bem… o pior é pegar nelas.
Um puxa daqui, outro dali, e mais barulho, menos barulho, aí vem mandada estrada abaixo a carroça com o cepo em cima. Ainda faltam uns bons metros até à meta.
“Empurra! Não, puxa antes deste lado. Olha aí, encosta, vem aí um carro”, ouve-se.
Em tom de alerta, as dicas vão sendo dadas. Caminho fora, vai-se registando o que por ali há. “Olha! Está aqui outra boa para levar”, diz um dos jovens. O grupo já tem tarefa seguinte.
Noite dentro, o largo, que hoje até música e máquina de imperial tem, mostra-se movimentado. O convívio é palavra de ordem, e entre idas e voltas, há quem chegue mais massacrado, quer por entalar um dedo ou outro, ou levar mesmo com alguma parte da carga na cabeça. Ossos do ofício.
Pela manhã, já o largo está composto. Há de tudo: carroças, alfaias, reboques, vasos de flores, ferramentas, entre outros tais objetos.
Agora, não se vê por lá ninguém do grupo de ladrões de carroças, não vá a coisa correr mal. Chega a vez dos proprietários virem ver dos seus pertences, logo pela manhã, avaliando o estado das coisas e recolhendo o que é seu.
Sabe-se que alguns não acham piada à brincadeira, e a coisa pode dar para o torto. Outros, deixam-se rir, pois foi mantida, em mais um ano, a tradição que vem da sua juventude. Décadas se passaram, muita coisa mudou, mas a ideia continua por ali.
Quanto à rapaziada, deve estar a repousar do esforço noturno. Vida de ladrão de carroças não é fácil. Mas sabemos que ladrão de carroças que se preze, não aguenta muito tempo sem espreitar o resultado final, com esperança que o sentido de humor prevaleça e que ninguém se aborreça.
Afinal… é Carnaval. E ninguém leva a mal.
* com Sónia Leitão
**Reportagem publicada em março de 2018, republicada em março de 2019