No segundo dia do Festival de Filosofia de Abrantes, desta vez em Mação, Gonçalo Marcelo e Steven Gouveia falaram sobre a automação e organização do trabalho. Em causa as consequência da Inteligência Artificial no mundo laboral. As conclusões não são animadoras. Sem regulação do desenvolvimento da tecnologia pelos Estados o futuro trará, mais rapidamente do que se calcula, o desemprego em massa e a pobreza para milhões de pessoas. O Rendimento Básico Incondicional pode ser uma solução mas para já as posições dividem-se.
Vivemos um contexto de crise política na Europa. “A crise na União Europeia é uma crise social e económica por um lado e uma crise política. Estamos face a dois perigos: cada vez mais tecnocracia e cada vez maior afastamento dos cidadãos em relação às instituições europeias. Por outro lado, o crescimento do populismo de direita que se apropriou da rejeição das pessoas em relação a este primeiro fenómeno. E capitaliza algum espaço político deixado vago pelos partidos tradicionais de esquerda que suavizaram muito o seu discurso e deixaram os deserdados da globalização, órfãos de uma opção política que pudesse corresponder melhor aos seus anseios […] temos vindo a assistir a fenómenos de aumento da desigualdade desde os anos 1970 que coincidiu com a viragem neoliberal”.
Foi desta forma que Gonçalo Marcelo iniciou o segundo dia de Festival de Filosofia de Abrantes, em Mação, este sábado 10 de novembro, num debate sobre o ‘Impacto Social da Quarta Revolução Industrial: desafios éticos e políticos’.
O filósofo fazia um enquadramento da situação política no mundo e particularmente na União Europeia para falar sobre a automação e organização do trabalho. Ou seja, o que nos espera num futuro próximo tendo em conta os rápidos progressos da Inteligência Artificial (IA).
“Não existe hoje em dia nenhum projeto claro e mobilizador que permita às pessoas identificarem-se de forma total com a Europa e identificarem a Europa com a solução dos seus problemas. A construção da zona Euro é insuficiente para fazer face às crises económicas” e portanto “grande parte da pergunta sobre a tecnologia tem de ser colocada para nós neste contexto: como é que entra a tecnologia nesta problemática? Será que vai ser meio de maior pobreza, exclusão e desigualdade? Ou se acompanhada pelas políticas públicas adequadas pode tornar-se um ideal mobilizador que mude os dados do jogo e ajude as pessoas a viver melhor?”, questionou o orador.

As opiniões dividem-se. “Existem os tecnófilos, tipicamente otimistas em relação às soluções tecnológicas que veem uma utopia de salvação da Humanidade e a diabolização das características da condição humana como a finitude, e outras tecnófobas e cenários catastróficos em que vamos ser dominados pelas máquinas, em que vamos criar um conjunto de castas onde quem tem acesso ao poder são aqueles que têm acesso à tecnologia, casado com uma dinâmica de capitalismo industrial avançado, fazendo uma massa de excluídos brutal”, explica Gonçalo Marcelo.
Mas, acalmem-se espíritos ansiosos, porque para o filósofo, “nem uma coisa nem outra” considerando “importante a vigilância pública, não defendendo que a tecnologia é um meio neutro” mas defendo “mecanismos da regulação democrática” sublinhando a importância da “perspetiva não fatalista”, na ótica do “pessimismo da razão, otimismo da vontade”.
Diz que quarta Revolução Industrial, segundo os especialistas, “será muito mais profunda que as anteriores pelo facto da automatização, a IA, o machine learning serem mais profundos agora do que eram no passado”, tendo consequências como a perda da democracia.
“Com os algoritmos tal como os conhecemos hoje, é impossível ignorar a distância que vai entre a promessa emancipatória e o que acaba por acontecer na realidade se o desenvolvimento da tecnologia for abandonado a si próprio sem capacidade de regulação”, refere. Sem a regulação dos próprios algoritmos, afirma Gonçalo Marcelo, “a situação não se alterará”, exemplificando com a campanha eleitoral do presidente eleito do Brasil realizada a partir do WhatsApp.
Conclui que “haverá uma transformação radical na estrutura do mercado de trabalho” em número e tipo de empregos disponíveis “algumas profissões vão desaparecer”. Por outro lado, “provavelmente haverá um aumento de produtividade o que significará maior criação de riqueza”. Seja como for, “as sociedades serão forçadas a adaptarem-se mas tudo leva a crer que as mudanças serão tão profundas que a preparação do ponto de vista social e político tem de ser rápida e começada de forma clara desde já”.

De acordo com Gonçalo Marcelo nem o trabalho criativo está a salvo porque “isto já entrou no domínio do cognitivo e não há forma de saber onde se traça a fronteira da impenetrabilidade tecnológica”.
O impacto da tecnologia “vai ser assimétrico e beneficiar alguns setores de atividade, alguns países e algumas empresas”. A solução passa pela “requalificação das pessoas e poderá passar por medidas como a redução dos horários de trabalho”. O trabalho mais descontinuo é outra possibilidade.
A grande questão, defende Gonçalo Marcelo, passa pelo Rendimento Básico Incondicional (RBI). Ou seja, “a atribuição de um montante de forma regular a toda a gente de forma incondicional sem necessidade de por as pessoas no mercado de trabalho, sem condições de recurso e eliminando todo o fator de estigmatização que existem nas prestações sociais condicionais”.
A ser verdade que a Revolução Industrial será “tão radical” como supõem as previsões “coloca as sociedades capitalistas avançadas num impasse: se nada for feito o resultado no imediato não será agradável”, garante. O aumento da pobreza, da desigualdade e o desemprego estrutural são probabilidades latentes.
A solução passa também por aproveitar a oportunidade de reformar os sistemas de proteção social e a forma como é feita a distribuição e a redistribuição dos recursos, nomeadamente com o RBI, “não como uma medida assistencialista”, defende, mas excluindo preconceitos culturais, políticos e morais, “libertando tempo para as pessoas e para atividades a bem da comunidade e não só do individuo”, como garantia de liberdade real para todos.
Em conclusão: “Se a sociedade for capaz de assegurar a subsistência das pessoas através da automação, por que raio deixaríamos a maior parte das pessoas submetidas ao desemprego tecnológico na maior das indigências?”. Talvez, equaciona, possam as máquinas desempenhar o papel de emancipação da Humanidade.

Por seu lado, o orador Steven Gouveia levou para a conferência o tema ‘Transhumanismo e Inteligência Artificial: pressupostos filosóficos e consequências políticas’. Para dissertar sobre a possibilidade lógica e empírica de uma verdadeira inteligência artificial e falou do impacto que este tipo de tecnologia poderá causar na definição de ser humano.
Importa referir que para os transhumanistas a morte é objetivamente má, o envelhecimento é considerado uma doença que deve ser combatida e procuram a imortalidade como objetivo máximo. Porpõem transferfir a nossa mente (biológica) para um substrato não-biológico, acreditam que se o ser humano pode viver com um coração artificial, por exemplo, pode fazer o mesmo com o corpo inteiro, incluindo o cérebro.
O congressista explicou que “se o mind-uploading for possível, então a IA será alcançada, podemos criar robots superinteligentes o que terá como consequência a substituição do trabalho humano pelo artificial, o desemprego massivo”.
Mas relativamente ao RBI Steven, contrariamente a Gonçalo Marcelo, apresentou algumas reservas. “Uma ideia que parece excelente, mas que pensada a fundo poderá ser perigosa” nomeadamente, porque “os conservadores acham que o RBI irá ser um desincentivo ao trabalho e custará demasiado dinheiro, sendo uma despesa que quem trabalha terá de pagar” explicou.
Por outro lado, “os liberais acham que os empregadores irão usar o facto do RBI existir para pagar menos salários, também temem que os políticos usem o RBI para destruir os programas sociais existentes e dissociar instituições que ajudam os mais necessitados e pobres”.

A ideia que através da tecnologia “iremos finalmente conseguir comida e condições acessíveis para todos é louvável, mas os defensores do RBI esquecem-se de uma coisa importante: é que de facto hoje em dia já temos condições para que toda a gente tenha comida à mesa. O problema não é a falta de comida, é o facto desta não se distribuída propriamente”, nota.
Assim, considera o RBI “financeiramente irresponsável. Universal significa toda a gente. Mesmo nas sociedades mais ricas, se o RBI fosse estabelecido num nível que proporcionasse um padrão de vida modesto, mas decente, seria inacessível e levaria a deficits inflacionados”.
Como solução defende “mais trabalho a tempo parcial, semanas mais curtas, recompensas pelo trabalho em casa, indústrias criativas e cuidados sociais e individuais”.
Para Steven “não é verdade que os empregos estejam a desaparecer, a natureza do trabalho é que está a mudar. Precisamos de políticas que atualizem os trabalhadores, que os ajudem a incorporar-se nas novas realidades laborais, não uma ideia que lhes diga para desistir”.

Após as intervenções dos dois palestrantes, o público presente no auditório do Centro Cultural Elvino Pereira colocou algumas questões e em jeito de conclusão o consenso de ser necessária regulamentação e distribuição mais efetiva da riqueza: “haja vontade política!”, foi defendido.
Gonçalo Marcelo é licenciado em Filosofia e doutorado em Filosofia Moral e Política pela Universidade Nova de Lisboa, interessado por questões no âmbito da Ética, da Filosofia Social e Política e da Teoria Crítica.
Steven Gouveia é doutorando na Universidade do Minho, a sua área primária de investigação centra-se na relação entre o método filosófico e o método neurocientífico, investigador de política, estética, ética e inteligência artificial. Tem já cinco obras publicadas, uma delas será apresentada durante o Festival de Filosofia de Abrantes.