Antes da Revolução dos Cravos, o movimento sindical era tolerado pelo regime e aproveitava para promover eleições para delegados sindicais dentro das empresas, multiplicando as ações e até as greves. Nuno Patrício Condeixa foi um desses homens que num concelho do interior do País chegou a protestar sozinho na fábrica Têxteis Mirrado, em Mação.
Por tempos do Estado Novo, sem atividade política democrática, o PCP era “o partido” quer para seguidores quer para quem o perseguia. De olhos postos na liberdade conquistada a 25 de Abril de 1974, os militantes comunistas, então na clandestinidade, falavam da organização política dessa forma e, 44 anos depois, continua assim.
Que o diga Nuno Patrício Condeixa, conhecido em Mação por Nuno Hilário, um resistente à ditadura numa terra de ideais (ou ideias) tradicionalistas, presente nas reivindicações da classe operária da fábrica de lanifícios Têxteis Mirrado, onde chegou a ser o único grevista. De sebenta e rádio debaixo do braço, sem medos, tentava mobilizar em vão para a luta sindical tolerada, até certo ponto, pelo regime.
Nuno Hilário, alcunha que herdou do pai, tem 82 anos e sem a boina à Che Guevara que um médico amigo lhe trouxe de Cuba, assume um ar de Pai Natal. Mas o vermelho que defende é outro, corre-lhe nas veias e na ideologia que desde muito novo abraçou, graças às conversas que ouvia em surdina entre o padrinho e outro ‘camarada’ sobre “uns folhetos informativos vindos da União Soviética”, guardados numa arca trancada a sete chaves, conta ao mediotejo.net.
Rapazola, com o exame da quarta classe feito, “enquanto não descobri o que eram aquelas folhas não descansei”, diz, a rir. E “as folhas” chegadas da Rússia mas escritas em português, versavam vários assuntos, desde os costumes aos trajes da “meninas da Sibéria”. No entanto, foram as expressões “luta de classes”, “igualdade” e “liberdade” que cativaram Nuno para a contestação ao regime de Oliveira Salazar.
O padrinho morreu novo, antes dos 30, e Nuno, como quase todas as crianças pobres, largou a escola para trabalhar na marcenaria do pai. O negócio mal dava para comer.
“Os jovens quando casavam lá mandavam fazer meia dúzia de cadeiras, um guarda-loiça e uma mesa de centro, coisa para 400 mil reis”. Por isso a avó, vizinha do gerente da fábrica de lanifícios Mirrado, abordou-o em rogado de favores que empregasse o neto, onde Nuno trabalhou até se reformar, para ter hoje “uma bagatela de reforma”, lamenta.
Certo dia abordou a porteira da fábrica “um senhor para falar comigo” já Nuno era viúvo e pai de quatro filhos pequenos. A mulher explicou ser impossível falar com um operário durante o horário de trabalho. O estranho esperou até às 17h00, até que saíssem portões fora os mais de 100 trabalhadores da Mirrado.
“Dirigiu-se a mim, perguntando-me se conhecia o Nuno Condeixa”. O próprio. O homem era o que agora se chama de criativo, desenhava os padrões dos tecidos, “um buchador da Covilhã, enviado do PCP, para me convencer a integrar o secretariado do sindicato dos trabalhadores dos lanifícios”, lembra Nuno.
Há décadas que caracterizava aquela região da Serra uma intensidade na tradição de luta operária bastante significativa. A Covilhã foi o primeiro centro têxtil do país a congregar os diversos ofícios do trabalho do têxtil numa única Associação de Classe fundada em 1907. Naquele dia tinha arriscado descer até Mação.

Apesar dos perigos, e da responsabilidade pelos filhos pequenos, a vontade de colaborar com um sindicato anticorporativo venceu a primeira batalha. Nuno Hilário deixou-se convencer e foi eleito para o secretariado do sindicato dos trabalhadores dos lanifícios. O ‘partido’ trabalhava organizado na clandestinidade, “procurava aqueles que eram comunistas” para dirigirem as lutas reivindicativas da classe operária. Permanecia, contudo, o silêncio “que em ditadura não se podia falar nisso. Era muito difícil”, recorda Nuno.
Mas a “malta falava mas mercearias, nas tabernas, ouvia-se na rádio” sem adesão a uma palavra mal colocada, que as gentes de Mação apoiavam outros valores. Enquanto isso, Nuno “reunia na clandestinidade” e passou “a assinar o Avante! ainda em formato pequeno”.
Que lhe permita a memória “só uma vez consegui mobilizá-los para a greve, já em democracia… viemos todos para a rua”, lembra. Na fábrica sofria ameaças de despedimento, mas não passou disso. Nuno nunca teve a PIDE à porta de casa. Atribui essa “benevolência” ao maçaense Eduardo Rodrigues Caldeira, que diziam ser homem próximo de Salazar e que “não permitia grande mossa nas gentes de Mação”.
Ainda assim, certa vez não ganhou para o susto. Além de delegado sindical, Nuno também foi bombeiro voluntário em Mação. Naquela época, o comandante dos bombeiros pertencia à Legião Portuguesa, criada em 1936, tal como a Mocidade. Por causa dessa militância, os rumores colocavam-no na qualidade de “elemento da PIDE”, conta.
Uma vez decidiram realizar o almoço anual dos bombeiros em Lisboa, aproveitando para visitar um barbeiro de Mação de seu nome Liró, internado no Hospital dos Capuchos. Em substituição do combinado, já na capital, o comandante “levou-nos à Cruz Vermelha de visita a Salazar que estava lá enfermo”.
Descreve o que viu quando chegou ao átrio: “muita gente, uma mesa ao centro e um livro de assinaturas”. Nuno, fardado de bombeiro, tal qual os companheiros, recusou assinar, para fúria do comandante.
Caminhou para a porta da rua com o sentido de apanhar um táxi que o levasse ao Hospital dos Capuchos. Os carros não paravam e Nuno esperava a qualquer minuto ser detido pela PIDE. Teve sorte. Finalmente, “mal entrei no táxi, o taxista perguntou-me: sente-se bem? Está tão branco!”.
E lá chegou mais calmo aos Capuchos, cujo diretor era também um homem do concelho, da aldeia de Carvoeiro, onde aguardou pelos bombeiros de Mação.
Chegaram mais tarde. O comandante Manuel Marques, irritado, quando viu Nuno Hilário disse-lhe: “se não fosse cá por coisas já cá ficavas”. Das “coisas” que o impediam Nuno não sabe explicar, mas o local de ‘estadia’ forçada situava-se por certo na rua António Maria Cardoso na sede da PIDE/DGS.
Como consequência acabou expulso dos bombeiros. Antes do 25 de Abril “quando foi inaugurado o quartel dos bombeiros, fomos todos condecorados”, referiu. Nuno recebeu o diploma enrolado e selado e a medalha rasurada. “Ainda fui protestar à Associação dos Bombeiros Voluntários Portugueses”, mas de nada lhe valeu.
O ativismo, no entanto, não esmoreceu. Integrou o centro do pessoal da fábrica Mirrado, o clube de futebol no tempo da FNAT (Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho), dinamizou bailes, teatro e cinema em Mação e hoje com os quatro filhos espalhados por Portugal e pelo mundo, vive com a irmã igualmente viúva, numa vida mais pacata longe da luta sindical de tempos ditatoriais.
Com a liberdade veio a alegria, nunca faltou a uma Festa do Avante!, onde ainda espera ir este ano. E reúne anualmente com os camaradas no almoço regional do 25 de Abril. “É sempre uma alegria quando nos juntamos!” afirma. E apesar das pernas não estarem dispostas a grandes caminhadas, dia 1 de Maio marcha-se até Lisboa, na celebração do Dia do Trabalhador.

*Entrevista publicada em abril de 2018, republicada em abril de 2019
É hoje uma próspera terra com boa indústria e comercio, não há desemprego, ganha-se bem, as pessoas são muito felizes.
Um abraço