A segunda edição do Encontro Internacional de Solidariedade Intergeracional teve lugar nos dias 8 e 9 de setembro em Mação, no auditório do Centro Cultural Elvino Pereira. Além de participarem profissionais de 14 países, este evento ficou marcado pela presença do juiz maçaense Carlos Alexandre que partilhou pela primeira vez um painel de debate ou similar com a ex-Procuradora Geral da República Joana Marques Vidal.
Do momento resultou uma conversa intimista, moderada por Vasco Estrela, presidente da Câmara de Mação, ainda que com alguns limites pré-estabelecidos fruto do cargo do conhecido ‘Super Juiz’, que tomou posse no início de setembro enquanto Juiz Desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa. Ainda assim, e com palavras bem medidas, foram deixadas algumas dicas sobre o atual sistema judicial português e em especial sobre a nova lei da droga, que entrará em vigor dia 1 de outubro.
Entre os painéis da tarde de encerramento deste encontro o tema “Comportamentos de risco e direitos humanos”, contando com a presença do Juiz Carlos Alexandre e de Joana Marques Vidal, ex-Procuradora-Geral da República e que atualmente desempenha funções no Gabinete do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional. Era para ter estado também presente o Juiz Conselheiro Armando Leandro, que acabou por não poder estar em Mação na tarde de sábado.
Vasco Estrela moderou este painel, e desde logo frisou estar entre “duas figuras que mais marcaram a Justiça em Portugal nos últimos 15 anos”.
Referindo-se aos “dois ilustres atores da Justiça portuguesa”, o autarca apresentou Joana Marques Vidal, Magistrada do Ministério Público e Procuradora-Geral Adjunta Jubilada, que entre outubro de 2012 e outubro de 2018 desempenhou o cargo de Procuradora-Geral da República. Desempenhou também entre 2002 e 2004 as funções de diretora-adjunta do Centro de Estudos Judiciários. Foi delegada da Procuradoria-Geral da República em diversas comarcas, foi vogal, como membro eleito, do Conselho Superior do Ministério Público, presidente da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), foi vice-presidente da direção da Associação Portuguesa para o Direito dos Menores e da Família e membro da direção e presidente da Assembleia-Geral do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público.

Foi, em outubro de 2018, agraciada pelo Presidente da República Portuguesa com a Grã-Cruz da
Ordem Militar de Cristo. “É portanto alguém na nossa sociedade suficientemente distinguida e valorizada por diversos setores”, notou.
Já apresentando Carlos Alexandre, disse conhecer suficientemente bem e por isso abdicar de se socorrer de uma cábula para o apresentar. “Desde 2004 até ao passado mês desempenhou funções no Tribunal Central de Instrução Criminal, antes disso esteve em diversas comarcas do nosso país, caso de Sintra e Oeiras, é desde há poucos dias Juiz Desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa. Além disso é um ilustre maçaense, um dos nossos melhores”, afirmou o edil.
E foi precisamente o juiz natural de Mação quem deu o pontapé de saída para esta conversa. Carlos Alexandre começou por frisar que seria a primeira vez que se encontrava num debate/cerimónia pública com Joana Marques Vidal, com quem diz ter tido “o privilégio” de interagir profissionalmente ao longo de alguns anos entre 2000 a 2018.
Começando por refletir sobre a adição ao trabalho, e confessando-se adicto nesse departamento, identificou-se como “modesto servidor do Estado de Direito, ou pelo menos do sistema judicial, desde 1985, quando entrei para o CES”, e notou que daqui por um ano fará 40 anos ao serviço da Justiça em Portugal, tempo suficiente para ver “muita gente com estas perturbações crónicas, com atos repetidos compulsivamente, repetidamente, e que aparentemente sendo-lhes recompensante, são no imediato causadores de grandes danos”, notou, referindo-se aos comportamentos gerados por perturbações aditivas.
Referiu o facto de hoje existirem coisas que começaram por ser fortemente censuradas, mas que são hoje aceites em muitos países, e geradoras de grande perplexidade nas comunidades. Outras começaram por ser, e ainda hoje são intoleráveis e puníveis criminalmente.
Dando conta que desde 2019 que não fazia declarações em público, confidenciou aos presentes sobre a sua situação derivado ao seu estatuto profissional.
“Tenho que medir muito bem as palavras que digo em público, porque não obstante o estatuto da sra. Conselheira estar um pouco esbatido pela jubilação, ainda assim, tenho a certeza que não deixará de ponderar isso, mas a mim assiste-me mais nesse dever em virtude de já ter tido duas investigações disciplinares por coisas que vim dizer a Mação e para Mação e por Mação. Sobre incêndios e sobre água. Nenhuma delas teve consequências, foram arquivadas, mas de qualquer modo, por uma palavra, certas pessoas podem perder o direito à palavra sequer”, afirmou, abrindo o jogo perante a plateia e meios de comunicação social locais e nacionais presentes na sessão.

“Estou hoje a quebrar essa regra, mais uma vez em prol de Mação e por Mação”, assumiu. A regra foi “você nunca mais abre a boca em público sobre assuntos que digam respeito a Direito ou à sua vida profissional”, citou o juiz, que disse ter aceite a “exortação” e que, por isso, desde 2019, que não tece qualquer consideração em público, nem sequer diz bom dia. “Quando passo talvez faça assim com a mão, um gesto que me veio de miúdo”, confessa.
“Aqui resolvi quebrar essa regra porque há um ano atrás fui convidado pelo Luís Duarte, que é meu médico, que me acompanha sempre que necessário nas áreas da sua especialidade, a ajudar a difundir a mensagem dele, que vem sendo feita através da Mala de Prevenção, mesmo perante os poderes instituídos, sejam eles de direito ou de facto”, disse.
O juiz, que foi mantendo uma conversa “intimista, com base na experiência” foi-se dizendo “perplexo” sobre alguns temas e situações da sua experiência profissional, uma vez que contactou com processos de terrorismo, tráfico de droga, crimes de sangue e criminalidade económico-financeira, mas que também incluíam situações relativas a adições.
“Aconteceu-me várias vezes, e nos últimos dois anos, (…) cada vez mais me deparei com pessoas em fim de linha, que tinham acabado por fazer mal aos familiares, aos amigos, voluntaria ou involuntariamente, porque se colocaram numa situação em que, após consumos ou após quer seja substâncias psicotrópicas, quer sejam socialmente toleradas como o álcool, acabavam por cometer grandes desastres, overdoses, e houve pessoas que não foram acompanhadas nem após acidente automóvel, nem após acidente traumático. Estavam todos de tal maneira inconscientes que não conseguiam motivar-se a providenciar socorro”.
Carlos Alexandre focou que “as tomadas de posição e medidas de coação não saem da cabeça de qualquer magistrado judicial” e que “a lei vem apertando esses critérios e é preciso fazer um trabalho de filigrana jurídica para se perceber onde está a fronteira entre quem deve continuar em liberdade e quem deve ser privado dela”.
“Sinto-me constrangido e preocupado com o facto de terem suscitado algumas dúvidas sobre a interpretação dos diplomas acabados de dar à promulgação, que vêm colocar um problema que é inverter um pouco a presunção”, referiu, voltando a sua intervenção para a nova lei da droga publicada em Diário da República que vem descriminalizar as drogas sintéticas e que faz uma nova distinção entre tráfico e consumo. Vai entrar em vigor a 1 de outubro.
“Antigamente dizia-se que quem tivesse material em sua posse para mais do que dez dias, era tráfico. Hoje em dia, não sei porque razões, são razões que me escapam, talvez os ilustres clínicos tenham avançado mais do que aquilo que eu saiba, talvez as razões estatísticas tenham motivado que o enfoque deixe de ser o dos 10 dias. Talvez porque as pessoas socialmente aceitam que se tenha mais do que 10 dias em casa. Já me chegaram a falar em 200 gramas…”, exemplificou.
O juiz referiu-se ainda aos cerca de 50 juízes de instrução criminal de Portugal que devem estar com as mesmas dúvidas que lhe surgem.
“Inverter-se a presunção e a norma dizer, como diz agora, podia citá-la, realmente o que for a mais do que 10 dias não é ipso facto causa de tráfico. Terá que se provar que não é apenas para consumo. Que o sujeito em causa tem mais elementos que concitem à consideração de que está em curso um crime de tráfico, do que a simples detenção de material constante das tabelas (…) A minha pretensão é saber como é que – eu agora não vou fazer mais interrogatório nenhum, a não ser extraditados, já me disseram isso e devagar. E devagar. Vá lá para o seu gabinete e espere, que os processos lá hão-de ir ter”, prosseguiu.

Carlos Alexandre falou ainda da sua realidade, dando conta que “nem todos têm gabinete no Tribunal da Relação de Lisboa. São 150 magistrados e só há 50 e poucos gabinetes. Pedi o favor, porque não conseguia sair de uma adrenalina – tinha que ser medicado ali pelo Dr. Patrício – de ir todos os dias para o tribunal, 10 ou 12 horas, e de repente dizerem para ir para casa e ficar lá sentado à espera que viesse a carrinha de ronda. E portanto fui dos que pedi gabinete”.
Não querendo usar o termo “perplexo”, indicando que essa palavra nos últimos 19 anos teve consequências e deu azo a interpretações, Carlos Alexandre disse estar “preocupado, angustiado” com o que virá da aplicação da nova lei da droga e referindo-se aos prazos de detenção. “Tenho alguma perplexidade (…) se os tribunais forem chamados a pronunciar-se em 48 horas mediante indivíduos ou grupos”, notou.
“Se a dinâmica for por grupo, há-de ser muito difícil parar estas adições, porque todos eles terão muito pouco. Se estão a atuar em grupo e coautoria isso depois tem de ser analisado e carece de muita prova, como já hoje carece, mas se não houver critério mais ou menos concreto, que era este que tinha sido encontrado pelos clínicos, que seria considerado quem tivesse mais do que isso, seria considerado forte indício de tráfico. Agora é considerado que não se pode presumir se tiver mais. A pessoa até pode ter capacidade económica para comprar 100 gramas de uma só assentada de drogas duras, pesadas e sintéticas”, disse, afirmando não perceber as razões.
“Não sei bem e não consigo perceber se é para parecer bem nas estatísticas. Gostava que isto fosse clarificado”.
Mostrou preocupação sobre como se sairá da atual situação vivida na justiça e na sociedade no que toca ao tráfico de droga e adições, e disse tratar-se de “preocupação de um prático que foi para Évora em 1986, altura em que uma pessoa com substâncias em Évora dava que pensar ao Dr. Manuel Cipriano Nabais que é hoje Conselheiro Superior Jubilado, com 81 anos, e que me transmitia isso”.
Por seu turno, tomou a palavra Joana Marques Vidal, sobre quem Vasco Estrela lembrou que em 2018 não viu o seu mandato renovado enquanto Procuradora-Geral da República e que notou ser alguém que “vale a pena ouvir pela experiência que tem e pelo currículo que tem, e pela enorme resiliência e capacidade de trabalho à frente da Procuradoria-Geral da República”.
Mencionando ter tido alguma dificuldade em estabelecer como pegaria neste tema para a sua intervenção, uma vez que o tema é amplo, mas que Luís Patrício lhe terá indicado que falasse sobre liberdade, Joana Marques Vidal disse que falar de direitos humanos é algo abrangente, mas falar em comportamentos de risco e liberdade ainda seria mais complicado.
Assim, trouxe reflexões que partem da importância dos direitos humanos e do modo como nas sociedades vamos vivendo, construindo ou desconstruindo atualmente, como nos colocamos perante essa questão.
Joana Marques Vidal disse que a questão do retirar a liberdade e limitar de que modo for é extremamente complexa.
Admitindo alguma “discordância” em relação ao que disse Carlos Alexandre, a ex-Procuradora Geral da República assumiu quanto à apresentação dos detidos ao juiz, e enquanto magistrada do Ministério Público (MP), saber bem “quais são as dificuldades do MP conjuntamente com os órgãos de Polícia Criminal, para recolher prova suficientemente sólida e profunda para que seja presente ao juiz para poder seguir, quando está em causa a manutenção ou não da detenção/prisão preventiva ou mesmo da prisão”.
Quanto aos prazos, pensa que é importante não estender os prazos de detenção para apresentação ao juiz. “E por isso, sempre defendi, mas face aos sistemas jurídicos estrangeiros que têm prazos muito mais alargados, que o nosso prazo é um prazo razoável. Uma limitação de liberdade de 48 horas é muito. Depois, se houver fundamentos, será prisão, mas pode não haver fundamentos naquele momento. Uma detenção 48 horas, que não seja confirmada por um juiz, é muito. E eu, magistrada do Ministério Público, considero que é essencial uma apreciação judicial para confirmação ou não da detenção”, defendeu.

“A pessoa que está acusada tem também os seus direitos, ou seja, não perde os direitos pelo facto de ser arguido, como não os perde quando é acusado, como não os perde quando é eventualmente preso”, frisou.
Disse não se pronunciar quanto à legislação mais recente sobre a lei da droga, referindo não a conhecer suficientemente, mas disse comungar de algumas das “perplexidades” de Carlos Alexandre, sendo que tem conversado com procuradores que também estão preocupados com o modo como vão ou não conseguir reagir enquanto magistrados do Ministério Público ao fenómeno do consumo de drogas sintéticas e à sua expansão em gente muito nova.
“Estão extremamente preocupados com o modo como podem reagir”, reconheceu.
A Procuradora fez também menção aos consumos e vícios em gente muito nova, relevando como essencial a existência de respostas noutras áreas, nomeadamente na saúde.
“Houve tempos em que acho que as respostas estavam mais bem organizadas, agora talvez se sinta outra vez alguma dificuldade. As redes de apoio, de suporte e intervenção social e da saúde como resposta têm que atuar em profunda articulação com os tribunais, ou o contrário (…) Reconhecendo que a rede é muito frágil e de difícil acesso”, referiu.
Já quanto aos direitos humanos, “construídos à volta da ideia essencial da dignidade da pessoa humana”, Joana Marques Vidal salientou que “os direitos fundamentais foram sendo sucessivamente alargados e foram tendo leituras cada vez mais elaboradas que nos remetem hoje para a ideia de direitos humanos que evoluem da ideia meramente individual para se olhar para os direitos humanos dos seres enquanto parte essencial da comunidade”.
Falou nos direitos essenciais, como o direito à água e o direito ao ambiente, tendo em conta que se tem estado a evoluir para sociedades em que as alterações climáticas são extremamente importantes.
Também com perplexidade, Joana Marques Vidal disse que se “olharmos para aquilo que é incongruência do ser humano e também dos decisores políticos e dos sistemas político-económicos em que vivemos, perante todas estas catástrofes. No momento em que ocorrem todas as pessoas sentem e os diagnósticos fazem-se. Há muitos diagnósticos feitos e o que é preciso fazer também está delineado. A questão é que não se faz. E passam-se anos, e anos e anos, até acontecer outra vez e nós parece que andamos numa roda que não conseguimos sair dela para construirmos algo de útil”, criticou.
Exemplificou com o caso das cheias nas cidades, “provocadas muitas delas pela construção desenfreada e errada que se fez em leitos de rios. Já é velho, já se sabe que é assim, já está estudado, o que é certo é que há muitos sítios onde se continua a construir em leitos de rios. É uma questão bastante problemática, a existência dos direitos e a consciência dos problemas e não termos força enquanto sociedade para ultrapassar”.
Para a magistrada “o grande desafio é continuarmos, mantendo a capacidade de respeito pelos direitos humanos em sociedade, sem cairmos na tentação de, para reafirmar os direitos, excluir aqueles que são diferentes, aqueles que são os outros, por questões muitas vezes de medo, de receios e dessas sensações de insegurança com a qual somos confrontados”.
Partilhou ainda a sua sugestão de se “procurar caminhos que têm necessariamente que ser caminhos de articulação, de construção de redes colaborativas, redes solidárias, caminhos em que se reafirme o respeito pelo ser humano, caminhos em que se reafirme a questão da participação cidadã desde as suas pequenas comunidades até à participação cidadã nas comunidades a nível internacional em que estamos inseridos e que por vezes nos esquecemos”.
Em jeito de resumo, Vasco Estrela deu conta de duas intervenções “de algum modo parecidas” destes dois vultos da Justiça portuguesa.
Referiu-se à postura de Carlos Alexandre, que optou por uma intervenção “intimista” onde “refletiu em voz alto sobre alguns dilemas que tem, e a Dra. Joana de alguma forma o acompanhou nomeadamente ao que diz respeito aos direitos humanos e às dúvidas que muitas vezes assistem a quem tem de tomar decisões difíceis, nomeadamente no caso concreto da prisão preventiva ou prisão dos cidadãos”.
“O Dr. Carlos Alexandre teve uma visão muito prática daquilo que foi o seu dia-a-dia até à segunda-feira, dia 4 de setembro, como bem referiu, não deixou escapar um víciozinho, ainda não vestiu a pele de Desembargador, ainda está com a pele de jurisdição criminal (…) é um sinal que ainda não está totalmente convencido da nova função que tem – será que algum dia vai estar, isso é outra questão…”, referiu, em jeito de brincadeira.
“Fica também registado para memória futura a discordância entre o Juiz Carlos Alexandre e a senhora Procuradora relativamente à questão dos prazos, sublinhar que nem sempre estiveram de acordo no passado, e também aqui, no dia de hoje”, disse.
Por outro lado frisou que Joana Marques Vidal focou a questão dos direitos humanos e direitos fundamentais, manifestando “alguns estados de alma relativamente a algumas questões concretas da sua vida profissional, e foi muito assertiva na defesa destes direitos. Deixou também pistas de como podemos, eventualmente, ajudar a ultrapassar alguns constrangimentos que temos, fez o apelo às redes e a importância que têm também no tratamento da doença e dos doentes, aqueles que apareciam perante vós com estes problemas relacionados com adições e da necessidade de intervenção de outros profissionais, deixar tudo à Justiça é manifestamente pouco, e fica também aqui esta reflexão”.

“Não posso deixar passar em claro aquilo que disse, e bem, de Portugal ser um país de diagnósticos, de fazermos diagnósticos e depois pouco concretizamos para a resolução dos problemas que esses diagnósticos evidenciam, referiu o caso concreto dos incêndios florestais, poderíamos referir muitos outros”, notou.
“Permitam-me”, continuou Vasco Estrela, “até porque estou na presença de vários, de referir a vergonha que o nosso país hoje atravessa relativamente aos médicos, nomeadamente aos de saúde familiar e aos cuidados primários de saúde, onde em territórios como Mação é uma perfeita vergonha o que aqui acontece e não podemos deixar de responsabilizar todos aqueles que tiveram responsabilidades ao longo destes anos e também aqueles que, em 2015 e 2016, nos prometeram que em dois anos resolviam os problemas dos médicos de família e vamos a caminho de 2 milhões de portugueses sem médicos de família. É um bom exemplo, como provavelmente os diagnósticos já estavam feitos, se não estavam feitos tinham tempo de os fazer, e de achar soluções para os mesmos”, afirmou o autarca.
Carlos Alexandre acabou ainda por referir ter feito análise comparada com outros sistemas judiciais, mas diferenciou entre detenções em flagrante por crime de tráfico de rua e de ofensas corporais, em que entende que em 48 horas há muito tempo para coligir a prova indiciária necessária a se tomar uma posição.
Contrapôs como exemplo, a casos de violação em Lisboa, “em que o Ministério Público e a polícia têm 48 horas para fazer uma apresentação minimamente sustentada que não se baseie só na palavra contra palavra”, e nisto disse que atualmente “ser-se testemunha em Portugal é um grande risco e gera prejuízo económico porque as pessoas têm que ir n vezes a tribunal e não resolvem os seus problemas, nem resolvem o problema dos outros. Às vezes vão lá testemunhar e por deficiência do sistema, que me penitencio também por fazer parte dele, existem neste momento umas centenas de milhares de atos adiados nos últimos meses. As testemunhas vão uma vez e outro e porventura nem há quem lhes aceite a presença para dizer que o Tribunal está fechado”.
O “Super Juiz” foi mais longe na partilha, denunciando os problemas internos do sistema judicial em Portugal, e contou que esteve “num tribunal onde não tinha domínio sobre a luz, não tinha domínio sobre o ar condicionado. Se eu quisesse parar não conseguia. Não tinha interruptor para apagar ou acender a luz. Era preciso uma autorização especial. Há várias coisas que influem no funcionamento dos tribunais e não há-de ser só em Lisboa, há-de ser no país todo, que leva a que as pessoas cada vez mais se afastem do sistema de justiça”.
Dando conta das suas dúvidas sobre estas matérias de prazos, o juiz disse ser para si “uma falácia dizer-se que as pessoas vão analisar o resultado de todas essas buscas de modo a poderem tomar uma decisão em consciência em 48 horas” quando chegam a existir centenas e centenas de páginas e materiais para apreciar.
“Não fui um defensor de que devem ser mais de 48 horas ou 72 horas ou uma semana. Estamos aqui a girar sempre em torno de jogos de palavras; uma coisa é apresentar a pessoa em 48 horas, fazê-la chegar nem que seja sob toque de sirene. Nem todas as circunstâncias são iguais, mas algumas carecem de prova laboratorial ou técnico-científica, e é muito difícil obter nessas 48 horas até à apresentação, porque as pessoas ou estão hospitalizadas, ou estão numa situação em que não conseguem reagir ao trauma, há muitas vicissitudes”, concluiu.
Por outro lado, e dando por terminada a sua intervenção, disse que entrará em “fase contemplativa daqui por 29 meses” e que ao longo de 38 anos ao serviço nos tribunais, “a intervenção cívica em público ou em sítios escrutináveis é fácil de constatar, eu tive duas experiências e ambas me correram mal, esta é a terceira. A prova de que não abdico, de quando o motivo é válido, do meu direito de participação é o facto de estar aqui sentado hoje”.
“Mas não posso ignorar que a minha circunstância não é comum, nunca será comum pelo nível de informação a que acedi, e devo partilhar com as senhoras e os senhores que fui convidado aqui há uns meses atrás, para integrar os órgãos sociais da Misericórdia de Mação, uma coisa tão importante mas tão simples”, notou.
Carlos Alexandre preside à Assembleia Geral da Santa Casa da Misericórdia de Mação entre 2023-2026, e disse que foi necessária autorização do Conselho Superior de Magistratura para tal.
“Em matéria de participação e de exercício do direito de reserva os magistrados têm grandes restrições, quer estejam jubilados quer estejam no ativo. Claro que os que estão no ativo o enfoque é mais direcionado, e qualquer palavra que se diga, ou que pelo menos certas pessoas digam, é imediatamente escalpelizada para ver quantos sentidos pode ter”, indicou.
“Eu não abdico da minha participação social, quando posso e quando sinto apelo que devo fazê-lo. E então pela minha terra, como disse, ou pela água, ou pelo lume, cá estou. E pelas pessoas, porque isso também tem a ver com as pessoas que cá vivem”, acrescentou, notando que “algumas coisas que aqui disse hoje foram perfeitamente insensatas, eu se tivesse bom senso não as teria dito (…) mas como tenho o coração ao pé da boca, disse isto tudo que disse. Agora há-de ser o que for”, terminou.
A tarde culminou com a apresentação do livro “Droga Desmistificada”, uma obra científica com coordenação de Luís Patrício, contando com a apresentação da jornalista Isabel Risques e também com participação dos seus coautores oriundos de seis países.
Luís Duarte Patrício, médico psiquiatra, natural de Mação, foi o mentor e promotor da iniciativa, sendo que a sua especialidade é a intervenção em patologias aditivas no âmbito nacional e internacional. É fundador do projeto Mala da Prevenção.
Nesta segunda edição do Encontro Internacional de Solidariedade Intergeracional, uma iniciativa que em 2018 arrancou com intuito de mostrar solidariedade para com os territórios devastados pelos incêndios florestais de 2017 e 2019, nomeadamente o concelho de Mação e os concelhos de Gavião, Sardoal e Abrantes, Luís Patrício fez um balanço dos trabalhos e deu conta da missão da sua “Mala da Prevenção” que continua a aguardar reconhecimento oficial por parte das entidades tutelares do Governo.
“Tivemos a tragédia dos incêndios, e no último grande incêndio em Mação fiz um direto nas redes sociais, e de forma mais evidente, com a impressão dantesca das imagens os parceiros estrangeiros dissessem ‘Vamos aí que está feio, para dinamizar a economia, uma forma de ajudar’. Encher as pensões e alojamentos, fazer refeições em restaurantes, e cada um paga o seu e oferece aquilo que sabe, como médico, professor, etc, a quem nos aceitar”, começou por explicar, em declarações aos jornalistas.

“A ideia é juntar pessoas de várias gerações, para que haja um contínuo, no respeito e na valorização do que é a evolução da vida”, notou.
Na primeira edição participaram profissionais vindos de nove países, incluindo da Austrália, pertencentes a uma rede de profissionais das áreas da Pedagogia, da Educação e da Saúde, e mesmo em tempo de pandemia foram sendo promovidos encontros internacionais online no sentido de “estar na verdade da realidade e não com os filtros das verdades das conveniências, estamos fora da caixa”, explica Luís Duarte Patrício.
Passada a pandemia covid-19, conjugaram-se as vontades para que se realizasse o segundo Encontro de Solidariedade Intergeracional, com base no critério “quem quer vir e o que quer dar” e dependendo de “onde são aceites”.
“Contrariar a interioridade e a miséria da tragédia dos incêndios que existiram e que ainda existem, em boa parte por questões ligadas à crença da Educação, à crença de direitos de cidadania e ao mau uso da liberdade”, referiu.
Esta rede privilegia o trabalho com o poder local, crendo que quem está no local é que sabe o que lá se passa. “Até porque a prevenção começa a nível local. Na minha cabeça, na minha família, e depois vai crescendo e alargar da família para a rua, para a paróquia e para a freguesia, para o concelho, e vai alargando. Se ficamos num grande palavreado de âmbito internacional e nacional estamos a fomentar uma estratégia que se diz geopolítica e económica, que está muito distante da estratégia que nós fazemos, sociossanitária”, começa por explicar.
Pegando no exemplo do consumo do álcool, Luís Patrício notou o investimento que é feito na educação e prevenção do abuso do álcool e o investimento que é feito na estratégia de abusar do consumo de álcool, e quem nos dirige, desde há muitos anos, passou pelas experiências aplaudidas das grandes bebedeiras na Queima das Fitas, nas Latadas, dos rituais, como se fosse obrigatório fazer uma intoxicação aguda. Quem não fizer uma intoxicação aguda não é digno, não é homem, não é mulher… E como o nível de informação é muito baixo, a ignorância é muito grande, temos agora as próprias mulheres a competirem com o que os homens consumiam.
“Mas as pessoas não sabem que a nossa irmã e a nossa mãe não têm a mesma capacidade de metabolizar o álcool que tem o nosso pai e o nosso irmão. Os japoneses também não. Porque o organismo da mulher e dos japoneses não tem um determinado tipo de enzimas que ajudam a metabolizar o álcool. Além de outras caraterísticas. O dano que faz uma unidade ou duas ou três de álcool numa mulher é maior”, menciona.

“Não haver risco é não beber. Moderação significa que, por dia, o homem pode beber até duas unidades, e a mulher uma unidade, sendo que se deve descansar um ou dois dias por semana. Uma unidade é aquilo que bebemos quando pagamos uma taça de vinho, meio whisky, meio vodka, ou uma imperial. Tecnicamente diz-se que anda à volta de 8 a 10 gramas de álcool. Se eu tiver a noção que passando das duas unidades/dia entro no patamar de risco elevado, e se for mulher tomar mais do que uma por dia então terá mais risco de cancro, de demência, etc”, afirmou o médico psiquiatra dando conta que o álcool “produz mais de 60 doenças, entre elas a impotência, demência e dependência, sendo que se instalam devagarinho”.
“E há uma doença provocada pelo álcool, de instalação rápida, e que é muito aplaudida. Que é a bebedeira, uma intoxicação, e que é promovida socialmente”, indicou.
Luís Duarte Patrício dá conta que “a relação com a bebida é uma coisa que se aprende. É isso que procuramos ensinar”. Todas estas problemáticas estão integradas no projeto, já consolidado mas que ainda aguarda a sua expansão, que é a Mala da Prevenção.
“Está consolidada, e vai onde é convidada. À cadeia, ao bordel, à escola, e depois adapta a linguagem ao local onde está. Foi à Assembleia da República e ao Ministério da Saúde apresentar esta “Mala” e diz o seu mentor continuar à espera que “alguém avalie para que presta” e onde pode ser útil a nível nacional.
O projeto já foi até muitos locais do país e das ilhas da Madeira e Açores, tendo voado até Cabo Verde, América Latina, Espanha e outros.
“As pessoas adoram quando veem isto a funcionar”, disse, mostrando o menu que contém 100 temáticas dentro da prevenção do abuso das substâncias psicoactivas e dos comportamentos de risco, cuja apresentação e linguagem depende do grupo-alvo/público.
“O médico, o enfermeiro, o educador ou professor que fizer uso destes materiais terá de saber adaptar-se ao seu público. Por exemplo, se optar por falar sobre o abuso dos jogos online, sobre álcool, tabaco, canábis, comportamentos sexuais de risco, sobre velocidade, sobre falta de respeito com os idosos… Apesar de as pessoas associarem esta mala à temática do consumo de droga, é a mala da promoção da saúde perante comportamentos de risco”, notou.

“É o ajudar a pensar e refletir sobre o que usar, o que deitar fora, o que escolher… ajudar a crescer. Nós, até aos 20 anos, andamos cá para ser ensinados a crescer, a pensar e a escolher, dos 20 aos 40 é bom que sejamos ajudados a amadurecer – às vezes encontramos pessoas com 30 e tais continuam adolescentes – agora que estou maduro, dos 40 aos 60, é bom que crie qualquer coisa, para que fique, não seja só um gastador. Dos 60 aos 80 temos de ter a arte de aprender a envelhecer, porque quando chegarmos a velhos, dos 80 aos 100, a arte é saber sobreviver. Depois dos 100… haja Deus”, disse, sorrindo.
Na sessão de encerramento o autarca Vasco Estrela relevou “a substância do que foi dito ao longo dos vários momentos do encontro”, mas destacou a postura e prontidão de Luís Duarte Patrício que “consegue congregar à sua volta tantas pessoas, de tanto valor, o espírito que consegue imprimir, e de facto a motivação que a todos transmite”.
“Vou, pela quarta vez, elogiá-lo em público, agradecer o facto de ter trazido para Mação este encontro. Agradecer-lhe profundamente o facto de uma vez mais ter trazido a Mação pessoas de enorme valor, de 14 países, termos momentos culturais interessantíssimos, termos tido a oportunidade de ter entre nós a Dra. Joana Marques Vidal, o Dr. Carlos Alexandre, tantos e tantos profissionais na área das toxicodependências que seguramente muito contribuíram para a valorização deste encontro. Foi por isso uma honra, uma vez mais, Mação receber tão ilustres pessoas e foi uma honra, Dr. Luís, participar mais uma vez num desafio por si lançado. Como disse no cineteatro, maçanico Patrício, muito obrigado”, concluiu o autarca, dirigindo-se ao médico psiquiatra que trouxe até às suas raízes mais um evento de cariz solidário e internacional.