José da Costa Gameiro é hoje um dos exemplos da tradição oleira que marca a Asseiceira, no concelho de Tomar. Foto: José Paulo Marques

Nascido numa pequena propriedade onde o avô possuía um forno, José da Costa Gameiro mudou-se aos 13 anos para a Asseiceira, na casa que permanece na sua história e que ainda hoje habita. A sua infância seguiu a tradição do passado e foi marcada pelo trabalho que realizava após terminadas as atividades letivas.

“Eu saía da escola e ia fazer os rolos para dar barro. Antes disso, vinha a casa e lanchava, era ali nas figueiras. Era preciso que o dono não visse se não era corrido à pedrada”, conta, entre risos.

Na olaria com o pai, José conta que cedo começou a ajudar no processo de produção das talhas, os típicos potes de barro utilizados para o fabrico de vinho. Terminado o serviço, havia ainda tempo para, junto dos irmãos, ser criança e brincar com o barro.

A tradição oleira da Asseiceira refletiu-se nas vivências de José Gameiro, que afirma que a sua vida foi sempre junto ao barro. “A tradição do barro era do meu avô. Depois os meus tios e os meus irmãos… uns foram para pedreiros, outro trabalhava na Matrena, na fábrica do papel e eu fiquei sozinho com o meu pai aqui. Foi sempre assim”, conta.

Seguindo as pisadas do pai, José Cuco recorda os primeiros passos da sua vida de oleiro, profissão em que ingressou pelo gosto pelo barro, mas acima de tudo pela necessidade de “ganhar algum”, numa época em que não havia tempo para estar parado.

“Quando eu casei o meu pai entregou-me isto. Eu e a minha mulher ficámos a fazer púcaros para a resina”, lembra José ‘Cuco’. No alto dos seus 88 anos, o mestre oleiro recorda um período difícil, marcado pela perda de valor da resina, situação para a qual a solução passou pela dedicação ao fabrico dos potes de barro.

“Mais tarde, como a resina já não dava, comecei a fazer as talhas. Eu já as fazia, ainda o ajudei [o pai] a fazer talhas. Houve ali uma altura em que não se vendia, por isso é que parei. Já há 40 anos, talvez. Ardiam os pinhais, as fábricas pararam e ficaram a dever-me muito dinheiro. Depois parámos”, lamentou.

“Só uma vez carreguei 70 mil púcaros para uma fábrica ao pé de Alcobaça, em S. Martinho do Porto. Normalmente o homem vinha logo pagar, mas não veio. Eu disse para a minha mulher: ‘vamos a S. Martinho do Porto’. Cheguei lá à fábrica e diz o homem: ‘veio na altura certa, nem mais uma hora nem menos uma hora. Isto faliu’. E já eram 300 contos naquele tempo. Deu-me um cheque para ir ao banco ver se lá estava o dinheiro e estava. Se eu me demoro um dia ficava sem ele. Nessa altura fiquei sem muito dinheiro”, recorda José Gameiro.

Quanto ao que mais gostava de fabricar, conta que era aquilo “com que se ganhava mais”. “Primeiro eram os púcaros e, mais tarde, passaram a ser as talhas, que eu também gostava muito de fazer”, acrescenta.

Para além dos púcaros e das talhas, principal fonte de receitas da família, houve ainda espaço para o fabrico de peças com uma finalidade culinária, como os tachos de barro, as panelas, assadeiras.

“Fazíamos para se ganhar mais algum, porque muitas vezes os púcaros só se vendiam no inverno e tínhamos meses em que não trabalhávamos com eles. Fazia-se loiça para a cozinha, porque não havia coisas como há hoje em dia”, explica José.

Antigamente as dificuldades moldavam a resiliência, afirma o oleiro. “Andávamos descalços, passávamos por cima de tudo e não picava nada. Agora, se entra um bocado de areia para os sapatos já reclamamos”.

José Gameiro

As paredes que ainda hoje sustentam aquele que foi o seu espaço de trabalho durante décadas espelham o esforço e o árduo trabalho envolvido na sua construção, processo em que o oleiro desempenhou um importante papel ao lado do progenitor. “Ajudei muito o meu pai, foi ele que construiu tudo isto e eu ajudei. O forno que vemos aqui foi todo feito em terra”.

Para além da técnica e precisão demonstradas no ramo da olaria, José Gameiro foi sempre um homem “dos sete ofícios”. O gosto pelo trabalho em madeira surgiu mais tarde mas é, ainda hoje, um dos seus favoritos. “Toda a vida fui doido… Gosto de fazer de tudo. Tenho trabalhos muito bonitos feitos em madeira”.

Num período em que as necessidades eram muitas e sentidas a diversos níveis, José Gameiro conta que não se mediam esforços para as satisfazer.

“Nós precisávamos de trabalhar para ganhar algum… naquele tempo não havia dores, não se olhava ao cansaço, não havia nada. Íamos ao mato buscar lenha para o forno, eles traziam o desperdício da resina para o fabrico do pez, mas tínhamos que lhes vender os púcaros a eles”, explicou o mestre.

“Nós precisávamos de trabalhar para ganhar algum… naquele tempo não havia dores, não se olhava ao cansaço, não havia nada”

José Gameiro

A necessidade de estabilidade familiar revelou-se numa vida de trabalho que não dava tempo ao descanso. “Era sempre. Nos púcaros era dia e de noite junto com a minha mulher… ela ajudou-me muito”, sublinha.

Embora não fosse a principal ocupação da esposa, José recorda a dedicação e o árduo trabalho de Júlia Gameiro, com quem escolheu casar. “Ajudava muito. As minhas filhas já têm 59 anos e foram criadas aqui desde pequeninas. Arranjei um berço de madeira e vínhamos para aqui de noite trabalhar com elas ainda pequenas”.

Aos 29 anos contraiu matrimónio, do qual viriam a nascer duas filhas. “A minha esposa era daqui de perto, era criada de servir em Tomar… A mãe dela tinha 12 filhos e a minha mulher casou bastante nova, aos 19 anos”, refere.

José Gameiro junto à esposa, Júlia Gameiro, com quem casou aos 29 anos. Foto: José Paulo Marques

As mãos, já calejadas, são miragens de uma dura vida de trabalho. Na olaria onde José Gameiro ajudou o pai a construir o forno, que ainda hoje perdura, os dias começavam cedo. Feitas as talhas, eram deixadas a secar num processo que era frequentemente moroso.

No verão, o tempo ajudava à secagem, mas era também o principal responsável por deitar abaixo horas de trabalho. “No verão elas secavam rápido, mas também se partiam facilmente. Era um instante enquanto se partia tudo”.

Para garantir que havia comida para pôr na mesa, dividiam-se tarefas e havia que arranjar tempo para colher aquilo que a natureza dava. “A vida era assim… no tempo da azeitona íamos apanhar os bagos da azeitona para ter alguma coisa para comer. Não é como hoje, não havia reformas nem nada. Era assim que passávamos”, recorda José.

Os dias começavam cedo e terminavam já depois do sol-posto. As tarefas, essas, eram dificultadas pela manualidade que a falta de ferramentas exigia. “Não haviam tratores e nós tínhamos de ir buscar o barro à entrada no Grou. Ali é que era o barro bom”, refere.

Mas qual a diferença entre o barro bom e o restante, perguntamos. O oleiro explica que a Asseiceira é uma terra “rica em barro”, mas existem barros de diferentes qualidades. “O barro gordo é melhor porque é mais fácil de trabalhar”, observa.

O barro do cimo era retirado e trazido até à olaria onde, posteriormente, seria trabalhado à mão. Retirado em bruto, ao barro era adicionada água num barreiro [um buraco onde era deitada água para deixar o barro mais macio]. “Fazia-se um rolo, amassava-se, amassava-se e com uma foice, em cima de uma bancada, cortávamos o barro, para tirar as raízes e para depois fazer cântaros”, recorda.

Um processo moroso e manual que veio a ser impulsionado pelo surgimento de equipamentos como as atafonas, que vieram revolucionar o panorama da olaria. Estas assemelhavam-se a um depósito de 200 litros, com um ferro ao meio, sobre o qual um animal rodava a fim de ir passando o barro.

Aos 88 anos, e oficialmente reformado da profissão, José Gameiro conta que nunca abandonou a olaria. Da vida e de um passado longínquo, afirma ter saudades de tudo. “Tenho muitas saudades, de tudo… mas não posso já. Na roda ainda trabalho um bocadinho. De vez em quando vou lá chatear o José Miguel [oleiro vizinho que mantém uma fábrica na Asseiceira]”.

“Tenho muitas saudades, de tudo… mas não posso já. Na roda ainda trabalho um bocadinho”.

José “Cuco”

Agora, dedica-se à madeira. “Gosto de fazer tudo. Tenho vendido muitas rodas para o barro. Demoram mais ou menos um mês ou quinze dias a ficar prontas… faço aos bocaditos, não é todo o dia. Já fiz muitas peças em madeira. Rodas para o barro também já fiz várias. Arremedia-se sempre, às vezes é preciso um banco ou uma cadeira e lá vou eu fazer”, conta entre risos.

A juventude corre ainda pelo espírito e pelas veias daquele que aos 88 anos se descreve como incapaz de estar parado. “Além de tudo isto tenho também a minha horta”, refere o oleiro.

Do passado recorda muitas histórias e peças que produziu e o marcaram particularmente, mas afirma que não ficava com as peças. “Parte delas davam-se. As minhas filhas têm peças dessas, com datas e tudo”.

Embora todas as peças moldadas pelas suas mãos o marcassem de alguma forma, algumas eram particularmente especiais, como as que produzia para aniversários e acontecimentos da região, nomeadamente as lembranças que eram atribuídas nos festivais de folclore e que ainda hoje recorda produzir com precisão.

Nas talhas já não consegue pegar, mas nem por isso deixa de colocar as mãos na “massa”. Com ajuda, José Gameiro continua a viajar ao passado e a fabricar aquilo que foi a sua vida e aprendeu a fazer ao longo de uma extensa jornada de trabalho. “Tenho de ter ajuda, mas gosto de fazer o que me vem à cabeça. A roda onde faço algumas peças na fábrica do Zé Miguel também fui eu que a fiz”.

Entre a horta, o barro e a madeira, José encontra ainda tempo para descansar ao lado da esposa que, todos os dias, o continua a incentivar a continuar. “Parar é morrer”, afirma o mestre.

Pouco esperançado no futuro da profissão tradicional, José Gameiro recorda o passado e lamenta o atual cenário da olaria na Asseiceira, situação que se reflete também no país. Para o futuro, afigura um cenário que afirma ser difícil. “Acho difícil… o José Miguel coitado, anda a labutar para isto, mas está muito difícil. É que ninguém quer trabalhar. Uns não querem aprender, outros não querem trabalhar, é assim…”.

Apesar de compreender o futuro e os desafios que a olaria tem pela frente, o mestre “Zé Cuco” mantém um desejo: “Gostava que, tal como está o Zé Miguel a andar devagarinho e muito bem, gostava que fossem mais pessoas a trabalhar no barro.

Olhando para a terra que o acolheu ainda em criança, José conta que hoje nada é como antes.

“Antigamente não era como a vida de hoje. Tínhamos que trabalhar para comer… quando era mais novo havia muito trabalho. Uma vez contei 32 ou 33 olarias, agora é quase só a do Zé Miguel”, afirma.

Embora lamente que a tradição não seja passada às gerações futuras, o oleiro de 88 anos deseja para os seus um futuro longe das dificuldades que viveu. “Nós não os podemos obrigar a continuar. É assim, acaba tudo… é tal como os filhos do José Miguel, também não querem”.

Entre os principais motivos encontram-se os alargados horários de trabalho e os problemas ao nível da saúde. “É uma vida de muito trabalho e pouco saudável. É muita poeira. Hoje tenho um mal nos pulmões do pó, da cinza e de tudo. Após um raio-x disseram-me que eu fumava muito, para deixar de fumar… eu nunca fumei”, conta José Gameiro.

Da produção de talhas ao fabrico do vinho

Para além de fazer as talhas, José Gameiro também lhes dá uso. Aquele que é mestre na arte do barro é também experiente na arte de fazer vinho em talhas, atividade que realiza há mais de 30 anos.

O mediotejo.net foi visitar a pequena “adega” de José Gameiro, situada na garagem da casa onde habita na Asseiceira, concelho de Tomar. A data marcada nas talhas (1993) relembra um passado que o mestre da Asseiceira procura não deixar morrer. Aos 88 anos continua a fabricar vinho nas talhas dando, assim, continuidade à tradição.

A mulher, atenta ao discurso de José Gameiro, acrescenta: “É um bom artista, o meu marido. Não é por ser meu, mas é um verdadeiro artista”, afirma, orgulhosa.

A divisão que todos anos vê nascer o vinho pelas mãos do oleiro é também um espaço de convívio, onde “Zé Cuco”, como é conhecido, recebe a família e os amigos. É lá que lhes dá a provar um bom copo de vinho, produzido de forma artesanalmente e houve atentamente os comentários à sua produção.

Apesar de ser um processo artesanal, todo realizado à mão, José Gameiro faz uso de algum tipo de tecnologia. Nas tampas que cobrem as talhas surge um pequeno fio, que provém do interior, onde é conservado o vinho.

“Chama-se a boneca e coloca-se no interior da talha, mas não toca no vinho. Usa-se para tirar a acidez do vinho. Tem aqui um buraco onde coloco e tenho uma rolha de cortiça para tapar. É colocado no momento em que se tapa o vinho”, explica.

José Gameiro e a esposa, Júlia Gameiro, na casa onde habitam na Asseiceira (Tomar). Foto: José Paulo Marques

Para além do vinho tinto, José fabrica também vinho branco, revelando-se um verdadeiro “mestre dos sete ofícios” ou, como diz Júlia Gameiro, “é um verdadeiro faz tudo”. Para o futuro, o oleiro tomarense promete dar continuidade à tradição e, dentro das suas capacidades, continuar a transmitir a arte oleira para o país e para o mundo.

Quanto à produção de vinho, não há dúvidas: “é para continuar a produzir até eu poder”, assegura José Gameiro, com os néctares caseiros a permitirem que o mestre ‘Zé Cuco’ possa continuar a brindar à vida, à amizade e à tradição oleira de Asseiceira!

Entrevista – Jessica Filipe/mediotejo.net

Fotos: José Paulo Marques/mediotejo.net

Atualmente a frequentar o Mestrado em Jornalismo na Universidade da Beira Interior. Apaixonada pelas letras e pela escrita, cedo descobri no Jornalismo a minha grande paixão.

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2 Comentários

  1. Parabéns pelo belo artigo de recolha da tradição da olaria da região.
    Longa vida ao Sr. José e Júlia Gameiro…

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