João Damásio nasceu em Abrantes há 56 anos. Pai de dois filhos, trabalha no Centro Hospitalar do Médio Tejo, no bloco operatório da Unidade de Abrantes. Escolheu ser enfermeiro há 32 anos e nessa missão de cuidar do próximo o seu trabalho passa ainda pela VMER – Viatura Médica de Emergência e Reanimação. Praticamente ao mesmo tempo que iniciou a sua carreira profissional assumiu o papel de sindicalista. Para conhecer melhor o homem e as suas causas, fomos conversar com o enfermeiro abrantino, dirigente nacional do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses.
Em mais um Dia Internacional do Enfermeiro, a classe afirma que para atingir o topo da carreira, um enfermeiro precisaria de uma longevidade laboral de 110 anos. Confirma?
Sim. A nossa carreira está dividida em três categorias: enfermeiro, enfermeiro especialista e enfermeiro gestor. Ora, 75% dos enfermeiros precisariam de 110 anos, porque temos 11 escalões e o mínimo que temos de ter são 10 pontos para a progressão, e 10 pontos correspondem a 10 anos de serviço. Temos três menções positivas: adequado, relevante e excelente e são 75% os enfermeiros com nota adequado, 25% relevantes e desses podem ou não sair 5% de excelentes. Ou seja, 75% dos enfermeiros só sobem na carreira de 10 em 10 anos, logo seriam necessários 110 anos para atingir o último escalão. Tal não está relacionado com o mérito mas sim com as quotas. Por isso somos frontalmente contra as quotas, para defender o mérito e a excelência na prestação de cuidados. Porque o que se quer é ter enfermeiros de excelência, na prática, e com este tipo de avaliação estamos a defender que só parte tem mérito, o que irá traduzir-se na desmotivação dos profissionais. Porque há esforço da sua parte, mas esse esforço não é reconhecido em termos laborais, mas acima de tudo em termos remuneratórios. Além disso, as oportunidades que são dadas a alguns enfermeiros não são dadas a todos. Quando o profissional apresenta ao superior hierárquico o projeto para o serviço, mediante determinadas premissas que são impostas de base, é quase impossível atingir o excelente. Mesmo o relevante – atribui dois pontos por ano e têm de trabalhar 55 anos para chegar ao topo de carreira –, o patamar inferior, determina que a produção seja em metade do tempo. A questão prende-se com a definição de critérios de avaliação, alguns muito subjetivos, que permite aos superiores hierárquicos atribuírem a quem eles querem. No caso dos 25% relevantes, sabemos que há pessoas convidadas para determinados cargos para terem o relevante. Automaticamente essas pessoas, sendo relevantes, são diretamente beneficiadas porque as outras nunca chegarão lá, porque não são convidadas para esses cargos.
Passaram três anos desde o início da pandemia de covid-19 e o seu fim foi decretado na semana passada pela OMS. Depois das palmas, os decisores políticos e a sociedade tendem a esquecer todo o esforço que foi feito pelas equipas de saúde?
Sim. Sentimos que os decisores políticos e a sociedade tendem a esquecer todo o esforço das equipas de saúde. Na altura foram realizadas várias homenagens aos profissionais, nomeadamente aos enfermeiros, pelo esforço e pela dedicação que tiveram durante a pandemia, exemplar a todos os níveis, mas depois isso não se traduziu no resto. E não foi só na pandemia, porque temos enfermeiros e profissionais de saúde de excelência em todos os momentos. E é por isso que o Serviço Nacional de Saúde está muito bem servido – podia estar melhor –, é por isso que os melhores profissionais saem do Serviço Nacional de Saúde para o privado. Sabemos que o setor privado vai buscá-los porque são bons. Isto provoca desnatação do SNS não só em termos dos profissionais mas dos próprios doentes, porque sabemos que os privados “escolhem” aqueles que lhes dão rentabilidade. Quando corre mal os doentes vão para onde? Novamente para o público. Temos muitas situações de cirurgias, nomeadamente no foro ortopédico, na parte particular do sistema de saúde, e quando corre mal vão para o SNS… Mais uma vez, também não há compensação daquilo que é o esforço público, em termos de saúde, para o setor privado, onde há mais atos que compensem financeiramente aquilo que é o seu investimento, e o público fica com o resto. Não vemos a compensação do setor privado ao setor público, por exemplo, numa unidade de quimioterapia, sendo muito dispendioso em medicação. Deveria existir um equilíbrio mais eficiente e eficaz nesse aspeto.
Coloquei a questão anterior porque ainda em fevereiro o Parlamento chumbou a antecipação da reforma dos enfermeiros e o subsídio de risco no SNS…
É verdade! Depois de tantas palmas parece que há uma incoerência, que parte logo da exigência e do reconhecimento. Gostamos que exijam cuidados de saúde com segurança e qualidade, é para isso que cá estamos. Mas também que haja reconhecimento dessa segurança e qualidade. Qualquer dia a desmotivação é tal que as pessoas só vão para o seu local de trabalho para cumprir horário e para ganhar o seu ordenado. Há um grande preconceito em relação à profissão de enfermagem. Historicamente tínhamos uma dedicação quase exclusiva e gratuita, no tempo dos conventos e das freiras, e às vezes parece que esse espírito de missão ainda se mantém, esquecendo que é uma profissão com nível de diferenciação grau 3, com uma licenciatura e com todos os outros pressupostos, e ainda com mais exigência que outras carreiras da função pública, nomeadamente em relação àquilo que é a diferenciação de algumas unidades de prestação de cuidados em detrimento de outras e o risco da própria profissão. Não consigo conceber que um enfermeiro que trabalhou 30 ou 40 anos por turnos se reforme com a mesma idade que um funcionário que durante 30 ou 40 anos esteve num escritório, das 9h00 às 17h00, e com os fins-de-semana livres. Já para não falar na parte social que perdemos.


E fisicamente é desgastante?
Claro. Não sou eu que o digo, está mais que comprovado, existem estudos internacionais em relação a isso, que determinam que as profissões que trabalham por turnos, até pelos ciclos circadianos. Não há!
E qual é a razão? Poupar dinheiro?
É uma política economicista. Os utentes merecem cuidados de saúde com qualidade e segurança e portanto deem aos profissionais de saúde condições, haja essa efetiva prestação de cuidados com qualidade e segurança. Mais uma vez digo, motivando as pessoas, investindo na sua profissão e a reconhecer o seu mérito para que, mais tarde ou mais cedo, chegue o reconhecimento pecuniário. Comparando a nossa carreira com outras da administração pública há uma grande diferença. Perdemos a paridade e carreiras da administração pública têm progressões de quatro em quatro anos ou de cinco em cinco anos e os enfermeiros têm de 10 em 10 anos. Alguma coisa não está bem em termos equitativos, por isso também essa desmotivação que referi. Importa que os gestores percebam qual é a essência da questão em termos da prestação direta de cuidados e os resultados são produzidos em termos de objetivos dos próprios serviços. Esses objetivos e esses resultados sejam, esses sim, avaliados e que as pessoas tenham esse reconhecimento de mérito. De uma maneira geral, em saúde, não se consegue nada sem ser em equipa. Falamos não só dos enfermeiros mas de toda a equipa prestadora de cuidados, desde a base até ao topo, desde o operário até ao administrador hospitalar.
“Não consigo conceber que um enfermeiro que trabalhou 30 ou 40 anos por turnos se reforme com a mesma idade que um funcionário que durante 30 ou 40 anos esteve num escritório, das 9h00 às 17h00, e com os fins-de-semana livres.”
João Damásio, enfermeiro
Qual o motivo que leva tantos enfermeiros continuarem a emigrar?
Sobretudo pelo reconhecimento que têm no exterior, nomeadamente em Inglaterra. Temos muitos enfermeiros em Inglaterra a ganhar prémios internacionais, com o reconhecimento do seu mérito, prova que os portugueses têm uma formação de base de excelência. Há uma grande procura porque sabem que temos essa preparação, mesmo em termos relacionais; o saber ser, o saber estar e o saber fazer. Não há nenhum hospital em Inglaterra onde um enfermeiro português tenha dificuldades em integrar-se na equipa e, acima de tudo, promover-se na equipa. E como tal as pessoas também emigram porque veem o seu mérito reconhecido, não é só uma questão monetária.
Não considera injusto para o contribuinte português, que paga uma formação de excelência para ter bons profissionais, que acabem a emigrar?
É verdade. Essa é uma questão pertinente porque a formação é paga pelos contribuintes, apesar de pagarmos as propinas, mas depois outros usufruem daquilo que é a formação portuguesa. E não só ao nível de enfermagem, também noutras profissões, por exemplo ao nível da investigação, temos excelentes investigadores no estrangeiro, em empresas de renome internacional, mas não em Portugal, porque cá a investigação é para esquecer, nem sequer têm carreira.
É ou não verdade que Portugal tem o rácio enfermeiro/habitante mais baixo da OCDE?
É um dos mais baixos, sim. Números recentes da OCDE referem que Portugal tem uma media de 6.3 e a média europeia é de 8.4 enfermeiros por cada mil habitantes. Se fizermos as contas, são 20 mil enfermeiros que faltam em Portugal. E agora é extrapolar isso para as unidades de saúde e ver o sacrifício com que os enfermeiros trabalham no dia-a-dia. Juntando as ausências, estamos a falar de um défice de recursos humanos muito grande, é quase impossível responder com qualidade e segurança às necessidades das pessoas. Principalmente numa população envelhecida como é a do nosso país. Hoje em dia vive-se mais tempo mas nem sempre com a melhor qualidade, as comorbilidades são enormes, temos uma população mais envelhecida e com mais doenças. A resposta é integrada no médico de família e conseguir conciliar todos os problemas de saúde da pessoa – incluindo as medicações – , mas vemos situações complexas, baixas reformas que nem sequer conseguem comprar a medicação quanto mais para fazer uma alimentação regrada. Que eu conheça, não há nenhum serviço que tenha o rácio correto definido pela Ordem dos Enfermeiros para prestar cuidados com qualidade e segurança, e o mesmo sucede ao nível do Médio Tejo. Se houver serão casos muito pontuais e casos muito específicos de serviços muito pequenos, mas nos ditos serviços tradicionais – de cirurgia, ortopedia, medicina –, não há nenhum serviço que tenha rácios completos e adequados às necessidades das pessoas. Depois, claro, é prestar cuidados ‘na corda bamba’, prejudicando diretamente a pessoa receptora dos cuidados.
“Que eu conheça, não há nenhum serviço que tenha o rácio correto definido pela Ordem dos Enfermeiros para prestar cuidados com qualidade e segurança.”
João Damásio, enfermeiro
Neste momento, quais são os principais dilemas do exercício profissional no setor da saúde em Portugal?
Acima de tudo, a saúde em Portugal carece de um grande entendimento. Deveria haver um entendimento suprapartidário em relação à questão da saúde. Ou seja, deveria ser criada uma comissão de peritos na área, porque as pessoas quando assumem um cargo político pensam que têm todo o conhecimento e às vezes esquecem-se que o cargo não determina a competência da pessoas. Sabemos como vão para determinados cargos e como os desempenham, nomeadamente em relação à assessoria. Deveria existir um colégio, um conselho suprapartidário, que determinasse as políticas de saúde para os próximos anos, que fossem definidos os objetivos, as metas que se pretendem atingir, os recursos para alocar a esses determinados serviços para atingir esses objetivos e que não houvesse desvios, independentemente do partido que estivesse no governo. Outro aspeto é a promiscuidade que existe entre público e privado, como referi: quando complica o doente vai para o público, e nunca acontece o contrário. Mas há muitas outras questões, nomeadamente quanto aos meios complementares de diagnóstico, que o privado não tem acesso ao que é realizado no público. Deveria haver uma plataforma nacional de registo de exames para acesso a profissionais de saúde. Já há, mas muitas questões ficam por avaliar. Uma rede que permitisse que as coisas fossem feitas em complementaridade e não em competitividade. Haver também a tal compensação do setor público para o privado e vice versa, como já acontece no setor convencionado de prestadores de cuidados e outras necessidades.
E os principais problemas com que os enfermeiros se debatem?
Como expliquei, prendem-se com as questões remuneratórias e a progressão na carreira. Assinalamos esta sexta-feira, dia 12 de maio, o Dia Internacional do Enfermeiro, vamos estar em greve e entregar ao Ministério da Saúde uma moção. Alguns assuntos são novamente equacionados, nomeadamente a questão dos pontos, que ainda há instituições, também no Médio Tejo, que continuam sem atribuir aquilo que achamos ser a justa atribuição dos pontos. O Centro Hospitalar do Médio Tejo é a única EPE a nível nacional que ainda não o faz. Também a questão dos especialistas e toda a estrutura da carreira de enfermagem é muito importante porque a pessoa faz formação, contribui para a melhoria de prestação de cuidados em termos objetivos, há um investimento da pessoa, e quando concorre para a categoria de especialista vê-se sem os pontos que já tinha para a progressão na categoria de enfermeiro e a ganhar precisamente o mesmo. Para nós não é concebível que um enfermeiro que trabalhe por turnos e lide com o sofrimento humano não tenha uma compensação, sendo que já tivemos um regime especial de aposentação. Quanto entrei para a enfermagem era suposto reformar-me aos 57 anos de idade e com 35 anos de serviço e neste momento é o regime geral que comanda a aposentação de enfermagem. Outra questão é a desigualdade entre os contratos individuais de trabalho e os contratos em função pública, nomeadamente em relação aos dias de férias, que nos contratos individuais têm menos dias. Algumas instituições, e bem, já harmonizaram, o Centro Hospitalar do Médio Tejo, mais uma vez, diz que não tem suporte legislativo, não tem autonomia para o fazer. No ACES do Médio Tejo a situação é idêntica, e estamos a falar de uma coisa que nem é sequer pecuniária, são três dias de férias por ano, é irrisória, enquanto países vizinhos têm mais 15 dias de férias. Depois ainda a negociação coletiva dos acordos de trabalho, a caducidade. E querem-nos fazer acreditar que é a mesma coisa negociar com o sindicato ou com a pessoa individualmente. Ninguém é burro ao ponto de acreditar que as relações empregador/empregado são idênticas em termos de poder formal, toda a gente sabe quem tem a faca e o queijo na mão.

Segundo as suas palavras, posso depreender que existe uma política de desvalorização dos sindicatos?
Não tenho dúvidas! Há muito tempo que acontece e as novas gerações parece que veem os sindicatos como algo obsoleto, que caiu em desuso. A verdade é que cada vez mais os sindicatos são precisos e cada vez mais a união das pessoas tem de estar presente, porque num mundo cada vez mais global ninguém faz nada sozinho. Vivemos em comunidade e mesmo nas questões laborais, cada vez mais, se as pessoas não estão unidas não conseguem, porque, como disse, as forças são completamente diferentes. A força de um patrão não é a força de um trabalhador. Os jovens, que são de uma geração precária, não percebem a importância de ser sindicalizado, de fazer parte do movimento para fazer acontecer e não esperar que alguém faça. Os valores e direitos adquiridos que se forem perdendo não voltam mais, e as pessoas não têm noção que qualquer dia é um privilégio ter um emprego, sem quaisquer condições. E a nível social onde é que isto nos leva? Apesar de todo o desenvolvimento tecnológico que possa acontecer, há sempre uma questão humana que tem de ser salvaguardada.
E se o futuro trouxer uma nova pandemia, aprendeu-se algo com a covid-19?
Sinceramente, não sei. Temos a teimosia de não aprender com os nossos erros. Se temos um desafio enormíssimo e os recursos humanos e materiais são o que são, é impossível responder, como foi impossível responder à pandemia de covid-19. Volto a defender um conselho suprapartidário que determinasse as políticas de saúde para o futuro. Não digo que surja outra pandemia daqui a dois ou três anos, mas pode acontecer. Temos em Portugal o exemplo dos incêndios: não aprendemos nada com a desgraça de Pedrogão. E também não aprendemos nada com a pandemia, porque continuamos a trabalhar em cima do joelho. Temos a capacidade, neste momento, de fazer rotações seguras, de equipas de saúde, e prevenir e futuras situações, mas se outra pandemia chegasse [agora] os problemas repetiam-se. Com mais algum conhecimento de causa e possivelmente com mais alguma resposta em termos de rapidez, mas os problemas iriam repetir-se.

Como foi ser enfermeiro durante a pandemia?
Foi um desafio muito grande para todos, mesmo para a população em geral. Como enfermeiro e como cidadão, duas coisas completamente diferentes. Como profissional de enfermagem, o dever de tentarmos responder com as armas que tínhamos na altura, com a maior eficácia e eficiência possível. No bloco operatório de Abrantes operou-se o primeiro doente covid-19 a nível nacional e transmitimos esse conhecimento a outros blocos operatórios. Como ser humano também foi um grande desafio, no que toca à relação, porque com a pandemia perdeu-se muito no aspeto social e aquilo que era a nossa identidade portuguesa de relacionamento. Felizmente estamos a recuperar, porque somos acima de tudo muito sociais e gostamos muito da nossa festa.
Aquela mensagem que se lia em quase toda a parte: “Vai ficar tudo bem”… Ficou realmente tudo bem?
Não. Há coisas que se perderam e que nunca mais vão ser da mesma forma. Por exemplo, as crianças que na altura estavam no infantário foram ensinadas a não partilhar. Tem a ver com a nossa condição humana de relacionamento, mas a questão essencial é que conseguimos ultrapassar com algum êxito. Em relação aos enfermeiros, todo o esforço nacional de vacinação, com muitos colegas de hospital a dar apoio aos centros de saúde para vacinação, com um risco e desconhecimento enorme – como sabe, colegas enfermeiros que estiveram diretamente ligados à pandemia morreram, mexia connosco mais pelo desconhecido, mesmo a nível mental não foi fácil. Em minha casa – somos um casal de enfermeiros – tomámos a decisão de que ninguém fazia isolamento, era o que fosse, mas muitos isolaram-se das famílias e estiveram 1, 2, 3, 4 meses sem ver as famílias, trabalhava-se em jornada de espelho, 24 sob 24 horas e depois estava-se cinco dias em casa para não ter contacto com mais ninguém. O afastamento da família dificultou, porque os laços familiares também ajudam a ultrapassar as situações do dia a dia que vivemos, vivenciamos e acabamos por sentir. Houve um grande esforço, com grandes resultados e o que fica, e importa, é que esse esforço foi em prol da comunidade. É isso que nos garante algum ânimo para continuar.
“Não ficou tudo bem. Há coisas que se perderam e que nunca mais vão ser da mesma forma. Por exemplo, as crianças que na altura da pandemia estavam no infantário foram ensinadas a não partilhar.”
João Damásio, enfermeiro
O absentismo nos profissionais de saúde é um problema? E quais são as principais razões?
Sim. É um problema transversal a todas as profissões. Há dados estatísticos que indicam que habitualmente 10% das equipas estão em ausência, portanto numa equipa de 10 pessoas já sabemos que uma está fora – atestado médico, licença, etc. Os recursos humanos também devem traduzir isso, ter essa salvaguarda e estarem preparados, porque temos muitas enfermeiras mães, e tradicionalmente quando o filho está doente ficam em casa em apoio à família. Ou seja, é a própria pessoa, são as pessoas diretamente relacionadas com ela. E não estamos preparados.

Qual o futuro do Serviço Nacional de Saúde?
É uma questão muito complexa. O SNS tem todo potencial para ter um futuro brilhante, assim queiram os governantes, os nossos políticos, dotá-lo dos recursos humanos e materiais capazes de responder às necessidades e expectativas das pessoas. Deveria haver uma maior aposta na prevenção e controle daquilo que são os hábitos da nossa população porque os cuidados de saúde primários são um bocadinho descurados. Faz-se muito pouco pela educação para a saúde na comunidade, e a promoção da saúde é importantíssima. Existem estudos que indicam que cada euro investido na promoção da saúde reverte dois euros a favor da prevenção. Ou seja, um euro gasto são dois euros que se poupam no futuro. Segundo os últimos números, temos um milhão e quinhentos mil portugueses sem médico de família, mas se houvesse respostas integradas… e agora fala-se para o Médio Tejo de uma Unidade Local de Saúde, vamos ver como vai funcionar, se haverá verdadeiramente uma complementaridade e se responde efetivamente às necessidades das pessoas. É isso que importa: responder às necessidades das pessoas.
Semana de quatro dias seria uma boa solução para o Serviço Nacional de Saúde?
A carga horária semanal é que importa. A nossa jornada diária normal são sete horas e habitualmente fazemos entre 8 horas a 8 horas e meia e, portanto, a cada quatro semanas temos pelo menos mais um ou dois dias de descanso, porque essa acumulação de hora e meia a mais, a cada oito turnos é mais um turno. É mais importante a carga horária diária e semanal do que propriamente a jornada dos quatro dias. A semana de quatro dias tem pernas para andar, desde que a jornada das 24 horas seja assegurada nos serviços de internamento, nos serviços que funcionam 24 horas, e que os cuidados de saúde primários consigam arranjar estratégias de responder com horários alargados, desfasando horários.
É possível fazer regressar os enfermeiros emigrados ao mercado de trabalho português?
Essa é uma questão que só os colegas poderiam responder. Mas penso que sim, dotando o SNS de carreiras apetecíveis, no sentido de serem reconhecedoras do mérito, que se traduzissem em ganhos e valorizassem os profissionais. Já muitos colegas regressaram e muitos mais regressariam se vissem reconhecimento. As pessoas gostam de estar no seu país, aqui estão as suas raízes, a sua família. A questão social, familiar, de apoio, da rede contínua que temos, também com os amigos, é muito importante. As pessoas vão porque procuram melhor. Era possível dotar o nosso país desse apelo para que as pessoas regressem. Porque o discurso economicista só é aplicado a quem trabalha. Já para os ‘jobs for the boys‘, assessoria, para tudo o que é governo central, regional e local vai muito dinheiro, para onde não deveria de ir. Aquilo que se gasta indevidamente falta nos outros lados.

Qual a razão de ser sindicalista?
É uma história engraçada. No primeiro mês de trabalho tive um acidente, fiz uma fratura do radio e pedi informações ao sindicato sobre os meus direitos. Como fiz muitas perguntas – porque os elementos do sindicato vinham ao hospital fazer a integração dos novos colegas – ficaram com a minha morada. Na altura não havia computadores, nem sistemas informatizados nem nada disso, e passaram a enviar-me material de divulgação para junto dos colegas fazer a publicitação. A partir daí fiquei no sindicato logo no primeiro mês de trabalho. Muitos anos como ativista, sem créditos sindicais, ia às reuniões no meu tempo, depois como delegado sindical na Unidade de Abrantes, mais tarde entrei para a Direção Regional de Santarém, a qual ativei com o meu colega António Mendes, de Santarém, após uma longa jornada sindical de tentarmos convencer as pessoas que éramos capazes, e fomos. Depois passei a dirigente nacional do Sindicado dos Enfermeiros Portugueses (SEP).
Sempre fui muito pró-ativo na questão da informação e dos direitos e não é por acaso que o meu primeiro trabalho no curso de enfermagem foi sobre sindicalismo. Ficou logo o ‘bichinho’. Na altura fiz uma entrevista ao enfermeiro Ernesto, de Santarém, estava na Escola de Enfermagem, mas depois foi diretor do Hospital de Santarém. Portanto, já tinha esse interesse. E escolhi o SEP porque, apesar de todos os sindicatos de enfermagem que temos, mantém os princípios pelos quais me oriento, que é a defesa intransigente dos nossos direitos enquanto grupo profissional, para que as coisas tenham alguma coerência em termos daquilo que é a oferta e a procura no mercado de trabalho.

O João Damásio tem tempos livres?
Tenho muitos projetos… Há o ditado português que diz “quem muitos burros toca, algum fica para trás”. Penso de maneira diferente: “Quem muitos burros toca, algum há-de andar para a frente”. Além da enfermagem do bloco operatório e da VMER, ainda tenho o sindicato, tendo dois a três dias por mês para essa atividade que se baseia na entrega de comunicados, falar com colegas, reuniões a nível distrital e nacional. Sexta-feira, no dia da greve, por exemplo, vou estar em atividade nacional com tempo meu, mas vou conciliando com a parte familiar. E agora tenho um projeto de formação em mãos, na área da saúde, relacionado com a geriatria e com os recursos técnicos auxiliares de saúde, formação de reconhecimento de competências RVCC (Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências) ao nível do IEFP. Sempre que posso saio com os amigos, dou uma volta de mota, e acima de tudo, tempos livres com a família. Tenho dois filhos, uma filha com 20 anos e um filho com 14 anos.
E o que gosta de fazer?
Gosto muito de ouvir música. Junto o útil ao agradável, como tenho um capacete que permite isso, vou ouvindo música baixinho enquanto ando de mota. Temos um grupo no Hospital, que começou como um grupo restrito, numa brincadeira… fizemos um grupo no WhatsApp e agora vamos fazer um passeio para a Sierra de Francia em Salamanca, de três dias, com 13 participantes. Gosto de música dos anos 80, o meu grupo preferido é Pink Floyd, tenho todos os discos em vinil, todos os CD’s originais, uma ou duas gravações piratas, e uma gravação pirata do concerto deles em 1986, no Estádio de Alvalade.
É um homem da ciência, mas se tivesse uma varinha mágica qual seria a sua primeira ação?
Era desejar saúde para todos e menos sofrimento em algumas situações que mexem muito connosco. Às vezes há sofrimento humano sem necessidade.
Já que fala em sofrimento humano, e porque está na ordem do dia, sendo um profissional de saúde, é contra ou a favor da eutanásia?
Não tenho de ser a favor nem contra. É uma questão muito pessoal. Legislação que permita, sim, mas tem de ser uma decisão muito pessoal, muito consciente e muito pontual. Não podemos generalizar a eutanásia de uma maneira que seja à vontade ou à vontadinha. Temos casos descritos na ciência de situações terminais, em que as pessoas desejaram a morte, que estiveram mesmo quase do outro lado, e depois alguma coisa muda e o contexto e a perspetiva muda e, acima de tudo, a nossa perceção daquilo que é ser feliz com o que temos naquele momento. Há casos descritos de pessoas que recuperaram que o único objetivo que têm na vida é, por exemplo, ver um filho ou um neto. Da mesma forma a distanásia, não podemos prolongar o sofrimento humano só porque a Constituição da República Portuguesa refere que temos de preservar a vida. Não temos de preservar a vida a todo o custo. Como operacional de VMER digo isto muitas vezes: temos de deixar morrer as pessoas com dignidade. E isso é deixar a pessoa morrer com serenidade, a natureza fazer o seu papel. Cada caso é um caso e as comissões de ética nos hospitais deveriam funcionar um pouco melhor. Haver apoio, falar-se e discutir-se situações complexas. Nem trinta anos não nos preparam para certas coisas, nunca!