Abrantes, agosto 2017. Foto: Paulo Cunha

Reportagem de Paula Mourato e Joana Santos

Quem desce da cidade de Abrantes, lá do alto do castelo em sentinela, para percorrer as aldeias do lado norte do concelho vai deixando para trás a terra queimada que, um dia, já sustentou famílias inteiras cujos descendentes caminham agora noutro modo de vida ou nos escombros que as cinzas deixaram. Outros vivem o medo de que o fogo volte a ameaçar as casas. Essa é a maior preocupação dos populares, embora as produções agrícolas e florestais perdidas também apoquentem quem faz da floresta o seu ganha pão.

Leonor Rosa não dorme há duas noites em Pucariça, uma das povoações evacuadas juntamente com Braçal, Arco e Aldeinha, no concelho de Abrantes. Com 65 anos já assistiu a muitos incêndios mas este foi “horrível”, descreve. Na quinta-feira cerca das 17h00, as chamas queimaram “tudo à volta” de sua casa e do caminho em frente à porta. Dali projetou-se para a encosta nas traseiras da habitação. O lume veio depois pelas hortas abaixo em direção à garagem que por pouco não ardeu. “Chegou perto da barraca do meu cãozito… tive de o retirar”, afirma.

Leonor Rosa, habitante em Pucariça, descreve o fogo como “horrível”. Foto: mediotejo.net

Este sábado, a equipa do Médio Tejo foi interromper a refeição de Leonor. Estava a almoçar mas não nos mandou embora. Mesmo de braço partido, abre o portão do quintal. Ao lado rega-se o jardim, molhando a terra que deixa no ar um cheiro que abafa o de fumo e cinza.

Conta que o fogo também consumiu o pasto perto de uma propriedade da filha e de um estaleiro da família onde Leonor guarda bilhas de gás. O perigo de rebentamento obrigou a que estivesse até à 01h00 “a retirar tudo” com a ajuda dos bombeiros. “Foram incansáveis!”, garante, embora as palavras sejam poucas para classificar as dificuldades passadas. “O fumo era tanto que não conseguíamos respirar”. Valeu-lhes “a máscara” para minimizar os danos.

O lume esteve perto da casa de Leonor Rosa, que teve de socorrer de imediato o cão, perto da garagem, com o aproximar do fogo. Foto: mediotejo.net

O telemóvel não parava de tocar, com familiares aflitos do outro lado, do Luxemburgo à Suíça, tentando saber “se estavam bem”. Nesse momento as autoridade avançavam para a evacuação mas “as pessoas não quiseram sair”. Leonor também não equacionou a fuga. “A minha casa é pré-fabricada não tinha problemas”, só os estores de plástico foram puxados até ao cimo para não arderem. “As labaredas e fagulhas eram mais que muitas”, refere. No quintal pousavam “cascas de eucalipto a arder”. Confessa que teme a “zona da ribeira, cheia de canas”. No dia do incêndio valeu-lhes a avioneta “que naquela zona deitou três descargas de água” que apagaram as chamas. É por isso que Leonor não se ausenta de casa. Tem medo que a má sorte traga uma fagulha enrolada no vento e os choupos ardam na ribeira colocando a horta, as galinhas e os patos em perigo, desta vez salvos pelos bombeiros, da próxima nunca se sabe. À memória vem-lhe outro ano fatídico em que até a garagem lhe ardeu.

Francisco Tomás e Alberto Constantino olhavam ao seu redor e refletiam sobre o que havia ardido, a partir do miradouro em Aldeia do Mato. Foto: mediotejo.net

Mais acima, Aldeia do Mato ficou sem comunicações telefónicas, Internet e até sem luz. Francisco Tomás vive em Rio de Moinhos mas foi ter com o amigo Alberto Constantino para ver “o que não ardeu”.

Conta que “tinha ido com a mulher a uma consulta médica” e no regresso passou pela Zona de Intervenção Florestal (ZIF) que naquele lugar do concelho de Abrantes, ardeu toda. De facto, em tal cenário, o maior impacto visual passa pela área florestal ardida, basicamente eucalipto e pinheiro.

Abrantes, agosto de 2017. Foto: Paulo Cunha

Numa tentativa de salvar “as pinheiras” por cima da antiga escola da Pucariça, Francisco “ao fim de um bocado” estranhou os sapatos que “com o calor até queimaram” indiferentes às reprimendas da mulher para que saísse da terra queimada.

Sobre os incêndios fala em “descoordenação”. Aponta o dedo ao comando que diz não dar ordem aos bombeiros para atuar. “Há muitos bombeiros, de todo o lado, muito bem equipados, muitos carros de comando… mas o incêndio estava a alastrar colocando casas em perigo e depois as pessoas revoltam-se”, justifica.

Por seu lado, Alberto Constantino indica ter andado ontem “quatro horas de mangueira na mão”. Este residente em Aldeia do Mato conclui que “todos nós somos bombeiros”. Por isso apresenta como solução formação a cada um dos cidadãos. “Se calhar têm de ensinar as pessoas a serem bombeiros e a terem meios próprios para defender as suas habitações”. E lembra que a sua casa esteve em perigo: “não fosse o avião largar água no vizinho” a situação poderia ser pior.

Quando a má sorte vem projetada do lado do eucaliptal

Já fora pinhal, passou a eucaliptal e todos os anos, de há cerca de 14 a esta parte, tem sido sacrificado com fogos nesta zona do concelho de Abrantes, na freguesia de Rio de Moinhos.

José Maria Falcão, um dos proprietários e atual gerente da exploração, explica que a azeitona é toda fornecida para a marca de azeite local Cabeço das Nogueiras. Mas para já o prejuízo é impossível de contabilizar.

“Não lhe consigo dizer neste momento qual o prejuízo por um motivo: primeiro nunca vi um olival arder neste estado, e depois tem zonas muito tocadas, em que a azeitona ficou preta, não sei se vai cair, se não vai cair”, explicou.

O proprietário-gerente, junto ao olival atingido, mostrou-se indignado com os prejuízos causados pelo fogo, e deixou críticas ao combate e à colocação/distribuição dos meios terrestres. Foto: mediotejo.net

Mas, em todo o caso, o prejuízo é evidente na propriedade, nomeadamente fita gota-a-gota. “Já fui buscar 4 km a Santarém, e tenho que ir buscar mais, porque há muito mais tubo ardido”, contou.

E o problema não fica por aqui. Porque há ainda o problema das medidas agroambientais, que são, segundo o proprietário, “medidas de proteção ao ambiente, mas que se esquecem que no clima mediterrânico nós não podemos ter este tipo de coberto vegetal obrigatório no intervalo entre as árvores”. Um coberto vegetal que, pelos vistos, é obrigatório manter.

Recordando um pouco do sucedido na passada sexta-feira, José Maria refere que o fogo no olival se deveu a projeções do incêndio que lavrava mais acima, na zona de Pucariça. “Nem sequer estava a arder aqui em cima, começaram a vir projeções e tanto ardeu nos campos de baixo como aqui. Nos sítios em que caíram projeções simplesmente pegou e ardeu”, disse, notando que o olival apenas tem 10 hectares, “felizmente” para José Maria Falcão, pois o prejuízo poderia ser bem maior.

Já os 80 hectares de eucaliptal, a norte, do lado de lá da A23, “ardeu todo, no quarto fogo consecutivo. Recuando de 12 a 14 anos para trás, tem ardido sempre”, relatou.

O proprietário teceu ainda duras críticas aos comandos e distribuição/posicionamento de meios no terreno durante o combate ao fogo. “Infelizmente, neste país, não se apagam fogos. É uma mentira”, referiu. “Há corporações de bombeiros, gente com muito valor, encostados às casas a tentar evitar que ardam, mas na frente de fogo, a evitar que o fogo se propague, não há ninguém. Isto arde até onde tiver que arder… Aqui chegou, mais para baixo não podia arder, lá parou”.

Abrantes, agosto 2017. Foto: Paulo Cunha

Recordando quatro tipo de helicópteros, e dois canadairs e outros dois, que andavam por ali em descargas na frente de fogo, insistiu: “Havia muito pouca gente, estavam centrados junto às povoações”, o que no seu entender se resolveria havendo “bombeiros municipais para proteger as populações”.

No olival o trabalho já começou neste sábado, “com a reposição de toda a fita gota-a-gota, as árvores estão a ser adubadas, e está a regar, tentar ver se elas não sofrem, sendo que até terça-feira as temperaturas vão subir, para cerca dos 40º”.

O objetivo é que “hidricamente consigam estar minimamente acompanhadas, é um olival que já tinha alguma produção, vai para o segundo ano. Está aqui com muita pujança, vai sofrer uma brutalidade e vai dar quebra de produção para o ano a seguir”, lamentou.

“Trouxe esta equipa de trabalhadores de Monforte, saí daqui às 3 da manhã, eram oito da manhã já aqui estávamos, a pôr tubo, já está tudo a regar, para evitar mais danos e tentar dar conforto às plantas, para ver se não vão abaixo”, enumerou.

Substituição da mangueira de rega gota a gota em olival queimado durante o incêndio, em Rio de Moinhos. Foto: mediotejo.net

Na zona dos campos agrícolas, com cultivo de milho ali visível, as bombas metidas dentro do Tejo, e cabos elétricos de quadros de comando, também sofreram danos.

“Andávamos com os tratores e tudo, mas não tínhamos mangueiras para chegar lá abaixo”, e chegou a arder uma zona do campo agrícola, mas “era restolho, ali, já tinha sido retirada a cultura”, disse, apontando para o campo que vai até à margem do rio Tejo, de onde já se avista Tramagal.

“Mas aquele pivô lá ao fundo sofreu danos, ardeu o cabo, os comandos, os pneus, porque houve um corte de luz entretanto, a bomba entretanto parou, já não se conseguiu pôr a arrancar, e pronto… e depois meteu-se uma fumarada, que uma pessoa já via fogo em todo o lado, quando nos apercebemos já estava tudo a ardeu, e foi a desgraça ali”, foi contando, visivelmente alterado à medida que se lembrava dos momentos de aflição na propriedade.

“Estavam ali 7 ou 8 carros de bombeiros, parados, com operacionais e que nos diziam «nós vamos lá, mas os capacetes brancos têm que dar ordem», registou, notando e criticando falta de apoio junto daquela área agrícola.

Alguns dos corredores permaneceram intactos, ainda que beijados pelo fogo junto à barreira da autoestrada. Foto: mediotejo.net

O eucaliptal, ordenado, “está feito segundo curvas de nível, em socalcos, é a Celbi que faz a exploração connosco, porque tem as máquinas específicas, estava tudo cuidado” e “tem o combustível por baixo, porque tem que ter uma mata florestal”, mas o problema também passa pela (ir)responsabilidade de outras entidades. “As barreiras da autoestrada não estão limpas, o fogo aqui saltou, o foco de incêndio que veio aqui para baixo, veio das barreiras da A23 que não estão limpas. Não são os particulares a ter de se preocupar com isso, nós fazemos a limpeza que nos compete”.

“Há muita mata não ordenada, o fogo veio de uma zona em que não há ordenamento, e por isso conseguir vir até aqui, agora nesta parte está tudo ordenado, e consegue visualizar-se no Google Maps”, assegurou.

No futuro, as queixas serão feitas à tutela, garantiu. “Seguramente vou escrever ao Ministério da Agricultura a dizer que não posso continuar com este tipo de medidas agroambientais, eu tenho que matar esta erva no final de abril, para ela ainda se poder decompor, e não ter este extrato herbáceo aqui por baixo, é obrigatório por lei, enquanto ajuda ambiental, mas não está concebida para os climas mediterrânicos que com estas temperaturas e a possibilidade de haver fogo, é tremendo, e nesta localização ainda pior”, terminou, seguindo em direção à sua 4×4.

Os estragos e danos eram visíveis, especialmente nas árvores tocadas pelas chamas. Foto: mediotejo.net

A partir de agora as coisas vão correr bem. Correm sempre, como aliás concluiu José Maria. Pelo menos enquanto houver paciência para tal.

Mas não esqueçamos que enquanto houver floresta para andar, o fogo irá sempre continuar. Valham-nos os bravos fardados, que com mais crítica ou menos crítica, continuam a cirandar por entre as altas chamas. E ao fim de dois dias e meio, da zona mais a norte do concelho, chegou ali, já perto do perímetro urbano, assustando populares e cortando vias. Evacuando lugares e varrendo tudo. E, agora, tudo (ou quase tudo) o que resta… é cinza.

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