Vânia Mourato, 36 anos, é encarregada num supermercado em Gavião. Não parou de trabalhar desde que a pandemia tomou o país de assalto e durante o Estado de Emergência ajudou a garantir que nenhum bem essencial faltava para a subsistência e qualidade de vida das famílias. É um dos “heróis sem máscara” que decidimos retratar, homenageando todos aqueles que, sem super-poderes, garantem com o seu trabalho alguma normalidade às nossas vidas nestes dias de pandemia.

É natural de Alvega, concelho de Abrantes, casada e com duas filhas, trabalha há 17 anos no Meu Super, um supermercado do concelho vizinho, tendo já passado por várias gerências. Desde limpeza a trabalhos de escritório, Vânia faz os turnos diários com interrupção para o almoço. Assistiu de perto as várias fases de consumo pelas quais o país passou assim que se anunciou a pandemia e se decretou o Estado de Emergência nacional e as medidas de restrição e confinamento, e contou a sua experiência ao mediotejo.net.

Se por um lado nota que o número de clientes aumentou, por outro lembra os primeiros dias de loucura, com “pessoas a irem às compras, a encherem carros de supermercado, a tentarem comprar como se fôssemos fechar ou os produtos esgotassem”.

Mas ali as prateleiras nunca ficaram vazias, como se assistiu noutras superfícies comerciais do país. “Recebemos produtos duas vezes por semana e tínhamos bastante stock. A verdade é que também nos precavemos a pedir mais… Mas o papel higiénico nunca acabou!”, diz, entre risos.

No ranking dos produtos mais comprados no supermercado onde trabalha consta o álcool, o mais procurado. “Recebemos umas 80 caixas de álcool nas primeiras semanas de março, e foi tudo. E o gel desinfetante também.”, mencionou.

Os enlatados, peixe e carne, arroz e massa, também estavam entre os muito requisitados durante as primeiras semanas do Estado de Emergência nacional. Depois manteve-se no pódio a farinha, o fermento, entre outros produtos de base para as lides da culinária e que fazem jus à febre das mãos na massa, com pão a ser feito em casa e partilhada a iguaria bem sucedida nas redes sociais.

Curiosamente, naquele supermercado a única prateleira que esteve praticamente vazia foi a da cerveja. “Gasta-se imensa cerveja, principalmente a mais barata. Mas quando acaba, é a mais cara que se vende”, apontou.

A correria ao supermercado começou a abrandar, e as pessoas passaram a fazer a lista para a semana. Ou a maioria, pelo menos… “Há muita gente a ir duas, três ou quatro vezes ao supermercado por dia”, desabafa Vânia, atirando de seguida: “Há pessoas que pensam que só acontece aos outros.”

No supermercado onde trabalha, desde cedo se começaram a preparar para o que viria. Começaram as desinfeções a fundo, a colocação de acrílicos de proteção nas caixas para salvaguardar as funcionárias e a mudança no trajeto para pagamento e saída, garantindo que os clientes não passariam nas costas das funcionárias e não se cruzariam. As funcionárias passaram a usar máscara e luvas no estabelecimento.

Apesar de a situação ser de ameaça real e que a todos diz respeito, as medidas de segurança e restrições foram alvo de comentários desagradáveis, e até a proteção às funcionárias chegou a ser motivo de chacota. “Chegavam a dizer que parecíamos a Nossa Senhora, imaculadas dentro do acrílico… que parecia um aquário, e que não era preciso tanta coisa…”, lamenta.

“Há pessoas que não estão a ver que pode acontecer a qualquer um, acham que os cuidados redobrados são demais”, disse, referindo-se também ao facto de terem reduzido o número de clientes, pois dentro do supermercado só podem estar em simultâneo 10 pessoas.

E nem assim as pessoas percebem que devem fazer o percurso no supermercado conforme a lista do que precisam, para estarem ali o tempo estritamente necessário. Há quem seja “sombra” e fique a aguardar a disponibilidade de outros produtos. “Quando estamos em reposição chegamos a ter pessoas a fazer fila atrás de nós, à espera que libertemos a prateleira”, conta Vânia.

E os episódios mais caricatos? Esses, garantiu, dariam um livro. Mas Vânia lembra-se especialmente de um dia de chuva, com gente na fila para entrar, a aguardar a sua vez após saída de um dos 10 clientes que preenchiam a atual lotação.

“Eu fui à porta, e perguntei se havia alguém que viesse para comprar algo mais urgente, que fosse só uma coisa. Assim não estaria na fila à espera só por um produto, e eu fazia a venda sem a pessoa ter necessidade de entrar. Acontece que, entre as pessoas da fila, há uma senhora que me diz: “Não, obrigada, eu não venho comprar nada. Só venho ver!”.

Assim torna-se difícil… As pessoas não levam a sério as recomendações e as restrições”, suspira.

A maioria dos clientes terá idade superior a 60 anos. Mas por estes dias os casais mais novos evitam deslocar-se a outras grandes superfícies, nomeadamente Abrantes ou Ponte de Sor como era hábito, e optam por ficar por ali.

Acontece que, neste caso, a pandemia até deu um “empurrãozinho” na economia local, fazendo com que se privilegiem os supermercados e serviços prestados no concelho. “Vê-se muito mais pessoas a frequentarem o espaço e a fazerem as suas ‘compras grandes’, para não terem de se deslocar para fora do concelho de residência”.

Com esta roda vida, os cuidados são redobrados. Vânia diz que tem um gel desinfetante no carro, além do uso habitual  do gel e desinfeção que vão sendo feitos ao longo do dia no trabalho.

Antes de entrar em casa, manteve o método: nunca entra calçada com os sapatos trazidos da rua, algo que se aplica a toda a família. “Ficam sempre à porta os sapatos e vou logo tomar banho”, diz, garantindo que as limpezas e desinfeções em casa são algo que não descura na rotina habitual e que agora, mais do que nunca, são feitas com maior frequência.

“Tento também não estar muito próxima da família, ainda que seja muito difícil… A minha filha mais nova, Leonor, está sempre muito perto de mim e com algum mimo. Mesmo que eu tente…”, confessa, num suspiro atormentado, referindo que é um momento doloroso este, de tentar afastar o carinho e afeto de um filho com intuito de o proteger.

Vânia tem duas filhas, e diz que apesar de tudo, “até se esquecem” do risco e da exposição ao contágio que os profissionais correm ao estarem expostos nestes setores essenciais, e em contacto com os clientes e colegas num espaço fechado. A televisão da cozinha até deixou de apanhar o sinal TDT, e por isso, à hora do Telejornal acabam por não assistir à dura realidade que vive o país e o mundo.

A altura em que notou maior agitação foi quando se suspeitou de um caso de covid-19 em Gavião, que mais tarde não se veio a confirmar. “Houve mais preocupação, e ficámos apreensivos… acho que por mais cuidados que tenhamos, é normal ficarmos com medo. Foi nesta altura que notei que as minhas filhas ficaram mais preocupadas, ficaram a pensar quem poderia apanhar o vírus e com quem poderiam ter estado em contacto…”, aludiu.

Apesar de tudo, diz Vânia, esta crise veio trazer algumas mudanças positivas na postura dos clientes que frequentam o supermercado. “Começaram a chegar pessoas com máscara e com luvas, mesmo alguns que gozavam com as medidas de segurança tomadas por prevenção no estabelecimento”.

Porém, muitas coisas continuam a correr mal. “Em Gavião, e mesmo na minha zona, nota-se que as pessoas mais velhas, por exemplo, continuam a estar no jardim e no quiosque. Veem-se homens principalmente, e julgo que é difícil mantê-los fechados em casa. Talvez porque estavam habituados a sair para o convívio. Mas não estão a respeitar as ordens de restrição nas saídas e o distanciamento social”, denuncia.

Quanto ao valor dado a um empregado num supermercado, Vânia diz que muita gente ainda não dá valor ao esforço colocado em cada prateleira que é reposta, ao auxílio para encontrar determinado produto, à paciência e tempo passado na caixa de pagamento, enquanto rolam filas de compras que parecem intermináveis, e tantas vezes são obrigadas a ouvir queixas e comentários despropositados ou “encaixar” o mau humor de um cliente a quem o dia correu menos bem. Mesmo com problemas pessoais, num dia “Não”, os empregados têm de estar ali e fazer o seu trabalho.

Operadores de caixa, repositores, funcionários do talho, da peixaria, padaria, receção, limpeza… que passam horas num outro tipo de confinamento, durante todo o ano, a preencher as despensas de outras pessoas e famílias, que correm apressadas para ir buscar alguma coisa para o jantar, e que as fazem lembrar que naquele dia não poderão jantar à mesa com os seus. Que chegarão mais tarde para encontrarem os seus filhos já a dormir. Que naquele fim-de-semana provavelmente não poderão trocar a escala, ou que durante os feriados e festividades não estarão em casa a preparar os banquetes para a família e amigos ou que vão ter de adiar a festa de aniversário porque têm de estar ao serviço da comunidade, para garantir que nada falta a ninguém, seja em que altura do dia for.

Trabalhar num supermercado é também lidar com sacrifícios e saber estar em equipa. No caso de Vânia, que trabalha com mais duas colegas, foi unânime que – apesar de terem filhos com menos de 12 anos para prestar auxílio – nenhuma ficaria em casa.

E Vânia pensou não só na sua filha de 11 anos, como também no marido, que teve doença oncológica num passado recente, estando por isso inserido no grupo de risco.

“Ninguém pensou ficar em casa. Porque se uma ficasse em casa, as duas que lá ficassem iriam ter que trabalhar dia sobre dia, porque não tínhamos ninguém para substituir”, afirmou, provavelmente sem se aperceber da coragem e do altruísmo presentes na decisão.

Ainda assim, houve quem desvalorizasse o ato e dissesse em tom depreciativo que “não ficaram em casa porque não quiseram”.

“Não têm noção do sacrifício que é uma pessoa estar ali, dia após dia, sem saber o que a espreita”, desabafou, falando nos múltiplos riscos em cadeia que causam receio. “Pensando que não… nós podemos, apanhando o vírus, contaminar clientes. E contaminar quem está em casa. E as nossas famílias…”.

Nestes novos tempos, as boas pessoas e os motivos para sorrir ganham outro sentido. “Ainda há quem nos diga para termos coragem e força, e nos vão mostrando que se importam connosco. E isso sabe bem”, garante.

Agora o esforço do trabalho é tão maior, com a responsabilidade constante de manter o procedimento correto no manuseamento dos produtos, para garantir que não existem riscos de contágio para ninguém: nem quem vende, nem que compra e vai consumir.

“Tentamos ter o maior cuidado possível com tudo… mas não sabemos, ao mínimo deslize… sabemos lá…”, admite Vânia, com o medo a fazer tremer a voz.

Os tempos são de incerteza e de receio, de cuidados redobrados não só no exercício da profissão, como em casa. Ainda assim, é difícil manter uma postura descontraída contra um inimigo invisível que dizem conseguir permanecer mais de três horas em papel, que demora dois dias a sair de madeira ou tecido, que em vidro e notas sobrevive quatro dias e em plástico dura até sete… Só isto torna um supermercado um autêntico barril de pólvora.

“Os produtos passam pelas nossas mãos… somos responsáveis por aquilo que estamos a aviar. Uma das minhas colegas andava em pânico, outra gastava um garrafão de lixívia por dia a desinfetar todas as zonas do supermercado… até a cafetaria, que está fechada!”

A mania das limpezas já não se estranha, entranha-se. E a máscara, viseira, e outros equipamentos de proteção já fazem parte da farda. É uma questão de hábito e que todos, funcionários e clientes, vão ter de utilizar. A máscara passa a ser de uso obrigatório e ainda mais em espaços fechados.

Agora, nas idas ao supermercado, há que mostrar respeito e reconhecimento pelo serviço prestado. Sermos responsáveis e altruístas, cumprir com as regras e salvaguardar os trabalhadores com as distâncias de segurança. Não tocar nos produtos a menos que os levemos connosco, e seguir recomendações na hora de pagar. Que desinfetemos as mãos.

E, por fim, um pormenor: que aprendamos a sorrir com o olhar, de máscara envergada, para cumprimentar quem está do outro lado da proteção de acrílico, pronto a dar o seu melhor e vencer o cansaço. Para que tudo aquilo que necessitamos chegue a nossa casa em perfeitas condições de consumo. Afinal, muitos de nós podem ficar em casa. Já eles, como muitos outros heróis sem máscara, não.

Joana Rita Santos

Formada em Jornalismo, faz da vida uma compilação de pequenos prazeres, onde não falta a escrita, a leitura, a fotografia, a música. Viciada no verbo Ir, nada supera o gozo de partir à descoberta das terras, das gentes, dos trilhos e da natureza... também por isto continua a crer no jornalismo de proximidade. Já esteve mais longe de forrar as paredes de casa com estantes de livros. Não troca a paz da consciência tranquila e a gargalhada dos seus por nada deste mundo.

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