Abrantes comemora hoje o centenário da elevação da “Notável Vila de Abrantes” à condição de cidade, que se consumou a 14 de junho de 1916. O processo, a propósito do qual escreveram Isabel Cavalheiro e Eduardo Campos, resultou de uma promessa de Bernardino Machado, num comício de 1907, a que Manuel Lopes Valente Júnior soube dar força ao garantir a  sua aprovação pelo Senado Municipal, em abril de 1913.

Voltaremos, a seu tempo, a este episódio da elevação a cidade, bem como à vida política abrantina no decurso da 1.ª República, também ela marcada pela instabilidade e pelas lutas político-partidárias entre as diferentes fações em que localmente se subdividiu o Partido Republicano Português. Deste modo, ficar-nos-emos, por ora, pela caracterização daquilo que era Abrantes no tempo em que foi elevada a cidade.

Implantada a República, o Governo Provisório desde cedo erradicou todas as referências à religião católica da vida pública, através da Lei de Separação das Igrejas do Estado. A região de Abrantes, viveu, depois da revolução de 5 de Outubro, inúmeros episódios em que o choque entre os poderes instituídos e a Igreja Católica suscitou cenas que foram do dramático ao caricato.

O desentendimento entre as autoridades políticas e religiosas fez com que os principais templos abrantinos tenham permanecido fechados cerca de três anos. Há exatamente 100 anos, tanto a igreja de S. João como a de S. Vicente estavam encerradas, só reabrindo em 1918. Em novembro de 1917, a política dos arrolamentos, prevista na célebre Lei de Separação, causou agitação séria, quando constou que iriam ser transferidos para Lisboa as riquezas das igrejas locais: “A população fortemente excitada […] tocou o sino a rebate e estava disposta a impedir por todas as formas que se levasse por diante tal intento”, só desarmando quando as autoridades desistiram dos seus intentos.

O concelho de Abrantes apresentava-se como um enorme espaço, repartido entre uma zona industrial e uma vasta zona agrária. As principais indústrias eram a metalurgia, no Tramagal e Rossio, o azeite, em Alferrarede, e a moagem, junto à estação de caminho-de-ferro. Todas as restantes freguesias – exceto S. Vicente e S. João – eram eminentemente rurais, a viver à base de uma agricultura que apenas dispunha, como contributos mecânicos, dos lagares.

Como forma de obtenção de um complemento ao rendimento das populações rurais, na primavera e no verão, constituíam-se ranchos que iam trabalhar para as ceifas alentejanas. Aquando da participação de Portugal na I Guerra Mundial, os rapazes que integravam esses ranchos viam-se obrigados a pedir passaporte ao Governo Civil, para poderem obter esse suplemento em Espanha.

A população do concelho de Abrantes era de 32 322 habitantes em 1913 e de 33 843 em 1920. Quanto à sede do concelho, tinha 7 410 habitantes em 1911 e 7 215 em 1920.

Em 1916, o serviço de limpeza das ruas era “pessimamente feito, encontrando-se monturos, tendo o público em parte também culpa por fazer despejos onde não deve”. Ainda que tenha sido criado um canil municipal, em julho de 1917, a “canzoada continua à solta sem coleira nem açamo, mordendo quando calha […]”. Em 1920, quando um articulista do Jornal de Abrantes se referia à existência de “galinhas com e sem frangos, divagando nalgumas ruas”, estando ainda na ordem do dia a elevação a cidade, foi ao ponto de intitular esta local com a constrangedora questão “Cidade ou aldeia?”.

Esta era, na I República, uma localidade relativamente isolada, mesmo encontrando-se a 3,8 kms da estação de caminho-de-ferro de Abrantes (no Rossio) e a 3 kms da de Alferrarede. Uma das necessidades mais vezes referida no Jornal de Abrantes dizia respeito à instalação de uma rede telefónica que pudesse ligar Abrantes ao exterior. Só em finais de 1927 foi possível quebrar este isolamento, com a inauguração da “Cabine Telefónica”.

A única forma de fugir a um quotidiano de dificuldades, a que as populações estavam aparentemente condenadas, concretizava-se através das festas e do lazer. Nas zonas rurais, sobretudo na época mais quente do ano, sucediam-se as festividades com os seus arraiais, de cariz mais ou menos religioso.

Na sede do concelho, para além de algumas festas sazonais e da feira anual de S. Matias, com as suas diversões, tínhamos com frequência espectáculos de animatógrafo (cinema) e de bandas musicais, sobretudo a de Infantaria 2 (instalada em 1918), nas principais praças e no Jardim do Castelo.

As touradas eram raras e normalmente pouco espetaculares, já o foot-ball, que fez a sua aparição por estas bandas exatamente em 1916, suscitou bastante entusiasmo, levando mesmo à fundação do primeiro clube, a 10 de junho de 1916, o Sport Lisboa e Abrantes.

*Atualizado a 14 de junho de 2016

 

José Martinho Gaspar

José Martinho Gaspar nasceu em Água das Casas (Abrantes), na década de 60 do século XX, e vive em Abrantes. É Professor de História e Mestre em História Contemporânea. Desenvolve a sua ação entre aulas, atividades associativas (Palha de Abrantes e CEHLA/Zahara, mas também CSCRD de Água das Casas), leitura e escrita, tanto de História como de ficção, sendo autor de vários artigos e livros. Apaixonado por desporto, já não vai em futebóis, mas continua a dar as suas voltas de bicicleta. Afinal, diz, "viver é como andar de bicicleta: não se pode deixar de pedalar e quando surge um cruzamento escolhe-se o nosso caminho".

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2 Comentários

  1. Sr. Professor é com muito gosto e interesse que quando vejo notícias especialmente antigas sobre a cidade de Abrantes .Sou natural deste Concelho e quando fiz a 4ª classe com 11 anos vim trabalhar para uma loja de fotografia em Abrantes,isto em 1947,vinha da minha aldeia e ia todos os dias a pé, a partir desta data trabalhei,morei e fiz a tropa em Abrantes, tendo posteriormente emigrado para a Capital tendo regressado ás origens há 2 anos,toda esta lengalenga para lhe dizer que algumas notícias mais recentes acima descritas ainda são do meu tempo,e que é com saudade que as lembro,refiro-me em especial á feira de S.Matias que se esperava um ano com muita ansiedade.Muito tenho para contar de Abrantes, lembro-me de algumas figuras que são património desta Cidade e que nunca vi nada escrito sobre elas,refiro-me a um Stalin, a um Bombinhas,ao Noé, ao Salazar, ao Miguéns,Julinho ,Tiago Cocho e outros que não me lembro agora.Desculpe o aborrecimento.Os meus Cumprimentos .António V. Santos Pato.

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