Foi a infância passada com os avós, que o deixavam “andar pelo campo e pelo meio da floresta”, que lhe despertou o gosto pelas ciências. Cresceu entre as aldeias do Crucifixo (Abrantes) e Malpique (Constância) e, depois dos estudos em Lisboa e Paris, é hoje em Leiden, na Holanda, que João Miguel Freire dá asas à ambição de “tocar a sociedade” com o seu trabalho. Aos 33 anos é um dos cientistas da equipa da Johnson & Johnson que desenvolveu a vacina contra a covid-19. Falámos com João Freire numa curta pausa do seu trabalho, sobre as suas raízes e a sua grande vontade de regressar a casa, onde produz vinho e (re)encontra o seu equilíbrio.

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“Há três anos, se me dissessem ‘olha, vais estar a trabalhar numa das vacinas que vai ajudar a combater uma pandemia’, acho que me iria rir num meio de um jantar com amigos”, diz João Freire. Mas a oportunidade surgiu e tudo aconteceu de forma muito rápida. Aos 33 anos é senior cientist no departamento de caracterização do produto, no departamento de vacinas da filial farmacêutica da Johnson & Johnson em Leiden, na Holanda. Integrou a empresa há cerca de dois anos, onde começou como junior cientist no departamento de estudo da colocação do produto no mercado, e foi em agosto do ano passado que, dado os seus interesses pessoais, a empresa lhe deu uma oportunidade de se mudar para o departamento onde está atualmente.

Mas o percurso de João Freire começou muito antes, quando em criança andava “pelo campo e pelo meio da floresta” a descobrir “rãs e girinos e tudo e mais alguma coisa”. Foi aí, numa infância dividida entre as duas aldeias que considera como suas, a aldeia do Crucifixo, em Tramagal (Abrantes), e a aldeia de Malpique, em Santa Margarida da Coutada (Constância), que começou “a perceber que a origem da vida e a vida são interessantes”, aguçando a curiosidade graças aos pais e avós, que sempre o deixaram “experimentar e andar à vontade”.

A “grande paixão” de João Freire pelas “ciências da vida” e pelo seu funcionamento guiaram-no por um caminho que hoje classifica como “a ordem natural das coisas”. No entanto, não esconde as influências e marcas que lhe deixaram alguns professores ao longo do percurso, sobretudo do seu período de estudos no Tramagal, onde diz ter recebido “muito estímulo intelectual” para as ciências.

João Freire (sentado, terceiro a contar da direita), diz que é “de dois municípios”, pois passou a infância entre as aldeias de Crucifixo (Tramagal), terra da mãe, e Malpique (Constância), terra do pai. Foto: DR

Aos 18 anos saiu da casa dos pais, em Malpique, deixando para trás “o privilégio” de uma pacata vida no campo para enfrentar os desafios de uma cidade grande, entrando no curso de Bioquímica, na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, em 2004. Aí, pôde explorar aquilo que mais a atenção lhe despertava: como é que a vida se processa. “Fui selecionado o que gostava mais, os vírus, as doenças infeciosas, anti virais e toda essa forma de como é que nós podemos combater estes seres – que também têm todo o direito de estar neste mundo, porque fazem parte dele… às vezes, fazem-nos algumas coisas mais complicadas e nós, mesmo tendo o nosso sistema de defesa para os combater, às vezes não é suficiente – e eu achava isso interessante, como tentar combater estas ameaças para o ser humano”, revela-nos.

Depois da licenciatura seguiu-se o mestrado na Faculdade de Medicina de Lisboa, onde continuou o estudo de anti virais e de moléculas candidatas a fármacos, no Instituto de Medicina Molecular. Aí, foi exposto a um mundo completamente diferente: “Percebi que a ciência está em todo o lado, que podemos fazer imensas coisas, existem imensos apoios nacionais, internacionais, de associações que nos expõem a mais e que nos podem ajudar a escolher o que é melhor (…) e foi-me oferecida a possibilidade de continuar para fazer um doutoramento”.

Em 2016, doutorou-se em Ciências Biomédicas, com especialização em Bioquímica e descoberta de novos fármacos. Um passo na sua formação profissional onde assume ter sido fulcral o papel da CAIMA – Indústria de Celulose, instalada em Constância, que lhe financiou parte do grau, através de um apoio atribuído para a defesa da tese que a bolsa que tinha não suportava.

Mas João Freire não parou aí, não se assumisse ele como uma pessoa que quer sempre mais. “Acho que devemos tentar sempre querer mais e exigir mais e não parar quando pensamos ‘ok, isto já é suficiente’. Eu tenho um bocado essa perspetiva, que é ‘o que é que há mais que eu possa aprender, onde é que eu posso desenvolver mais’ ”, revela-nos. Foi essa mentalidade que o levou à procura de um desafio que lhe permitisse simultaneamente dar mais a si mesmo e dar mais à sociedade.

João Freire com a avó materna, a mãe e o sobrinho. O jovem sente falta do equilíbrio que encontra junto da família. Foto: DR

Com a consciência de que a carreira científica em Portugal não está muito facilitada e sem medo de partir em busca do sonho, rumou a Paris, em França, agarrando a oportunidade de uma bolsa de excelência da União Europeia para pós-doutorados que permitia prosseguir um projeto num laboratório fora do nosso país. “Ou seja, esta bolsa não me permitiria continuar em Portugal. A ideia é usar a rede europeia ou até mesmo internacional para que a União Europeia ganhe novas valências e promova intercâmbio de conhecimentos entre diferentes países”, explica.

Pós-graduou-se em Virologia Estrutural, onde, em termos sintéticos, aprendeu “que partes do vírus podemos usar para desenvolver uma vacina ou qual é que é mais reativa ou protetora, porque nem todas as partes do vírus são passíveis para desenvolver uma vacina”. Foram três anos da sua vida a caminhar diariamente para o trabalho, com a Torre Eiffel como cenário de fundo. Uma experiência que hoje recorda como “gratificante” mas não suficiente para quem “queria tocar a sociedade”.

“Comecei a pensar que poderia dar mais, e às vezes na academia nós contribuímos sobretudo para o nicho da comunidade científica e transpor esse conhecimento, concretizá-lo para algo que a sociedade poderá dar uso, às vezes é difícil.”

A OPORTUNIDADE DA JOHNSON & JOHNSON E O ENVOLVIMENTO NA VACINA CONTRA A COVID-19

Foi “uma oportunidade no sítio certo à hora certa”. É assim que João Freire recorda a entrada na Johnson & Johnson há cerca de dois anos, depois de ter deixado Paris e de ter tirado “um tempo de iate e reflexão”. De Paris para Leiden (Holanda), admite que nunca pensou vir a estar envolvido no desenvolvimento de uma vacina para combater uma pandemia mundial.

“Acho que uma pessoa nunca pensaria numa situação como esta. Pode brincar com o pior, mas nunca pensa que o pior acontece. Uma pessoa nunca põe na mesa que isto será mesmo necessário, estar a ter que trabalhar tanto e ter que usar tantos recursos humanos e monetários para fazer frente a algo desta dimensão”, expressa, dizendo que o seu trabalho é “uma percentagem residual” da “imensa massa humana envolvida” neste processo.

“Faço a minha contribuição, e se é útil e se se reflete no que no final vai chegar ao mundo e aos pacientes, só me deixa mais satisfeito e com o sentido de dever cumprido. Estou a fazer o meu trabalho enquanto profissional da empresa mas é algo que não esperaria”, reforça João Freire, admitindo que é “bastante gratificante” estar ao longo deste ano a tentar combater esta pandemia. “Toda a sociedade e todo o mundo está a tentar combater, cada um com as suas armas, e trazer mais esta arma [vacina] para combater esta pandemia, para nos devolver a parte social que é tanto nossa, é gratificante.”

“Faço a minha contribuição, e se é útil e se se reflete no que no final vai chegar ao mundo e aos pacientes, só me deixa mais satisfeito e com o sentido de dever cumprido”

O cientista, que está em teletrabalho há cerca de um ano, reflete que a pandemia de covid-19 veio “reativar a necessidade e o repensar da necessidade de vacinas e de investir” nesta área. “Vacinas são sempre vistas como algo esquecido, não muito necessário. É sempre algo visto como secundário, que não nos fará mudar a vida, ter ou não”, diz, defendendo no entanto que a vacina não é “a” solução mas sim “mais uma arma” para controlar a pandemia. E “controlado não significa erradicado”, sublinha.

Com os dias de teletrabalho, confessa que aquilo que o mantém motivado é o gosto pela ciência. “Eu faço mesmo o que gosto, adoro ciência e ter a ideia de estar a fazer ciência e saber como isto vai tocar e toca nas pessoas, e a cada pessoa globalmente… é isso me mantém muito motivado”, diz.

“É acordar e saber que ‘ok, isto tem que ser feito e com a maior qualidade possível’ porque o impacto é enorme. Acho que é isso, quanto mais uma pessoa pensa no impacto e na responsabilidade, isso reverte-se, na minha mentalidade, para motivação”, assume, admitindo ter em mãos uma “enorme responsabilidade” mas a qual não agarra sozinho: “Isto não é uma caminhada a só, de uma empresa, é de todas as empresas e de toda a sociedade. Acho que estamos todos a tentar caminhar em uníssono, porque todos querem ver isto para trás, e é isso que mantém alerta e motivado.”

Quanto aos progressos conquistados nos últimos tempos, nomeadamente a aprovação da vacina da Johnson contra a covid-19 pela agência norte-americana que regula o mercado do medicamento nos Estados Unidos (FDA), no final de fevereiro, bem como a luz verde por parte da Agência Europeia de Medicamentos (EMA) neste mês de março, são sinais de esperança e “mais um mecanismo para ajudar a acelerar o combate a este pandemia”, diz o cientista, que alerta, no entanto, que “acelerar o tempo é impossível”.

“Temos de levar as coisas com calma, passo a passo, seguir os planos que estão desenhados porque, da mesma forma que nós estamos a fazer a nossa parte, outros órgãos e outras tasks forces estão envolvidas também em delinear esses planos e avaliar a evolução e acho que há indicadores de vários países (…) em que há indícios de que irão vir melhoras. (…) Há que ter um pouco mais de paciência e que cada pessoa continue a fazer a sua parte”, sublinha.

A SAUDADE DAS RAÍZES ATENUADA COM A DISTÂNCIA DAS VIDEOCHAMADAS

“Há apenas que aguardar”, dizia-nos João Freire sobre a evolução da pandemia. E é também à espera que o jovem está para poder regressar a casa, em Malpique, para rever os pais e o avô, para reencontrar o seu “equilíbrio pessoal” e dar uma mão no projeto familiar de vinhos criado por si e pelo seu irmão em 2011: a Quinta de Malapique.

Em 2011, João Freire e o irmão, Nuno Freire, deram vida ao projeto “Quinta de Malapique”, requalificando terrenos da família para produção de vinhos. Hoje, o projeto conta com comércio de vinhos, licores, abafado, mas também compotas e produtos da horta. Fotos pessoais de João Freire/DR

“Antes desta pandemia, visitava Portugal uma vez por mês”, lembra. “Com esta situação, basicamente não sei quando é que posso ir (…) até parei de pensar quando é que será possível, porque é frustrante”, admite.

São três horas de viagem de avião, cerca de dois mil quilómetros de distância, números que são encurtados pelos telefonemas e videochamadas. “É o que é. Também não é fácil para os meus pais, mas há-de melhorar. É assim que vejo as coisas e mais não se pode fazer”, confessa, com a emoção embargada na voz.

“Acho que o equilíbrio de qualquer emigrante prende-se por visitar a terra, visitar a família e visitar as raízes, e isso desde há um ano que está muito comprometido”, refere, com a esperança de que “melhores dias virão” e de que possa voltar ao lugar onde tudo começou, onde observava rãs e girinos no campo e descobria a ciência da vida. Até lá, promete “continuar a dar o melhor e a fazer tudo o que é preciso”, para que o mundo vença a luta contra este coronavírus.

Abrantina com uma costela maçaense, rumou a Lisboa para se formar em Jornalismo. Foi aí que descobriu a rádio e a magia de contar histórias ao ouvido. Acredita que com mais compreensão, abraços e chocolate o mundo seria um lugar mais feliz.

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