A escuteira Ana Rita Mendes estava de férias no Líbano e ficou a ajudar a população (em cima, à direita, e em baixo, ao centro)

Intensa e gratificante: é assim que Ana Rita Mendes descreve a experiência que viveu em Beirute, onde, a 4 de agosto, uma explosão fez pelo menos 191 mortos e deixou sem casa cerca de 300 mil pessoas. As suas férias de verão terminaram ali mas, em vez de fazer as malas, arregaçou as mangas. Um mês depois da tragédia, e já de regresso a casa, a escuteira abrantina descreve ao mediotejo.net o que viu: o caos, a revolta, a pobreza, mas também a esperança que une aqueles que procuram reconstruir um país em profunda crise.

“Eu já conhecia aquela zona mas cheguei e não fazia ideia onde é que estava… ficou tudo destruído, não havia espaço para os carros passarem, era só vidros, vidros, vidros, ambulâncias por todo o lado, polícia por todo o lado, pessoas no meio das ruas a correrem para tentar resgatar quem tinha ficado debaixo das casas em ruínas… foi caótico.”

Um cenário de filme que, para Ana Rita Mendes, foi não apenas real como ainda hoje se mantém presente nas emoções que transparecem na sua voz, ao contar aquilo que os seus olhos viram.

Ana Rita estava de férias no Líbano, em casa de uns amigos que conhecera numa atividade internacional de escuteiros na Holanda, em 2018, e com os quais criou uma relação “muito próxima” – de tal forma que em três anos esta era a terceira viagem que fazia ao país. Naquele dia, tinham decidido aproveitar o bom tempo e ir a uma festa: um sunset.

“Estava-me a arranjar e de repente a casa abanou toda, mas de uma maneira que eu nunca tinha sentido. Ouvimos um barulho, as janelas abriram-se todas de uma vez, entrou muito ar para dentro da casa e fiquei sem perceber o que se estava a passar. Honestamente, nem sei o que é que pensei na altura, fiquei mesmo sem reação”, recorda.

Ana Rita Mendes, escuteira, natural de Abrantes, estava no Líbano quando aconteceu a explosão no porto de Beirute, a 4 de agosto. Foto: mediotejo.net

O ruído, descreve, era semelhante ao de uma rajada de vento muito forte e repentina, resultado da pressão cuspida do centro da explosão que acontecera em Beirute, no porto marítimo.

Uma nuvem em forma de cogumelo, como se de uma bomba atómica se tratasse, formou-se com a explosão de 2.750 toneladas de nitrato de amónio (um componente usado em explosivos) que estavam há seis anos num armazém no porto, e arrasou não só a zona portuária como a envolvente marítima da chamada “Paris do Médio Oriente”, em largos quilómetros. Fez desaparecer ruas, edifícios, carros e vidas, muitas vidas – a onda de choque gerada pela explosão matou pelo menos 182 pessoas e feriu mais de 6.500. O número de desaparecidos ultrapassa ainda as três centenas.

“Tive um bocadinho mais de sorte porque naquele momento estava a cerca de 9 km da capital”, reflete Ana Rita. Lembra-se de entrar “num pequenino pânico” no início, quando não sabia bem o que se estava a passar. “Tive medo quando começaram todos a falar sobre o que podia ou não ter acontecido, mas tudo em árabe. Eu não falo árabe, não percebia nada, estava perdida no meio deles e depois comecei a chorar imenso, assustada, e pedi-lhes por favor para me dizerem o que se estava a passar. Eles explicaram rapidamente que achavam que era um terramoto, mas que podia ser muita coisa.”

A primeira reação foi a de pegar no passaporte e descer as escadas do prédio, para ver o que se passava. A meio do caminho, uma vizinha deu-lhes conta de que tinha acontecido a explosão em Beirute. Ana Rita e os amigos voltaram para casa, ligaram a televisão e viram, em choque, as imagens de de uma cidade brutalmente destruída.

“Ninguém sabia propriamente o que fazer. Os próprios jornalistas andavam em Beirute a tentar perceber o que acontecera”, recorda. Tinham mais perguntas do que respostas. “Começámos a ver que eram precisas doações de sangue mas os nossos colegas que saíram à rua diziam-nos para não sairmos de casa. Então nesse dia ficámos”, conta. Mas depois tornou-se impossível não reagir: “Queríamos fazer alguma coisa.”

“A sua casa está destruída? Podemos ajudar a limpar?”

Ana Rita Mendes é caminheira do Agrupamento de Escuteiros 697, de Rossio ao Sul do Tejo, do Corpo Nacional de Escutas. Foi esse espírito de escuteira que traz ao peito desde os oito anos que a levou no dia seguinte à explosão a juntar-se a cerca de 5.000 libaneses que responderam ao apelo lançado pela Federação de Escuteiros do Líbano para dar apoio às vítimas da explosão, nomeadamente com a remoção de destroços das casas, doações de sangue e apoio emocional.

 

“Chegámos a uma das zonas mais afetadas, Mar Mikhael, mesmo ao lado do porto, que antes era uma zona cheia de bares, de saídas à noite, que eu tinha frequentado… Quando cheguei não reconheci o local, estava tudo destruído. Havia carros esmagados debaixo das ruínas das casas, e um rasto de vidros no chão que quase nos impedia de caminhar”, lembra Ana Rita.

Foi aí que a escuteira, natural de Chainça, em Abrantes, pôs mãos à obra. Começou por ajudar o padre do grupo de escuteiros a meter ordem na sua casa, que ficou virada do avesso com o choque da explosão. A desorganização era visível e nem o plano delineado pela Federação de Escuteiros conseguia guiar os voluntários. Então a estratégia adotada foi outra: passaram-se apenas a dirigir-se às pessoas que encontravam na rua e ofereciam ajuda.

“A sua casa está destruída? Podemos ajudar a limpar?”, era o que diziam os voluntários. “E nós depois íamos aos prédios, sempre com cuidado e a tentar perceber se eram estruturas de edifícios mais frágeis. Poucos edifícios caíram efetivamente [ficaram as estruturas]. O problema era mesmo dentro das casas, tudo cheio de vidros, com sofás, móveis, tudo virado ao contrário ou partido”, explica Ana Rita.

A ajuda traduziu-se também no conforto daqueles que perderam o pouco que tinham. Foi o caso de uma senhora que viu ficar destruída a sua pequena loja de comércio, o seu único sustento, e que, apesar da situação dramática que vivia conseguiu dar um sorriso a Ana Rita e aos colegas por a terem ajudado a colocar cartões para cobrir a montra estilhaçada.

São episódios que ficarão para sempre gravados na sua memória. “Um casal que tinha um filho pequenino, com um ferimento na cabeça, estava a entrar para o carro e a senhora agarrou-me no braço, olhou-me com uma profundidade que eu não consigo descrever, disse umas palavras em árabe e desatou a chorar”, recorda. “Fiquei a pensar naquilo, custou-me muito. Não percebemos o que as pessoas estão a dizer mas conseguimos entender o sofrimento e as coisas por que passaram.”

Apoio, união, solidariedade. Foi tudo isto que Ana Rita viu no olhar de uma população que, apesar de viver atualmente numa situação de grave crise a vários níveis – já antes da explosão –, não deixa de ter a riqueza da entreajuda e do afeto.

“Entrar dentro da casa daquelas pessoas, poder ajudá-las e ter em retorno um sorriso e elas sentarem-nos à mesa e oferecem-nos comida, mesmo quando têm a casa e as coisas nas condições em que estão… é sentir uma riqueza enorme por parte daquelas pessoas, é incrível”.

“É incrível como pessoas com tão pouco nos conseguem oferecer tanto. Eu que, comparado com elas, tenho muito, senti-me muito mais pobre do que aquelas pessoas naquele país.”

A realidade que os olhos de Ana Rita viram

Um país devastado por uma explosão, mas ainda com outras feridas graves por curar. Em outubro de 2019, a população saiu em força à rua para se manifestar contra o regime e a crise económica do país. Os protestos em massa intensificaram-se perante uma “classe dominante” e um “governo corrupto”. O primeiro-ministro de então, Saad Al-Hariri, demitiu-se, e cresceu o impasse político. Em janeiro de 2020, Hassan Diab assumiu o governo mas manteve-se a revolta e os confrontos entre as forças de segurança e os cidadãos.

Com a imposição de medidas de austeridade e a impossibilidade de a população aceder às suas contas bancárias, às quais se juntam a desvalorização da libra libanesa (desde outubro de 2019 já perdeu mais de 80% do seu valor – dados de julho deste ano), a falta de eletricidade e de água, a pobreza é uma realidade que, com a explosão de 4 de agosto, ficou mais a nu do que nunca.

Já antes da explosão, organizações como a ONU alertavam para o impacto da crise socioeconómica na população libanesa. Em abril, três quartos dos libaneses precisavam de ajuda para sobreviver. Em maio, a Comissão Económica e Social das Nações Unidas para a Ásia Ocidental deu conta de que mais de metade da população do Líbano (55%) estava “presa na pobreza” – uma subida de 27% face a 2019. Isto num país que abriga a maior população de refugiados per capita do mundo: 1 em cada 6 habitantes é refugiado (no total, o Líbano acolhe 1.7 milhões de refugiados, a grande maioria provenientes da Síria).

Ana Rita já esteve no Líbano por três vezes. Antes deste verão, visitou Beirute em dezembro de 2019, tempo em que a revolução já tinha eclodido. “Pelo facto de o Líbano estar a passar uma crise económica e financeira, muitos não têm acesso aos depósitos em bancos, não podem levantar dinheiro. Algumas pessoas já não têm mesmo nada, mas mesmo as que têm pouco não podem usar esse pouco para reconstruir as vidas… deve ser desesperante”, desabafa.

 

Agora, com a explosão, o barco afundou ainda mais. As manifestações contra aquela que apontam ser uma má administração de décadas por parte do governo voltaram a emergir, levando a que, seis dias depois da explosão em Beirute, e após a sucessiva saída de ministros, o governo de Hassan Diab tenha apresentado a sua demissão (neste momento, está em funções até à nomeação de um novo executivo).

“Nem tenho sentimentos para descrever, é extremamente desolador e uma tristeza enorme ver pessoas a morrer na rua e não houve um único político que se dirigisse a eles e lhes desse uma palavra de reconforto. Eu nem dizia mais, mas uma palavra de reconforto, ir à televisão falar”, lembra Ana Rita, que lamenta que “tenha sido preciso o presidente francês, Emmanuel Macron, ter ido ao Líbano para, no dia seguinte, o presidente do país ter feito exatamente uma conferência de imprensa da mesma maneira que o presidente francês”, para mostrar alguma ação.

“O facto de haver um governo muito corrupto leva a que as pessoas não esperarem mais do que aquilo que lhes deram, que foi nada”, aponta Ana Rita.

Contudo, o presidente libanês, Michel Aoun, anunciou o desbloqueio de 100 mil milhões de libras libanesas (55 milhões de euros) de financiamento de emergência. O governante calcula em cerca de 15 mil milhões de dólares o prejuízo causados pela explosão e promete uma indemnização “rápida, eficiente e justa” para a população.

No terreno, valem os voluntários

No dia seguinte à explosão, a Organização Mundial de Saúde enviou para Beirute um avião com 20 toneladas de ajuda humanitária. O envio de suprimentos e a oferta de ajuda é também anunciada pela comunidade internacional, desde países como os Estados Unidos, a França, o Qatar, Irão e até Israel. Mas no terreno a realidade nem sempre corresponde ao que se lê no papel.

“Há hospitais com imensa falta de materiais. Eu acredito que cheguem coisas, mas não é o suficiente para as necessidades que aquele país tem – de todo! –, e isso é verificável, principalmente nas ruas, nas tendas que as associações têm disponíveis… As pessoas chegam, precisam de uma sutura ou que uma ferida seja curada e não há equipamentos ou anestesias”, explica.

No terreno, Ana Rita destaca o papel das ONG’s e a importância do seu trabalho e a transparência por não terem ligações ao Governo. Conta também histórias que ouviu de doações a hospitais que depressa desapareceram: “as milícias que controlam o país dirigem-se aos hospitais, recolhem o material que foi doado e vão vender a outros locais.”

Outra situação que testemunhou foi a chegada de carrinhas do exército para distribuir material, uma forma de “dizer que efetivamente estão a fazer alguma coisa, quando é tudo mentira”.

“Eu própria, quando as pessoas me perguntavam se deviam doar a esta ou aquela associação, tinha medo de dizer que sim, porque, pelas coisas que me contam e pelo que vi, não sei se aquele dinheiro é retirado depois, ou se o material que é conseguido é vendido para suportar milícias…”, expõe Ana Rita.

Ana Rita recebe ainda hoje várias mensagens de amigos e desconhecidos a perguntar como podem ajudar o Líbano. A escuteira tem indicado o nome de Andreia Castro, uma médica portuguesa que, após vários entraves por falta de qualificações e dos documentos necessários para ir para o Líbano em representação de alguma associação portuguesa, decidiu ir sozinha ajudar as vítimas da explosão.

Andreia, autora da página nas redes sociais “Me across the World“, conseguiu angariar 8.000 euros em donativos e encheu um contentor de 70 toneladas para enviar para o Líbano. Um dos propósitos desta ajuda é também dotar os hospitais de material médico, isto porque, com a explosão foram também afetados vários centros de saúde e o hospital da capital, pondo em causa a capacidade de prestar atendimento a doentes.

De notar que, com a explosão no porto de Beirute, o Líbano viu também aumentar o número de casos de covid-19 no país. As iniciais medidas impostas pelo governo, como o confinamento obrigatário, tinham até então travado a propagação do vírus. No entanto, com o aliviar das medidas e as consequências da explosão, a pandemia não dá tréguas e a 21 de agosto foi determinado um confinamento de duas semanas para tentar conter a pandemia.

“A situação está a piorar imenso, não há controlo”, diz Ana Rita, que, sempre de máscara cirúrgica no rosto, regressou a Portugal no dia 20 de agosto. Nos últimos dias antes da sua partida “ninguém podia já sair à rua das 18h00 às 6h00 da manhã do dia seguinte”.

E o apoio a quem está a apoiar?

Ana Rita esteve no Líbano entre 16 de julho e 20 de agosto. Antes de ir, contactou o Gabinete das Comunidades Portuguesas a dar conta da sua viagem. Dois dias depois da explosão, foi a própria que enviou uma mensagem: “Estou em Beirute em viagem, está tudo bem comigo.”

Do outro lado, “nenhum contacto da parte de Portugal”, lamenta. “O que senti é que estava em Beirute, aconteceu uma explosão e ninguém me procurou”. Os únicos contactos que teve com o país natal foi com a família e com o Agrupamento de Escuteiros de Rossio ao Sul do Tejo, o qual, inclusive, “ativou o seguro escutista, para que pudesse lá estar em segurança enquanto estivesse a ajudar”.

 

Hoje, Ana Rita confessa que a sua vontade era a de ficar mais tempo no Líbano, quer pelos amigos que lá deixou, quer pela experiência que a ajudou a ver o mundo com outros olhos.

“Num mês lá cresci mais do que dois ou três anos em Portugal. Ganhei muita experiência de vida.”

Na bagagem traz as memórias daquilo que viveu mas também um lenço escuteiro com o desenho da bandeira do Líbano que lhe foi dado pelos amigos. Na parte de trás, esconde-se uma mensagem de agradecimento a Ana Rita, a rapariga que estendeu a mão a um país em estilhaços e que está a tentar recompor-se com a força da solidariedade.

Abrantina com uma costela maçaense, rumou a Lisboa para se formar em Jornalismo. Foi aí que descobriu a rádio e a magia de contar histórias ao ouvido. Acredita que com mais compreensão, abraços e chocolate o mundo seria um lugar mais feliz.

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