No sábado de manhã, junto à Torre de Belém, eram muitos os turistas ou lisboetas em passeio desportivo que paravam para ver José Alberto Ferreira chegar no seu barco à Doca do Bom Sucesso. No meio de tantos iates de luxo, veleiros e catamarans, um pequeno e tosco abrangel – um barco de madeira a remos –, parecia sair de um portal de outro tempo para este.
Passaram certamente muitas décadas desde que alguma embarcação deste tipo se aproximou de Lisboa, depois de descer o Tejo, e a visão não deixa de impressionar. Ali, onde o rio já se faz mar, o barco esculpido para deslizar sobre as águas plácidas de Dornes parece verdadeiramente uma casca de noz, como eram as naus dos Descobrimentos que ultrapassaram o cabo das Tormentas. Noutros tempos, as viagens rio abaixo eram longas e difíceis, mas neste caso só houve mesmo “Boa Esperança” durante todo o percurso, feito por etapas entre 15 e 22 de maio, desde Ferreira do Zêzere até Lisboa, com paragens em Almourol e Santarém.
Foi uma viagem simulada, feita apenas parcialmente para assinalar, de forma simbólica, a importância destas embarcações na distribuição de bens e pessoas ao longo das margens dos rios, até à capital. Neste caso, o bem a entregar era o próprio barco, que foi doado pelo município de Ferreira do Zêzere ao Museu de Marinha, passando a partir de agora a integrar a sua coleção de embarcações típicas dos rios portugueses.

Já só resta um construtor deste tipo de barcos na Albufeira de Castelo de Bode – precisamente José Alberto Ferreira, que aos 61 anos fez questão de remar na partida e na chegada do Abrangel ao seu destino, e que integrou a comitiva que entregou a embarcação ao diretor do Museu da Marinha, Comodoro José Croca Favinha, acompanhado de altas patentes militares.

José Alberto Ferreira começou a construir barcos aos 31 anos, depois de aprender o ofício com o pai, que se iniciou apenas aos 65 anos. Por isso diz que “nunca é tarde” e ainda tem esperança que outros se iniciem nesta arte, não a deixando morrer.

Se assim não for, pelo menos resta-lhe o conforto (e a alegria) de saber que um barco seu ficou guardado no Museu de Marinha, “para as gerações vindouras saberem do que se tratava”.

O município de Ferreira do Zêzere tem também em curso o processo de classificação do barco Abrangel como património imaterial nacional, e o registo de toda a viagem desde Dornes até Lisboa vai figurar no dossiê da candidatura. Para já, fica documentada e salvaguardada toda a informação acerca de uma embarcação que faz parte da história dos concelhos ribeirinhos do Tejo e do Zêzere, mas o vereador Hélio Antunes, que esteve na génese de toda a iniciativa, espera que a classificação do barco e das tradições a ele associadas possa, mais do que preservar uma memória, ajudar a revitalizar a sua utilização. “Não consigo imaginar as margens do Zêzere sem estes barcos, fazem parte da paisagem e do nosso imaginário”, descreve.
O presidente da Câmara, Jacinto Lopes, vê no turismo uma das grandes possibilidades de dar nova vida ao Abrangel, nomeadamente em Dornes: “Não há nada mais romântico do que passear naquelas águas, ao final do dia, num barco de três tábuas.”

O Museu é “de” Marinha e não “da” Marinha. Só peço que não me levem a mal esta correção.
Museu DE Marinha.
Parabéns pelo artigo e parabéns pelo mediotejo.net