“Este é um momento que vai ficar na História: vamos imortalizar esta embarcação, dar-lhe o devido valor e salvaguardar o nosso património imaterial”, dizia satisfeito o vereador Hélio Antunes, minutos antes da partida do barco Abrangel, em Dornes, na sua viagem até Lisboa.
Neste sábado, dia 15 de maio, ainda não eram 8h30 – a hora marcada para a partida do barco – e já se sentia a ansiedade no ar. Autarcas, ex-marinheiros, dirigentes e o último construtor destes barcos tradicionais preparavam-se para iniciar uma viagem emblemática, reproduzindo o que muitos antepassados fizeram durante décadas.
A ideia nasceu de uma visita feita ao Museu da Marinha pela Associação de Marinheiros de Ferreira do Zêzere, durante a qual foi lançado o desafio à Marinha de colocar no seu museu uma embarcação típica dos rio Zêzere e Tejo: o Abrangel, Três Tábuas ou Catrafuz, nome por que é conhecido conforme o local de construção.

Este desafio está prestes a ser concretizado e de forma muito peculiar. Por proposta do vereador Hélio Antunes, a doação da embarcação é feita pela Câmara Municipal de Ferreira do Zêzere depois de uma viagem de Dornes até Lisboa, por via fluvial, entre os dias 15 e 22 de maio.
É em Dornes que trabalha o último criador daquele tipo de barcos tradicionais em madeira na albufeira de Castelo de Bode, José Alberto Ferreira. Foi a ele que competiu ser o primeiro remador, na partida, tendo acompanhado toda a primeira etapa da viagem, até Almourol.
José Alberto Ferreira diz-se “construtor de barcos” e não “calafate”, como noutras zonas ribeirinhas da zona, porque não se limita a calafetar, faz todo o trabalho de construção do barco, que é essencialmente de carpintaria.
Diz que sente “orgulho e satisfação” por ser doado ao Museu da Marinha um barco tradicional que lhe saiu das mãos. “Será uma recordação para os vindouros”, congratula-se, classificando esta como uma “boa ideia” do vereador da Cultura.
A “viagem emblemática e simbólica” desde Dornes até Lisboa serve para recordar “os velhos tempos, simulando a importância que a embarcação tinha na altura”, antes da barragem de Castelo do Bode (1951), afirma Hélio Antunes.
Nessa altura, os rios Zêzere e Tejo funcionavam como as atuais autoestradas, servindo de transporte por via fluvial de todo o tipo de mercadoria.
O reviver dessa “epopeia”, como lhe chamou o autarca, começou em Dornes e passou pelas aldeias ribeirinhas do concelho, onde havia troca de remadores, ex-marinheiros do concelho.

Nesta primeira etapa, o barco seguiu rio abaixo, passando por Constância, Cafuz, com uma paragem no Castelo de Almourol, seguindo depois para Santarém.
Para dia 22 está prevista a chegada a Lisboa, junto ao Mosteiro dos Jerónimos, onde altas patentes da Marinha vão estar à espera da embaixada ferreirense para rececionar a embarcação e depois assinar o auto de doação, já no Museu da Marinha.
A par desta iniciativa, o município de Ferreira do Zêzere tem em curso o processo de classificação do barco Abrangel como património imaterial nacional, sendo que o registo de toda a ação vai figurar também no dossiê da candidatura. Para Hélio Antunes, a classificação do barco e de todo o simbolismo a ele associado será “a cereja no topo do bolo”.
Deste forma, ficará documentada e salvaguardada toda a informação acerca de uma embarcação que faz parte da história dos concelhos ribeirinhos do Tejo e do Zêzere.
Também para o Vice-Presidente da Câmara de Ferreira do Zêzere, ao fazer-se a entrega da réplica ao Museu da Marinha “está-se a assegurar que ele fica sempre bem guardado”, para memória futura. “Será bem entregue.”
Paulo Neves considera que a investigação e divulgação histórica do património local e regional pode constituir uma das principais formas de afirmação dos concelhos do interior.
Já da parte da tarde, à chegada ao Castelo de Almourol o barco foi recebido pelo presidente da Câmara de Vila Nova da Barquinha, Fernando Freire, juntamente com a vereadora da Cultura, Marina Honório.
Fernando Freire, ele próprio um apaixonado pela história local, considera ser esta uma “iniciativa espetacular”. O autarca falou da sabedoria dos nossos antepassados que se dedicavam, entre outras atividades, à pesca, e realça a ligação umbilical entre os dois rios, Zêzere e Tejo.
O entusiamo com que fala do rio, da pesca e da arte de navegar tem uma explicação. É que, de acordo com as suas investigações históricas, foi em Cafuz que, em 1415, Gonçalo “O Velho” começa a preparar a frota para a epopeia dos descobrimentos.
“Tudo o que tenha a ver com o património imaterial, a sua preservação e divulgação, é de abraçar”, defende Fernando Freire, enaltecendo a iniciativa do município ferreirense.